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A dona de casa prudente, o teto de gastos e você

Inicialmente, um alerta para o leitor: tire as crianças da sala porque termos e expressões nada educados que precisarão ser usados neste texto.

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Atualizado às 09:09

1 O teto de gastos, o orçamento público e a dona Maria

Inicialmente, um alerta para o leitor: tire as crianças da sala porque termos e expressões nada educados que precisarão ser usados neste texto.

O que eu tenho a ver com o teto de gastos? É o que você pergunta você para si mesmo. Tem tudo a ver, considerando os seguintes fatores, ora presentes:

- Dívida pública federal = R$5,613 trilhões;

- População brasileira = 215 milhões.

- Dividindo uma pela outra: cada brasileiro deve R$26.107,00, montante que certamente crescerá acentuadamente ano a ano se as despesas públicas continuarem na tendência das últimas décadas. E isso só tem um jeito de consertar: responsabilidade fiscal, o que envolve o orçamento público e o teto de gastos, tomando-se como exemplo a forma como a dona de casa prudente administrava as finanças em um passado não muito distante. E com o vergonhoso orçamento secreto o fim não é o limite.

Algumas reminiscências oportunas. Por volta das décadas de 1950/1960 no final do expediente do dia do pagamento dos salários o maridão ia até o caixa da empresa, assinava um comprovante e recebia um envelope fechado com o dinheiro do mês. Ele o colocava no bolso e seguia para a sua casa. Não se preocupe, leitor, quase sempre ele não era assaltado no caminho e entregava aqueles recursos para D. Maria - o Ministro da Fazenda da Família - a sua esposa, geralmente uma dona de casa prudente.

Sentada à mesa da cozinha D. Maria separava o dinheiro em montes, seguindo as despesas mensais que constavam de um caderninho espiral que ela guardava em uma gaveta do guarda-comida. Então ela separava os recursos para o aluguel, a luz, a água, o gás, a feira semanal, o armazém e o açougue, estes dois últimos onde ela comprava fiado. A sobra ela colocava em uma caixa de papelão no mesmo guarda-comida. Ela serviria para eventuais despesas extras, como as relativas a médicos e remédios, pois os planos de saúde ainda não tinham aparecido em nossas terras. Hospitais gratuitos até que havia, papel então desempenhado por algumas entidades públicas e pelas Santas Casas espalhadas por muitos lugares

 Em seguida ela verificava as condições da indumentária da família. O maridão tinha algumas camisas esporte e calças, dois duas ou três camisas sociais, dois pares de sapatos, algumas gravatas e dois ternos, um cinza que usava para trabalhar e um preto para missas e enterros. Os filhos tinham dois uniformes da escola cada um, dois sapatos pretos, um keds (o antigo tênis) ou alpargatas, duas calças, algumas camisas. Ela tinha alguns vestidos, dois ou três sapatos e algumas blusas e saias. Para o inverno a família contava com agasalhos que vinham de longa data, alguns herdados de parentes falecidos, cujos tamanhos às vezes não combinavam com o do herdeiro. Daí aquele samba: "Engole ele, paletó, que o defunto era maior".

Enquanto o digno consorte trabalhava e os filhos estavam na escola, ela cerzia as suas meias, pregava os botões que faltavam, engraxava os sapatos, arrumava casa, lavava a roupa (no braço) e fazia a comida. Se fosse mais abonada ela teria uma empregada, o que era raro. Em algumas famílias a sogra ou a mãe, viúvas, moravam junto e ajudavam nas tarefas domésticas. No final da tarde ela tricotava uns casaquinhos, sentada na pequena varanda da frente da casa, enquanto conversava com alguma vizinha. Como se vê, a vida não era nada fácil.

Percebe-se que Maria era uma verdadeira heroína, lutando todos os dias na sua odisseia sem fim. Somente mais à frente no tempo e se o dinheiro sobrasse, ela teria direito a uma máquina de lavar roupas, uma enceradeira (que substituiria o pesado escovão) e um aspirador de pó. O aparelho de televisão era um luxo para poucos, contentando-se os remediados, quando podiam, ao papel de televizinhos.

O que restava do pagamento do chefe da casa era depositado em uma caderneta de poupança na Caixa Econômica, para que no futuro fosse possível comprar um terreno onde seria construída a casa da família em regime de mutirão, o que podia durar alguns anos até que finalmente o lar doce lar ficasse terminado. Financiamento imobiliário era uma coisa rara, aberto a poucos privilegiados.

Certas Donas Marias poderiam ser professoras ou ter uma profissão de meio período, que não atrapalhasse cuidar da casa e da família e os recursos correspondentes aumentavam o cabedal doméstico, quem sabe para umas merecidas férias na praia ou na montanha, sempre pagas à vista. Havia mulheres, então proporcionalmente poucas, que eram médicas, dentistas, advogadas, farmacêuticas, que se diferenciavam do padrão da população feminina brasileira.

