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O seguro de transporte e o roubo de carga: Circunstâncias e perspectivas

O rumo da jurisprudência neste assunto será decisivo para mudança positiva de comportamentos, realinhamento geral de condutas e, quem sabe, a efetiva promoção do bem comum.

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Atualizado às 09:14

Enunciado 15 - No roubo de carga objeto de contrato de transporte terrestre, é cabível o direito de regresso, se assim o autorizam as circunstâncias fáticas, ainda que exista cláusula de renúncia pela seguradora nas hipóteses em que houve agravamento do risco ou culpa do transportador.

Precedentes: PROCESSO RELATOR(A) JULGAMENTO AC 1002183-60.2016.8.26.0229 Mendes Pereira 13/2/19

Desde a época em que era estagiário do saudoso mestre Rubens Walter Machado, a quem devo minha carreira, o tema roubo de carga no transporte rodoviário de carga toma boa parte da minha atenção.

Sempre acreditei que o roubo não é, em um país como o Brasil, causa-eficiente para a tipificação da força maior em favor do transportador.

Tratando-se de algo infelizmente comum, o roubo não é algo extraordinário e a inibir a vontade original do transportador de cumprir a obrigação assumida perante o dono (ou o consignatário) da carga, mas um risco do negócio.

E em sendo risco do negócio, o roubo é, no máximo, fortuito interno, não externo, incapaz, portanto, de romper o nexo causal e de afastar o dever de reparação civil (ou de ressarcimento em regresso) do transportador.

Insisto, sempre acreditei nisso e escrevi bastante a respeito, fortalecendo a cada oportunidade os argumentos jurídicos.

Como advogado, postulando em defesa das seguradoras das cargas contra os transportadores rodoviários ganhei inicialmente alguns casos e senti que poderia ajudar a mudar a visão jurisprudencial sobre o assunto.

Acreditei que a imputação de responsabilidade aos transportadores motivaria nova postura do Estado e empenho em seu dever constitucional de cuidar da segurança pública, agindo preventiva e repressivamente no combate ao crime.

Tomado talvez pela vaidade e certamente por alguma ingenuidade, acreditei mesmo nessas mudanças.

Infelizmente, elas não vieram. Nem tanto aos poucos, as vitórias cederam espaços para as derrotas, a tese da fortuidade defendida pelos transportadores retomou os espaços perdidos, a jurisprudência consolidou-se em sentido diametralmente oposto ao meu entendimento e o Estado pouco ou nada fez para combater eficazmente a prática dos roubos de cargas nas estradas e rodovias brasileiras.

Fui obrigado por um bom tempo e mudar meus pareceres, porém jamais mudei de opinião, muito menos deixei de lado a tese de que o roubo é causa de imputação de responsabilidade ao transportador, um ônus que lhe compete assumir.

Como quase tudo em nossas vidas, a jurisprudência também é pendular, cambiária. Com o tempo, aprendi que decisões favoráveis não devem nos deixar em posições confortáveis e que as favoráveis não devem nos abater e mudar convicções (quando bem fundamentadas).

Segui adiante e certo de que, cedo ou tarde, com maior ou menor acidentalidade, a tese da fortuidade perderia fôlego e a posição sustentada desde minha juventude ganharia algum.

E é exatamente isso o que tenho agora a dizer. Há em curso no cenário judicial brasileiro, ainda que paulatina e timidamente, autêntica mudança de paradigmas e um questionamento maior do selo da fortuidade em favor dos transportadores em casos de roubos de cargas.

Posso dizer que neste momento é possível, sim, questionar a fortuidade e se levar adiante pleitos de reparação de dano ou de ressarcimento em regresso contra transportadores rodoviários que não forem, em tudo, absolutamente rigorosos no cuidado com o dever geral de cautela que lhes é exigido pelo Direito.

Em outras palavras: o que parece óbvio (e que foi por um tempo abandonado em nome de ortodoxia heterodoxa da responsabilidade civil) é finalmente visto como tal e posto corretamente em prática: a imputação ou não de responsabilidade do transportador, a caracterização ou não do roubo como fenômeno fortuito, a mantença ou o rompimento do nexo de causalidade dependerão fundamentalmente da análise atenciosa das particularidades de cada caso concreto.

Os fatos como realmente são guiarão os entendimentos judiciais e não suas aparências ou os rótulos jurídicos pré-orientados. Sem o mergulho cuidadoso no mar dos acontecimentos, impossível dizer de antemão se um transportador rodoviário poderá ou não se beneficiar da estampa da fortuidade em caso de roubo da carga sob seus cuidados.

Para que este momento possa ser compreendido e meu novo entusiasmo, por sua vez, justificado - agora revestido daquela medida de prudência que emerge da experiência e das frustrações - reproduzo breve ensaio que escrevi e que foi publicado em importantes sítios digitais, portais jurídicos renomados como os da Editora Roncarati, do Migalhas. O conteúdo do ensaio é parte integrante e inseparável desta exposição e antecede o desfecho que é justificadamente otimista.

