Existe um mínimo existencial?
Uma divagação humanística à luz da legislação falimentar.
sexta-feira, 2 de dezembro de 2022
Atualizado às 08:07
Recentemente (26/7/22) foi regulamentada, por decreto, a preservação e o não comprometimento de um valor mínimo para fins de prevenção, tratamento e conciliação de situações de superendividamento de uma pessoa física, a ser considerado um mínimo existencial. Em resumo, foi definido o valor equivalente a vinte e cinco por cento do salário mínimo vigente na data de publicação desse decreto1 como o mínimo existencial para uma pessoa manter em uma ação própria para repactuação de dívidas (sem que a alteração posterior do salário mínimo afete esse valor, expressamente).
Ou seja, se um consumidor pessoa natural não conseguir pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, o valor de R$ 363,60 (trezentos e sessenta e três reais e sessenta centavos), hoje, é considerado o suficiente para seu mínimo existencial, caso seja necessário discutir suas dívidas judicialmente.
Veja o texto do Código de Defesa do Consumidor e o Regulamento do mínimo existencial, respectivamente:
Art. 54-A. Este Capítulo dispõe sobre a prevenção do superendividamento da pessoa natural, sobre o crédito responsável e sobre a educação financeira do consumidor. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
§ 1º Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação.
Art. 3º No âmbito da prevenção, do tratamento e da conciliação administrativa ou judicial das situações de superendividamento, considera-se mínimo existencial a renda mensal do consumidor pessoa natural equivalente a vinte e cinco por cento do salário mínimo vigente na data de publicação deste Decreto.
(...)
§ 2º O reajustamento anual do salário mínimo não implicará a atualização do valor de que trata o caput.
Contudo, o que pode ser considerado como mínimo existencial (para fins legais)? Supõe-se que seja apenas comer...
Mesmo se assim fosse, em julho de 2022, o valor do conjunto dos alimentos básicos mais barato foi registrado em R$ 542,50 (quinhentos e quarenta e dois reais e cinquenta centavos), segundo o DIEESE - Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômico2, com a Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos.
Mas e o mínimo para existir, o que seria? É possível medir? Limitar?
A título de ilustração, veja-se o que cantavam os Titãs (em Comida):
A gente não quer só comida
A gente quer comida, diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída para qualquer parte
A gente não quer só comida
Quer comida, diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida como a vida quer
Em que pese ser salutar tentar dar maior objetividade para discussões jurídicas e judiciais, a definição de um mínimo existencial, ainda mais em tão baixo patamar, parece ser uma típica situação de análise caso a caso. Se o valor regulamentado "sequer paga a comida" (indiscutivelmente essencial), que dirá a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, considerados direitos sociais pela Constituição Federal3.
Agora, a título de mera comparação, veja-se a Lei aplicável a empresas em dificuldades financeiras, ainda que não necessariamente "superendividadas". Inicia-se o tema pelo artigo 6º da lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 - Lei de Falência, Recuperação Judicial e Extrajudicial (LFRJ):
Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica: (Redação dada pela Lei nº 14.112, de 2020)
I - suspensão do curso da prescrição das obrigações do devedor sujeitas ao regime desta Lei; (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020)
II - suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor, inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência; (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020)
III - proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicial ou à falência.
§ 4º Na recuperação judicial, as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo perdurarão pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado do deferimento do processamento da recuperação, prorrogável por igual período, uma única vez, em caráter excepcional, desde que o devedor não haja concorrido com a superação do lapso temporal. (Redação dada pela Lei nº 14.112, de 2020)
Contudo, não é necessário o ingresso de uma demanda judicial como solução única ao endividamento apresentado por uma empresa. Há alguns procedimentos anteriores à discussão judicial que possibilitam o debate das dívidas junto aos credores e a busca por uma solução conjunta de forma mais rápida e menos onerosa - de forma mais facilitada (em contraponto a um consumidor, notadamente hipossuficiente frente a empresas a que deve, o qual tem menos facilitações legais ao seu soerguimento).
Veja-se o texto da LFRJ:
Art. 20-A. A conciliação e a mediação deverão ser incentivadas em qualquer grau de jurisdição, inclusive no âmbito de recursos em segundo grau de jurisdição e nos Tribunais Superiores, e não implicarão a suspensão dos prazos previstos nesta Lei, salvo se houver consenso entre as partes em sentido contrário ou determinação judicial. (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência)
Art. 20-B. Serão admitidas conciliações e mediações antecedentes ou incidentais aos processos de recuperação judicial, notadamente: (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência)
(...)
