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Empregados de EFPC sem poder de gestão e business judgment rule

O fundamento para os deveres fiduciários dos administradores de EFPC é que, em regra, todos são gestores de recursos de terceiros. Entretanto, o CMN resolveu estender essa responsabilidade de gestão para outros atores, inclusive empregados sem poder de gestão.

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Atualizado às 14:21

1.Introdução

Não há dúvidas sobre a existência do princípio geral de direito segundo o qual ninguém deve causar prejuízo a terceiro sob pena de ser obrigado a reparar o dano. Entretanto, para a imputação do dever de indenizar, não basta o dano, é necessária a presença dos elementos estabelecidos pelos artigos 186, 187 e 927 do Código Civil.1

No ramo da previdência complementar, o art. 63 da lei Complementar 109/01 apresenta uma lista daqueles que respondem civilmente pelos danos causados a um plano de benefícios por ação ou omissão. A saber: (a) administradores; (b) procuradores com poderes de gestão; (c) membros de conselhos estatutários; (d) interventor; (e) liquidante; (f) administradores dos patrocinadores; administradores dos instituidores; (g) atuários; (h) auditores independentes; (h) outros prestadores de serviços técnicos mesmo que por intermédio de pessoa jurídica contratada.2

Ao mesmo passo, nas hipóteses previstas em lei, a prática de determinados atos ilícitos pode gerar responsabilização administrativa independentemente da ocorrência de danos.

Ambas as situações estão fora da esfera de responsabilização contratual. Portanto, para apurar se houve a transgressão das normas jurídicas, há que se verificar qual dever de conduta foi objetivamente violado.

Curiosamente, no âmbito da previdência complementar, encontramos uma série de casos em que expressamente se atribui o mesmo standard de conduta exigido dos administradores de EFPC para empregados de EFPC sem poder de gestão.

Interessante notar que essa má utilização de conceitos fundamentais não ocorre no âmbito do poder de polícia exercido pela CVM e nem no direito comparado de onde vem as principais fontes de inspiração dos conceitos da business judgment rule no Brasil.

2. Padrão de Conduta dos Administradores de EFPC

A função do administrador de EFPC pode ser compreendida como a de gestor de recursos de terceiros e, neste particular, em tudo se assemelha ao papel dos administradores de sociedades empresariais.

Desta forma, vale recordar que o direito romano tradicional já identificava a necessidade de estabelecer um padrão de comportamento humano para imputar alguns tipos de responsabilidade. E, historicamente, o conceito do bom pai de família era o exemplo de conduta esperado para quem administrava bens alheios.

Contudo, o direito e a sociedade evoluem. Assim, o direito brasileiro estabeleceu o elevado padrão de homem ativo e probo que emprega o mesmo cuidado e diligência que costuma empregar aos seus próprios negócios.3

Perceba que, diante do risco de o administrador atuar contra o interesse da sociedade, os deveres de lealdade podem ser traduzidos pela atuação proba, isto é, uma atuação honesta, de boa-fé e livre de interesse pessoal.

Enfrentando o risco de o administrador atuar de forma descuidada, os deveres de cuidado são refletidos no conceito de homem ativo.

Ou seja, como prefiro definir, o homem ativo seria o administrador racional que em seus processos decisórios, utiliza informação suficiente e consistente para decidir com racionalidade econômica.

Veja que a raiz do conceito, não é nova e já estava no art 142 do Código Comercial de 1850 [revogado] no que se referia a mandato mercantil.4 Depois, o padrão passou a constar no art. 116 do decreto-lei 2.627/40 [revogado] que dispunha sobre as sociedades por ações.5 O mesmo o conceito chegou à atual lei das Sociedades Anônimas (lei 6.404/76):

Art. 153 O administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios.

E, por fim, em redação análoga no Código Civil, de 2002:

Art. 1.011 O administrador da sociedade deverá ter, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios.