Como se percebe, D. Maria administrava o orçamento doméstico e estava dentro do limite do "teto de gastos". Se ela permitisse que as despesas saíssem da linha ou seu o marido ficasse desempregado, então vinha o desastre com o despejo e tudo o que se seguia, fazendo com que, para sobreviverem, se aboletassem na casa de algum parente.

A vida nos dias de hoje mudou radicalmente. Pode-se dizer que a dona de casa prudente é uma raridade e isso é o resultado do surgimento do crediário e, mais tarde, do cartão de crédito, que muitos usuários ainda imaginam ser uma verdadeira mina de dinheiro. Junte-se a esses mecanismos de endividamento um fortíssimo apelo ao consumo, deflagrado por uma publicidade implacável e o grande estrago está feito nas finanças familiares, às vezes verdadeiramente irreparável.

2.  O orçamento público e o teto de gastos em perigo

No plano governamental poderíamos dizer que o teto de gastos corresponderia ao total dos recursos recebidos por meio de impostos, taxas e outras receitas, que seriam o limite das despesas que os governos poderiam fazer ano a ano, segundo um orçamento responsável (pode rir, leitor). Mas isso não acontece desde priscas eras, mesmo antes da Roma antiga. Os governos gastam todas as receitas presentes e as futuras por meio de processos de endividamento, principalmente recorrendo à emissão de títulos que são colocados no mercado. Dessa forma o futuro fica comprometido e por toda a vida porque, pagos os vencidos, novos títulos ocupam o seu lugar, com valores cada vez mais gordos. Quanto mais irresponsáveis são os governos no plano fiscal mais juros têm de pagar para os adquirentes dos seus títulos. Isso é fruto de uma obra do mercado, aquele ser fantasmagórico que, ao lado dos especuladores, assombram a vida dos governantes, verdadeiramente indomados. Como se sabe, sem qualquer razão o Sr. Mercado faz o dólar subir e a Bolsa cair, somente para atrapalhar os governos.

Essa hipoteca sobre o futuro representa hoje a diferença entre o valor do PIB (produto interno bruto) e o da dívida. De forma simplificada podemos dizer que o PIB é a soma de todos os bens e serviços finais produzidos no país e que, em 2021, foi da ordem de R$8,7 trilhões. Considerando-se a dívida acima citada de R$ 5,7 trilhões, o país está apenas a R$3 trilhões do endividamento total do montante do PIB. E se a gastança continuar sem controle não demorará muito para chegarmos a um PIB negativo, fato que, se o governo fosse uma empresa comum, caracterizaria a sua falência, sem direito a uma recuperação judicial.

Quem observa o comportamento dos políticos e dos governantes sabe que eles têm verdadeira ojeriza ao controle das despesas públicas, considerando que, para eles, limitá-las fere o seu legítimo direito de gastaram à tripa forra no seu próprio interesse. Neles o órgão do corpo mais importante é o seu estômago, absolutamente insaciável. A desculpa de sempre é a necessidade do atendimento de despesas com educação, saúde, transporte, segurança e por aí vai. Se essas áreas tivessem sido verdadeiramente atendidas nas décadas passadas, o Brasil seria hoje um país de primeiríssimo mundo, sem miséria, doenças, analfabetos ou sem-teto.

Não pense o caro leitor que o Bolsa Família e seus congêneres foram inventados mais recentemente. Uma de suas origens esteve no programa do Governo Sarney denominado "Tudo Pelo Social"1, que apresentava, entre outros objetivos, o do combate à pobreza (1985/1990, boa parte dos leitores não nascidos). Depois de tantos anos essa ferida permanece visivelmente aberta.

Nosso teto de gastos foi instituído em 2016 (antes tarde do que nunca), por meio de uma emenda constitucional, prevendo um limite para as despesas do governo. Entre outros motivos a baderna econômica dos anos anteriores fez com que o Brasil perdesse em 2015 o seu grau de investimento (um carimbo de bom pagador), fator que lhe permitia colocar títulos no mercado internacional a juros mais baixos, como forma de financiar a sua dívida. Ora, o mau pagador se desejar tomar dinheiro emprestado pagará juros mais caros porque o risco por ele apresentado diante do credor é mais elevado. E se esse limite foi objeto de uma emenda constitucional, sua mudança teria de passar pelo mesmo caminho. Isso não tem sido problema porque, havendo interesse dos congressistas - como tem ocorrido ultimamente à demasia - mudar a Constituição Federal é mais fácil do que mudar de camisa, para quem a tem.

Na sua concepção o teto de gastos não podia ser superado em valores reais, tão somente corrigido pela inflação acumulada, relativa a determinado período do ano anterior. Portanto, se o governante de plantão desejasse gastar além do que era legalmente obrigatório, teria de remanejar ou cortar verbas, segundo o modelo econômico do cobertor curto: ou cobre a cabeça ou os pés, ambos não dá. E isso tem acontecido, por coincidência, precisamente nas áreas de saúde, educação, segurança, transportes, meio-ambiente, tudo para matar a fome insaciável dos governantes e políticos, muito sabedores de que dinheiro não dá em árvores.

