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Entre as formalidades legais e o cotidiano forense: inquietações sobre a aplicação do acordo de não-persecução penal

A cadeia de atos prevista no art. 28-A do Código de Processo Penal não é questão de ordem meramente formal, por isso, eventuais mutações no procedimento exigem cautela.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Atualizado às 09:20

Reflexo do avanço das alternativas consensuais sobre a forma tradicional de resolução dos conflitos de natureza criminal, o acordo de não-persecução penal (ANPP) afirma-se como importante  ferramenta de justiça negociada. De um lado, o Ministério Público deixa de exercer o agir acusatório e, de outro, o investigado compromete-se ao regular cumprimento dos termos contratualmente estipulados, conferindo ao instituto características de verdadeiro negócio jurídico extrajudicial firmado entre o titular da ação penal e o autor do fato devidamente assistido por seu defensor.

Não por acaso, o artigo 28-A do Código de Processo Penal deixa a intervenção judicial para momento posterior à realização do acordo e com isso, valoriza a essência contratual do instituto e garante inequívoco protagonismo às partes interessadas.

Em síntese, a desburocratizada dinâmica procedimental prevista  no CPP estabelece que o Ministério Público acenará com a possibilidade de concessão do benefício sempre que constatar a presença dos requisitos objetivos e subjetivos (art. 28-A, caput e § 2°) e, definidas as condições, o acordo será realizado mediante a confissão formal e circunstancial do investigado (art. 28-A, § 3°). Celebrado o acordo, ocorrerá o controle jurisdicional em audiência destinada à homologação do ANPP (art. 28-A, §§ 4° e 5°) e, uma vez homologado, o Ministério Público iniciará a execução perante o juízo competente (art. 28-A, § 6°). Por fim, caso o juiz recuse a homologação pela ocorrência de alguma das hipóteses legais previstas no artigo 28-A, § 7°, deverá devolver os autos ao Ministério Público que, a depender do caso,  adotará uma das seguintes providências: (i) seguirá com a persecução penal oferecendo de imediato a denúncia ou requisitando a complementação das investigações (art. 28-A, § 8°); (ii) reformulará a proposta com a ciência do investigado e seu defensor (art. 28-A, § 5°); (iii) recorrerá da decisão via recurso em sentido estrito, possibilidade igualmente reservada ao investigado, em virtude do gravame sofrido.

 Portanto, com evidente inspiração nas práticas extrajudiciais de consenso na esfera penal, a sistemática do ANPP garante exclusivamente ao Ministério Público a avaliação primária sobre o cabimento do instituto no caso concreto e, ainda, assegura o diálogo com o investigado na composição do conteúdo acordado. Em igual sintonia com as motivações político-criminais que norteiam ferramentas despenalizadoras1, o ANPP reserva ao Poder Judiciário a atividade de fiscalização dos termos do acordo e do adimplemento do contrato homologado.

Em que pese seja clara a cronologia de atos traçada na lei processual, o cotidiano forense revela formas alternativas de realização do ANPP, cumprindo destacar aquelas que despertam maior preocupação. 

1. Imediato oferecimento da denúncia com apresentação de proposta de ANPP em peça anexa: 

Como legislativamente destacado, o momento adequado à construção do acordo de não-persecução penal é no hiato existente entre o fim da fase investigatória e o ato de oferecimento da denúncia.  Assim, sendo cabível o instituto, o representante do Ministério Público desobriga-se do cumprimento dos prazos previstos no art. 46 do CPP e, mediante simples requerimento, o feito será suspenso até a conclusão do acordo ou esgotamento das tentativas de celebração.

Contudo, não são raras as vezes em que a inicial acusatória é oferecida de imediato, com apresentação de proposta do ANPP em peça anexa, na qual já constam os termos - ou condições impostas - à realização do acordo.

De início, é preciso reconhecer que o ANPP não deve ser operado nos moldes da suspensão condicional do processo, instituto cuja oferta se alicerça em condições previamente definidas pelo representante do Ministério Público e que oferece ao autor do fato apenas uma estreita margem para negociação. Em regra, as propostas de sursis processual são verdadeiros contratos de adesão que beiram, em certos casos, o desproporcional ou até o inexequível.

No ANPP, ao contrário, as condições são - ou deveriam ser - ajustadas bilateralmente, com o necessário tempo de maturação, efetiva participação da defesa técnica e, claro, antes da inicial acusatória, a qual somente será oferecida quando não houver acordo ou pelo descumprimento de alguma das cláusulas contratuais judicialmente homologadas.

Para além de mera subversão da ordem procedimental, a precipitação do acusador acelera a etapa pré-processual - locus próprio ao debate sobre o ANPP -, pressiona desnecessariamente o acusado com a propositura e possível deflagração da ação penal e, sobretudo, colide com a essência consensual do instituto ao definir antecipadamente as bases do acordo.

Parece pouco, mas de fato não é. Principalmente, se o representante do Ministério Público mostra-se irredutível em relação às condições, seja por pura imabeabilidade, seja por rejeitar o fulcro consensual do instituto para atribuir-lhe franco viés punitivista.

2. Realização de audiência no juízo criminal para confecção - e não apenas homologação - do ANPP com a realização da oitiva do investigado para fins de confissão.