A saber:

Na edição 744 do seu Informativo de Jurisprudência, o Superior Tribunal de Justiça, destacou decisão no EREsp 1.577.162, de relatoria do Ministro Moura Ribeiro, que reconhece o roubo de carga como causa excludente de responsabilidade da transportadora rodoviária.

Segundo o acórdão, "o roubo de carga em transporte rodoviário, mediante uso de arma de fogo, exclui a responsabilidade da transportadora perante a seguradora do proprietário da mercadoria transportada, quando adotadas as cautelas que razoavelmente dela se poderia esperar (...)".

Aparentemente, um golpe fatal aos que, como eu, defendem a ampla e integral responsabilidade do transportador rodoviário mesmo em caso de roubo, já que, sendo fenômeno comum, previsível, há de ser considerado risco do negócio de transporte, portanto fortuito interno, que não rompe o nexo de causalidade.

Digo aparentemente com aparente razão, com o perdão pelo trocadilho. Isso porque a decisão reconhece o roubo como causa excludente da presunção de responsabilidade do transportador, é verdade, porém deixa claro que essa exclusão só aproveitará à transportadora "quando adotadas as cautelas que razoavelmente dela se poderia esperar".

Em outras palavras: se a transportadora não cuidar de observar fielmente o dever geral de cautela, de que trata o art. 749 do Código Civil1, não será o roubo considerado causa legal excludente de responsabilidade, mas, antes, de imputação.

Por cautelas a serem adotadas e razoavelmente esperadas entendam-se as que se alinham ao conceito de domínio do estado da técnica (protocolos de segurança). Sabendo de antemão que a carga sob sua custódia pode ser roubada, a transportadora tem que envidar todos os esforços para diminuir ao máximo a probabilidade de evento.

Nesse sentido e naquilo que especialmente se conecta ao universo dos seguros, destaca-se o Plano de Gerenciamento de Riscos, que é espécie de síntese ordenada do estado da técnica, o guia de instruções do dever geral de cautela, o glossário dos protocolos de segurança.

Cada vez mais o Plano de Gerenciamento de Riscos ganha musculatura e seu atendimento há de ser encarado como parte dos deveres objetivos da transportadora, sendo qualquer desvio encarado como falta grave, situação implicadora de responsabilidade.

Pelo teor do fundamento judicial em comento, a possibilidade de se buscar a reparação de dano (pelo dono da carga) ou o ressarcimento em regresso (pelo segurador sub-rogado) não é vedada, muito pelo contrário. O que se exige é a reconfiguração da carga dinâmica da prova e a necessidade de se provar a culpa da transportadora.

Sim, a culpa, figura legal extraordinariamente requisitada ao cenário dos transportes de cargas. Sabemos todos que a responsabilidade civil da transportadora é objetiva, considerando-se sua condição de devedora de obrigação de resultado (contrato de transporte) e protagonista de atividade de risco (art. 927, parágrafo único, do Código Civil)2, de tal modo que à vítima do dano ou ao legítimo interessado não se faz necessário demonstrar nada além de autoria e nexo de causalidade. A responsabilidade da transportadora é presumida legalmente. Competirá à transportadora provar a existência de alguma causa legal excludente.

No caso específico do roubo, porém, é o interessado, vítima do dano, ou quem tiver legitimidade para tanto (como o segurador sub-rogado na busca do ressarcimento) que terá que provar descuido quanto ao dever geral de cautela, falha operacional que, de algum modo, ainda que às avessas, contribuiu para a ocorrência do roubo. Daí se falar em nova inversão do ônus da prova.

Por isso, novamente trazendo estes comentários ao plano do contrato de seguro, a importância de se dar ao atento cumprimento do Plano de Gerenciamento de Riscos o peso de bigorna e o valor de ouro. Sendo o roubo considerado causa excludente de responsabilidade da transportadora, caso fortuito ou força maior, elemento de rompimento do nexo causal, fortuito externo (em vez de interno), é razoável se exigir que nenhum desvio ao rol de protocolos de segurança seja tolerado.

Igualmente importante, portanto, o zelo escrupuloso nos trabalhos de regulação de sinistro, a fim de se identificar, com base na ontologia dos fatos e rigor técnico, eventual falha operacional do transportadora, conduta agravadora de risco, pois serão esses trabalhos a fonte hábil de desfiguração de fortuidade e de imputação de responsabilidade, a forma, talvez única, de se demonstrar que em caso concreto nem todas as cautelas razoavelmente esperadas foram tomadas.

A engenharia reversa aplica à decisão da Corte Superior é o caminho de salvaguarda dos legítimos interesses regressivos do mercado segurador relativamente ao seguro de transportes e ao tema roubo de carga no modo rodoviário. Tem-se que o entendimento firmado é o de o roubo ser, sim, causa de exclusão de responsabilidade da transportadora, todavia não de maneira absoluta. A fortuidade, segundo os fundamentos da razão de decidir, será deixado de lado quando não adotadas todas as cautelas razoavelmente esperadas.