Como já tive oportunidade de escrever outras vezes, a lei Complementar 109/01 não entendeu necessário criar para os administradores de EFPC, um padrão de conduta distinto ao do administrador ativo e probo.6

Ainda nesta seara, é plenamente aplicável a utilização da business judgment rule que permite verificar se os procedimentos seguidos pelos administradores para a tomada de decisão estavam aderentes às suas obrigações legais.7

Não se trata de exigir que o administrador atue segundo as "melhores práticas" ou os mais novos e revolucionários conceitos de gestão. É que, ao contrário de protocolos médicos ou os destinados à segurança de transporte aéreo, não existe nenhuma publicação que preveja e detalhe qual é a decisão esperada para toda questão que surge em uma EFPC.8 Ocorre que a dinâmica de cada EFPC, a missão, a visão de futuro, o perfil de risco, e os planos administrados são muito distintos. Por isso, é virtualmente impossível conceber uma maneira padrão de agir que seja válida para todas.

Sendo assim, ao contrário de um roteiro em que cada passo está descrito, para a business judgment rule, basta a ausência de conflito, a decisão informada e a decisão refletida (com critérios de racionalidade econômica).

Por conseguinte, eventuais divergências ou equívocos na valoração de alguns aspectos subjetivos não poderão ser utilizados para responsabilizar o administrador se o rito adequado foi tendo percorrido.

De outro lado, ao aplicar os recursos dos planos os administradores da EFPC devem - com diligência - adotar práticas que garantam o cumprimento do seu dever fiduciário em relação aos participantes dos planos de benefícios. E essa obrigação se materializa na utilização de um processo formalizado com metodologia adequada para decisões complexas e que proporcione uma maior expectativa de solução eficiente para o interesse dos planos administrados.

2. Padrão de Conduta dos Empregados sem Poder de Gestão

Como dissemos já no início deste artigo, qualquer pessoa, independente da função que exerce, tem o dever de indenizar, se presentes requisitos estabelecidos pelo Código Civil.

Contudo, o padrão de conduta do empregado definitivamente não é o mesmo padrão de conduta dos administradores. Em razão de sua situação de dependência (art. 3º, CLT)9 e subordinação (art. 482, h, CLT)10 o direito brasileiro não exige do empregado igual nível de diligência.

Destaco que a exigência de honestidade é idêntica. O Art 482 a) da CLT11 permite até mesmo a demissão por justa causa se o empregado agir de forma desonesta.

Contudo, a falha no padrão de conduta que permitiria eventual a condenação de empregado honesto apenas no caso de desídia.

Para caracterização de desídia, é preciso que o empregado mesmo honesto aja com manifesta negligência, imprudência ou imperícia.

Sendo a negligência o desinteresse em realizar o trabalho, a imprudência revela uma evidente falta de cuidado, e a imperícia o exercício de uma atividade para o qual não tem preparo ou qualificação técnica.

Transportando para a seara da previdência complementar, o ato de improbidade ou desonestidade trabalhista seria a prática dolosa de crime de patrimonial contra algum plano administrado. Já a desídia seria caracterizada quando o empregado desidioso - mesmo sem intenção de causar um dano direto ao plano - age evidentemente abaixo do esperado diante de sua condição de empregado e não se preocupa se sua ação ou omissão produzirá prejuízo.

Por evidente, por se tratar de uma ação originada da relação de trabalho, a competência para julgar um dano causado pelo empregado será da Justiça do Trabalho, como prevê o art. 114, VI12 da Constituição.

Portanto, do ponto de vista legal, a EFPC empregadora que sofra um "ato de improbidade" ou desídia do empregado no desempenho das suas funções (Art 482 a) e e) da CLT)13  tem o direito/dever de ajuizar ação na Justiça do Trabalho.

3. CMN Resolve Atribuir Dever de Diligência Para Empregados Sem Poder de Gestão

Apesar de não ter criado um padrão distinto do administrador ativo e probo, a  lei Complementar 109/01 atribuiu ao Conselho Monetário Nacional (CMN) a competência para fixar diretrizes na aplicação dos recursos dos planos de benefícios.14

Sob esse fundamento, o CMN estabeleceu e destacou mais explicitamente em 2009 os deveres dos administradores na Resolução 3.792 [revogada] no Capítulo II (Das Diretrizes para Aplicação dos Recursos pelos Administradores):15

Posteriormente, o CMN, por meio da Resolução 4.661/18, resolveu ampliar o dever diligência para além dos administradores e do previsto na lei Complementar 109/01. Redação que foi mantida pela Resolução CMN 4.994/22:

Art. 4º. [...] § 1º São considerados responsáveis pelo cumprimento do disposto nesta Resolução, por ação ou omissão, na medida de suas atribuições, as pessoas que participam do processo de análise, de assessoramento e decisório sobre a aplicação dos recursos dos planos da EFPC.