Como antes salientado, o acordo de não-persecução penal deve ser negociado exclusivamente na etapa pré-processual e sem qualquer intervenção jurisdicional até o momento da possível homologação. Nessa esteira, cumpre  ao Poder Judiciário as atividades de controlar a legalidade, verificar a voluntariedade do investigado e medir a suficiência e adequação dos termos estruturantes do acordo. Enfim, a elaboração do ANPP independe de provocação ou qualquer participação do juiz.

Todavia, inúmeros são os acordos em que a audiência de homologação prevista no art. 28-A, §4° do Código de Processo Penal ganha maiores contornos, utilizando-se do ato para a negociação dos termos do acordo e, consequentemente, para a confissão do investigado.

O problema dessa indevida dilatação do ato judicial reside justamente no fato de que a confissão ocorrerá perante o juiz da instrução, contaminando-o e comprometendo sua imparcialidade em eventual ação penal decorrente do de descumprimento do acordo por parte do investigado.

Por certo, a figura do juiz de garantias, suspensa em razão das Ações Diretas de Inconstitucionalidade em tramitação no Supremo Tribunal Federal2, mitigaria ou até mesmo evitaria risco à imparcialidade, já que a rescisão contratual e posterior ato de recebimento da denúncia não cumpriria ao juiz da instrução. Isso porque a redação do suspenso art. 3°-C do CPP atribui competência ao juiz de garantias até o ato de recebimento da denúncia, por conseguinte, iniciada a ação penal com o deslocamento da competência ao juiz da instrução, bastaria desentranhar o acordo dos autos para que o conteúdo da confissão não alcançasse a fase instrutória.

No atual cenário, diante da carência do juízo de garantias, o mais adequado é que a confissão ocorra exclusivamente na presença do representante do Ministério Público e em ato extrajudicial próprio para esse fim.  Satisfeita a condição, constará no corpo do ANPP a indicação de que houve confissão formal e circunstanciada dos fatos apurados na fase investigatória e, com isso, restará atendido o requisito legal3.

Isso porque no ambiente de concessões mútuas do ANPP a confissão deve ser compreendida como parte integrante do negócio jurídico celebrado entre o acusador, o investigado e seu defensor. Assim, ao aprovar o conteúdo da confissão, o representante do Ministério Público deverá apenas certificar no corpo do acordo que houve pleno atendimento do mencionado requisito, sendo tal certificação suficiente à verificação da legalidade do acordo por parte da autoridade judiciária.

Pois bem. É preciso reconhecer que cada etapa da persecução penal constitui um constrangimento em si, pelo que não é demais lembrar que a condição de acusado já é uma pena, seja pelas angústias e incertezas que marcam cada uma das fase da persecução, seja pela estigmatização do indivíduo  no tecido social. 

CONCLUSÃO:

A cadeia de atos prevista no art. 28-A do Código de Processo Penal não é questão de ordem meramente formal, por isso, eventuais mutações no procedimento exigem cautela. E para preservar o bom funcionamento do instituto, a manutenção do sistema acusatório e salvaguardar as garantias do acusado no processo penal é preciso atentar para as armadilhas da celeridade punitivista. No processo penal é muito fácil perder garantias quando se busca ganhar tempo.

_______________

1 Como evidentes benefícios da aplicação de mecanismos consensuais no âmbito da Justiça Penal lembramos, como exemplos, a celeridade na resolução do caso, a mitigação dos efeitos da sentença penal condenatória e a possibilidade de priorização de recursos materiais e humanos para o enfrentamento de mais graves.

2 ADIn 6.298; ADI 6.299; ADI 6.300; ADI 6.305.

3 Embora o tema não seja aqui abordado, é de enorme relevo o debate sobre da obrigatoriedade da confissão como requisito ao ANPP e contundentes são os argumentos em torno da inconstitucionalidade da exigência dessa condição, tese com a qual concordamos. Obrigar o investigado a optar entre a possibilidade do ANPP e a preservação do direito fundamental de não declarar-se culpado consiste em prática manifestamente inconstitucional e inconvencional: é inconstitucional por afronta ao direito ao silêncio previsto no artigo 5°, inciso LXIII da Constituição Federal; e inconvencional por violar o direito de não confessar, outra importante emanação do princípio da não auto-incriminação prevista no art. 8. 2, g da Convenção Americana dos Direitos Humanos. (CADH). E, como se não bastasse a imposição da confissão, o Enunciado 27 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais, sugere a inclusão de cláusula mencionando a possibilidade de utilização da confissão como suporte probatório em eventual ação penal. Inequivocamente, o teor do referido enunciado ressalta o lado obscuro da exigência da confissão enquanto requisito ao ANPP, pois, de um lado, limita a atuação da defesa técnica por restringir as teses defensivas à esfera da confissão e, de outro, torna prejudicial o silêncio do réu em seu interrogatório, eis que, se nada disser, arcará com o prejuízo de ter admitido o uso da confissão realizada no campo negocial.

Jonas Machado Ramos

Jonas Machado Ramos

Advogado Criminalista, Professor de Processo Penal (CESUSC); Mestre em Ciências Criminais (PUCRS).

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