IV - na hipótese de negociação de dívidas e respectivas formas de pagamento entre a empresa em dificuldade e seus credores, em caráter antecedente ao ajuizamento de pedido de recuperação judicial.
E também:
Art. 161. O devedor que preencher os requisitos do art. 48 desta Lei poderá propor e negociar com credores plano de recuperação extrajudicial.
§ 1º Estão sujeitos à recuperação extrajudicial todos os créditos existentes na data do pedido, exceto os créditos de natureza tributária e aqueles previstos no § 3º do art. 49 e no inciso II do caput do art. 86 desta Lei, e a sujeição dos créditos de natureza trabalhista e por acidentes de trabalho exige negociação coletiva com o sindicato da respectiva categoria profissional.
Ou seja, há procedimentos anteriores à judicialização que podem apresentar uma solução ao endividamento da empresa. O principal é a inovação legislativa que entrou em vigor em 2021: a possibilidade de medidas de conciliação e mediação antecedentes à Recuperação Judicial, dispostas a partir do artigo 20-A da LFR, delineado anteriormente.
É importante frisar que tal medida pode abarcar todos os créditos, possibilitando, inclusive, a suspensão de execuções contra a empresa pelo período de 60 dias.
Caso tal alternativa não resulte em frutos, há que se pensar, ainda, na possibilidade de uma Recuperação Extrajudicial - capaz de suspender as execuções contra a empresa em 180 dias, prorrogáveis pelo mesmo período (como a recuperação judicial) - atentando-se para as restrições de créditos que podem entrar na negociação:
Art. 163. O devedor poderá também requerer a homologação de plano de recuperação extrajudicial que obriga todos os credores por ele abrangidos, desde que assinado por credores que representem mais da metade dos créditos de cada espécie abrangidos pelo plano de recuperação extrajudicial. (Redação dada pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência)
(...)
§ 8º Aplica-se à recuperação extrajudicial, desde o respectivo pedido, a suspensão de que trata o art. 6º desta Lei, exclusivamente em relação às espécies de crédito por ele abrangidas, e somente deverá ser ratificada pelo juiz se comprovado o quórum inicial exigido pelo § 7º deste artigo.
Assim, são duas medidas que evitam a judicialização e evidenciam a força do diálogo com os credores da empresa desde o início, dando mais tempo e liberdade à empresa, uma vez que o próprio devedor permanece na administração da empresa nessas situações.
Caso essa sequência de oportunidades não resulte em acordo entre devedor e credores, parte-se à discussão judicial, com a Recuperação Judicial (que pode ser convolada na Falência) ou, em último caso, a autofalência; conforme artigos 47, 73, 75 e 105, da LFRJ, respectivamente.
Ou seja, há uma série de possibilidades dadas a uma empresa, um ente não natural, fictício pela própria natureza, sem se adentrar no plano de um valor mínimo para sobrevivência da empresa, ao contrário do que se oportuniza, comparativamente, com as pessoas naturais, humanas, reais, superendividadas.
Retomando - e fechando - o tema (existencialista), é conveniente referenciar um pensamento atribuído a Jean-Paul Sartre:
O homem não é a soma do que tem, mas a totalidade do que ainda não tem, do que poderia ter.
E o que se pode ter, hoje, com R$ 363,60 (trezentos e sessenta e três reais e sessenta centavos)? O que se pode ser?
É possível, com isso, minimamente existir?
Juridicamente, sim.
Ainda que pareça injusto.
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1 R$ 1.212,00 (mil e duzentos e doze reais).
2 https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/analiseCestaBasica202207.html
3 Art. 6º, da Constituição Federal.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, 05 de outubro de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 15 de setembro de 2022.
_____. Decreto nº 11.150, de 26 de julho de 2022 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/decreto/D11150.htm. Acesso em 15 de setembro de 2022.
_____. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Brasília, 11 de setembro de 1990. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078compilado.htm. Acesso em 15 de setembro de 2022.
_____. Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Brasília, 9 de fevereiro de 2005. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm. Acesso em 15 de setembro de 2022.
_____. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, 17 de março de 2015. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm> Acesso em 15 de setembro de 2022.
Matheus Corrêa de Melo
Matheus Corrêa de Melo é advogado associado de nosso escritório. Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas, o profissional foi graduado em Direito pelo Instituto de Ensino Superior de Brasília (IESB). Atualmente, é membro da Comissão de Direito Empresarial da OAB/DF. Matheus Corrêa de Melo também foi-membro da Comissão de Empreendedorismo Jurídico da OAB/DF.