§ 2º Incluem-se no rol de pessoas previstas no § 1º deste artigo, na medida de suas atribuições, os membros de conselhos estatutários da EFPC, os procuradores com poderes de gestão, os membros do comitê de investimentos, os consultores e outros profissionais que participem do processo de análise, de assessoramento e decisório sobre a aplicação dos recursos dos planos da entidade, diretamente ou por intermédio de pessoa jurídica contratada.

Ou seja, o CMN, concebeu que era legalmente possível e necessário ampliar - por meio de resolução - o catálogo de sujeitos ao dever fiduciário mesmo que ultrapassando o previsto em lei.

Resolveu que passaram a ser administrativamente responsáveis pela gestão dos planos administrados pela EFPC: (a) membros do comitê de investimento sem poder de gestão; (b) consultores externos sem poder de gestão; (c) todos os empregados da EFPC sem poder de gestão (d) todos os consultores externos sem poder de gestão da EFPC; e (e) todos os profissionais sem poder de gestão que atuaram por pessoa jurídica contratada.

Ainda que se pudesse admitir a extensão do dever fiduciário por meio de resolução, o padrão de conduta exigido do empregado sem poder de gestão não é mesmo do padrão exigido dos administradores.

Em síntese, para além da honestidade, é exigido dos administradores a adoção de práticas racionais; processos formalizados; metodologias adequada para decisões complexas; atendimentos ao princípios de segurança; rentabilidade; e liquidez.

Já para os empregados, espera-se a mesma honestidade e que não atuem de maneira desidiosa.

4. Conclusão

Como vimos, o fundamento para os deveres fiduciários dos administradores de EFPC é que, em regra, todos são gestores de recursos de terceiros. Entretanto, o CMN resolveu estender essa responsabilidade de gestão para outros atores, inclusive empregados sem poder de gestão.

Ainda preocupante é que Previc e CRPC vem adotando essa extensão de responsabilidade de maneira retroativa. Ou seja, por vezes, considera que um empregado sem poder de gestão tem os mesmos deveres fiduciários e seria responsável por ação ou omissão na medida de suas atribuições. 16

Resta claro que mesmo que se pudesse admitir a responsabilização administrativa de um empregado de EFPC sem poder de gestão, não há que se falar jamais em violação dos requisitos da business judgment rule.

Caberá à fiscalização, ao contrário, provar que houve um ato desonesto ou de desídia do empregado no desempenho das suas funções (Art 482 a) e e) da CLT.

Na mesma linha de raciocínio, em sede de responsabilização civil, caberá à EFPC provar na Justiça do Trabalho que, além do dano e do nexo de causalidade, houve desonestidade ou desídia do empregado no desempenho das suas funções (Art 482 a) e e) da CLT.

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1 Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Art. 63. Os administradores de entidade, os procuradores com poderes de gestão, os membros de conselhos estatutários, o interventor e o liquidante responderão civilmente pelos danos ou prejuízos que causarem, por ação ou omissão, às entidades de previdência complementar.

2 Parágrafo único. São também responsáveis, na forma do caput, os administradores dos patrocinadores ou instituidores, os atuários, os auditores independentes, os avaliadores de gestão e outros profissionais que prestem serviços técnicos à entidade, diretamente ou por intermédio de pessoa jurídica contratada.  

3 "De fato, se probidade significa "honestidade", "retidão", a conduta do ímprobo tem que estar lastreada na desonestidade ou na falta de retidão."  Hely Lopes Meirelles, 42ª Edição Direito Administrativo Brasileiro, 2015. p. 136

4 Art. 142. Aceito o mandato, o mandatário é obrigado a cumpri-lo segundo as ordens e instruções do comitente; empregando na sua execução a mesma diligência que qualquer comerciante ativo e probo costuma empregar na gerência dos seus próprios negócios.