Mas no Brasil tudo tem o seu jeitinho. Sabe-se que no governo ora em processo de extinção, gastou R$749 bilhões além do teto entre 2019 e 2022. Mas como isso aconteceu? Fácil, por meio de autorizações concedidas pelo Congresso mediante recurso a manobras verdadeiramente execráveis, tais como o adiamento do pagamento dos precatórios.

A propósito, o caro leitor sabe o que é um precatório? Em bom português é um dinheiro que lhe e devido pelo governo - que perdeu do autor uma ação judicial - e que jamais em tempo algum lhe será pago, nem quando as galinhas criarem dentes em seu processo evolutivo.

Nesse quadro verdadeiramente assombroso quem ganhou conjuntamente as medalhas de ouro, prata e bronze, foi a chamada PEC Kamikaze, aprovada pela quase totalidade dos deputados federais e no Senado com o único voto contrário entre 81 senadores de José Serra, sendo o seu objetivo declarado o pagamento do Auxílio Brasil. Ora, disseram os perpetradores dessa façanha, o objetivo lícito era acabar matar a fome dos brasileiros miseráveis.

Bem, é reconhecido que certas despesas importantes têm o seu custo corrigido por valor maior do que o da inflação, razão pela qual o seu pagamento terminaria sendo reduzido uma vez obedecido o teto. Dessa forma seria necessário criar-se algum tipo de válvula de escape, destinada a resolver esse tipo de problema. Vá lá, mas dar isso na mão de um governante sem cobrar dele uma contrapartida financeira responsável é o mesmo que proibir uma criança de comer o chocolate que está na geladeira. Precisamente porque ele tem compulsão para devorar todo o chocolate financeiro, presente no orçamento.

O governo que está para começar já mostrou o seu apetite em furar o teto de gastos, contando para tanto com o favor das duas casas do Congresso. Fala-se de um rombo de até 200 bilhões. Entre outras razões está presente a justificativa de dar três refeições por dia a todos os brasileiros, além de emprego com carteira assinada.  Mas, é claro, como cansamos de repetir Milton Friedman, "não existe almoço de graça, alguém sempre paga a conta". Dessa forma, estabeleceu-se no chamado governo de transição um processo de negociação para que o teto de gastos possa ser furado, o que deixaria inteiramente envergonhado o mais cínico de todos os filósofos utilitaristas. E o que é pior, algumas cabeças não pensantes nessa questão está pretendente que o furo do teto venha a ser permanente, o que corresponderia a um vazamento sem conserto no orçamento público. E no meio do caminho, um novo jaboti, que é uma verba extra para o orçamento secreto, a ser paga ainda no apagão deste ano. Só de oito bilhõezinhos! Uma coisinha de nada.              

Vozes menos vorazes estão propondo um furo menor (como isso fizesse muita diferença), só de R$80 bilhões apenas para 2023, como forma do governo entrante poder cumprir algumas promessas de sua campana mirabolante. No futuro se pensaria em como abrir de novo a brecha.

Se a autorização em tela acontecer mesmo, daqui a algum tempo certamente eu deixarei de ver a enorme fila dupla de mendigos que todos os dias recebe uma quentinha dos franciscanos na porta do convento da Rua Riachuelo no centro de São Paulo. Ou desaparecerão os milhares de sem-teto que moram debaixo das pontes e viadutos. Maravilha! Serei inteiramente a favor de jogar esse teto no lixo.

Contudo é mais certo de que, do jeito que a coisa está caminhando, brevemente mais um trilhãozinho de reais será acrescentado à nossa dívida pública, enquanto a miséria continuará crescendo. Ora viva! Recordes dessa forma são conosco mesmo.

Concluindo, todos os programas sociais têm falhado em não criar uma porta de saída para os seus beneficiários. A maneira como eles funcionam é igual a enxugar gelo. Primeiro, é forçoso reconhecer que há uma geração de sem-teto que muito dificilmente poderia ser reincorporada à sociedade, assumindo os seus próprios custos mediante o exercício de alguma atividade econômica. Um caso a ser estudado. Eles devem ser atendidos na sua sobrevivência segundo algum modelo minimamente digno, o que é obrigatório. Em segundo lugar, os seus filhos devem ser resgatados, dirigidos a creches e escolas públicas, onde recebam um atendimento integral na saúde e na educação. Dessa forma, com o tempo eles poderão ser encaminhados para o mercado de trabalho, completando-se o seu resgate.

Enquanto isso não acontece, veja como andam as suas finanças, que serão chamadas a cobrir mais esse buraco.

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1 Que os inefáveis brincalhões entenderam como expressão referente ao famoso bigode do Presidente Sarney,

 

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

VIP Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa

Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

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