5 Art. 116. A sociedade anônima ou companhia será administrada por um ou mais diretores, acionistas ou não, residentes no país, escolhidos pela assembleia geral, que poderá destituí-los a todo tempo. [...] § 7º Os diretores deverão empregar, no exercício de suas funções, tanto no interesse da empresa, como no do bem público, a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar, na administração de seus próprios negócios.

6 Do que devemos falar antes de processar um administrador de EFPC? p.47/50. Revista da Previdência Complementar [Eletrônico] (REVISTA) n. 433 (Março/Abril 2021), p.47/50. https://biblioteca.sophia.com.br/terminal/9147/VisualizadorPdf?codigoArquivo=56052 

7 "[...]em causa, são os fundamentos e os procedimentos adoptados para a decisão encontrada e não os resultados propriamente ditos. É, pois, uma regra procedimental que evita que os administradores venham a ser responsabilizados quando as decisões se vieram a revelar más, uma vez que todo o procedimento adoptado para lá chegar foi o mais apropriado." PIMENTEL ALVES, Business Judgement Rule: Uma cláusula de (ir)responsabilidade dos administradores nas sociedades comerciais. p. 20.

8 Há uma chave para começar a compreender a diferença de tratamento entre a responsabilização médica e a de administradores. Enquanto do médico se espera que reduza o risco ao mínimo, do administrador é exigido que exponha a sociedade comercial a um nível adequado de riscos.

9 Art. 3º. Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.

10 Art. 482. Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador: [...] h) ato de indisciplina ou de insubordinação;

11 Art. 482. Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador: a) ato de improbidade;

12 Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:         [...]

VI as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho; 

13 Art. 482. Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador: a) ato de improbidade; [...] e) desídia no desempenho das respectivas funções;

14 Art. 9º § 1º. A aplicação dos recursos correspondentes às reservas, às provisões e aos fundos de que trata o caput será feita conforme diretrizes estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional. 

15 Art. 4º. Na aplicação dos recursos dos planos, os administradores da EFPC devem:  I - observar os princípios de segurança, rentabilidade, solvência, liquidez e transparência; II - exercer suas atividades com boa fé, lealdade e diligência; III - zelar por elevados padrões éticos; e  IV - adotar práticas que garantam o cumprimento do seu dever fiduciário em relação aos participantes dos planos de benefícios.

16 Resoluções anteriores a exemplo da Res. CMN 3.121/2003 traziam elementos mais genéricos como o dever de administradores no Art.6ºII "Além da observância das disposições desta resolução e do anexo regulamento, incumbe aos administradores das entidades fechadas de previdência complementar: [...] II - zelar pela promoção de elevados padrões éticos na condução das operações relativas às aplicações dos recursos dos planos de benefícios da entidade."; e no art. 1º do anexo da mesma resolução "Os recursos garantidores das reservas técnicas dos planos de benefícios das entidades fechadas de previdência complementar constituídas de acordo com os critérios fixados pelo Conselho de Gestão da Previdência Complementar, bem como aqueles de qualquer origem ou natureza, correspondentes às demais reservas, fundos e provisões, devem ser aplicados conforme as diretrizes deste regulamento, tendo presentes as condições de segurança, rentabilidade, solvência e liquidez."

Apenas como um exemplo, o CRPC considerou que o padrão de pessoa ativa e proba deve ser seguido pelos empregados sem poder de gestão. Curiosamente, pela influência do direito estrangeiro também vem sendo utilizada a expressão americana traduzida do "homem prudente"

[CRPC 131/2019/CGDC/DICOL - 44011.003285/2017-33 

Renato de Mello Gomes dos Santos

Renato de Mello Gomes dos Santos

Mestre em Direito dos Contratos e da Empresa - Universidade do Minho - Braga; MBA Gestão de Negócios IBMEC; Graduado UFRJ; Pós-Graduado - Direito Consumidor - EMERJ; Advogado no Brasil e em Portugal

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