Mesmo os mais fervorosos defensores da plena responsabilização da transportadora em casos de roubo de carga, sem necessidade de apuração de conduta agravadora ou de desvio do dever geral de cautela, enxerga no acórdão relatado pelo culto Ministro Moura Ribeiro (que, aliás, foi indicado em 2020 ao Prêmio Nobel da Paz por sua decisão, quando desembargador em São Paulo, fundada no chamado capitalismo humanista) razoabilidade e simetria na aplicação do Direito e distribuição da Justiça. A busca do ressarcimento em regresso pela seguradora da carga não é inibida, apenas dificultada em razão de um contexto compreensível e que vai muito além das relações contratuais de transportes e de seguros.

Em síntese: a decisão estudada consagra o selo da fortuidade ao roubo de carga, porém não inviabiliza a busca da reparação civil ou do ressarcimento em regresso, dependendo seu exercício das particularidades do caso concreto e da observação ou não, pela transportadora, do dever geral de cautela, que é legal e passível de veraz constatação.

Aplica-se ao assunto o famoso binômio circunstâncias e perspectivas, tão bem tratado no campo filosófico por José Ortega y Gasset e que ouso traduzir desta forma aos campos férteis do Direito dos Seguros e do Direito dos Transportes: a perspectiva de eventual imputação de responsabilidade de transportadora pelo roubo da carga confiada para transporte dependerá das circunstâncias: apuração de desvio de conduta, de eventual contribuição para a ocorrência.

Por fim, cabe dizer que há ainda na decisão um fundamento precioso ao Direito do Seguro e que merecerá, em breve, comentário mais aprofundado, específico, e que neste momento é apenas saudado por pertinência lógica.

Reporto-me ao trecho do acórdão que, a fim de ilustrar o cabimento da fortuidade, afirma expressamente que: "(...) assim como a conduta direta do segurado que agravar o risco da cobertura contratada, por ato culposo ou doloso, acarreta exoneração do dever da seguradora do pagamento da indenização.".

A afirmação judicial há de ser gravada com letras de fogo no mais valioso mármore, porque preciosa e digna de aplausos. Mais do que ao seguro de transporte, dado o contexto em que feita, cabe ao Seguro de Responsabilidade Civil do Transportador Rodoviário de Carga (RCTR-C), que é obrigatório, e, mesmo, ao Seguro de Responsabilidade Civil Facultativa - Desvio de Carga (RCF-DC), nos quais o segurado é a transportadora.

Pelo entendimento firmado, quase com cores de Precedente, a transportadora rodoviário que descuidar de forma irrazoável dos seus deveres e agir temerariamente, agravando o risco e /ou a probabilidade de evento, perderá o direito de recebimento da indenização (à base de reembolso) e nada poderá cobrar do segurador.

O contrato de seguro é um negócio muito sério, revestido de inegável função social e de interesses poliédricos. Não pode de modo algum ser tratado com menoscabo por quem quer que seja. O segurado tem que preservar sua saúde e entender que a proteção securitária não é um salvo conduto para condutas que ofendam o bom-senso e tudo o que se tem por razoável.

A transportadora que despreza o dever geral de cautela, que não se guia pelas normas da Lex Artis de sua atividade, que atenta contra os protocolos de segurança e o Plano de Gerenciamento de Risco e, com tudo isso, dilata deliberadamente as chances de roubo da carga sob sua posse direta, perderá, na condição de segurada, a indenização que lhe caberia se houvesse atuado com bom-senso. Protege-se, assim, os legítimos interesses e direitos do colégio de segurados, o princípio do mutualismo, a boa-fé objetiva e a saúde do negócio de seguro, algo que a todos interessa.

Pois bem.

O ensaio que imediatamente acima reproduzi era e é animador porque inspirado por entendimento forte do Superior Tribunal de Justiça, dispensando-se, aqui, neste instante, maiores argumentos.

Esse ânimo dilatou-se substancialmente com nova e poderosa posição do Poder Judiciário a endossar a ideia de que o roubo de carga pode, sim, imputar dever de reparação ou de ressarcimento ao transportador.

Falo de Enunciado do Tribunal de Justiça de São Paulo que lançou luzes ao assunto e fortaleceu a posição daqueles que, como eu, defendiam e defendem a responsabilidade civil dos transportadores rodoviários mesmo nos casos de roubos das cargas entregues para transporte.

Estava, então, em um curso de aprofundamento em Direito dos Seguros e dos Resseguros quando soube da boa nova e tratei de divulgá-la amplamente ao mercado segurador, fazendo-o por meio da seguinte mensagem eletrônica, de 21/10/22.

Abro aspas

Boa tarde a todos.

Grande notícia para o mercado segurador, ramo de transportes.

O TJ/SP publicou seu Enunciado 15 pelo qual possibilita o ressarcimento contra o transportador mesmo em caso de roubo de carga e diante da existência de cláusula DDR (Dispensa do Direito de Regresso).

Esse enunciado causa-me profunda alegria porque ecoa tese há muito tempo defendida, conforme ensaio anexo.

Certamente será tema para mais um artigo e algo a ser incorporado aos pareceres e litígios, em curso e futuros.

Em termos práticos e objetivo, entendo que a Justiça paulista consagrou a (re)conversão da responsabilidade objetiva em subjetiva, pontualmente para o assunto.

E, cá entre nós, considerando o que até então ocorria, a reconversão é magnífica, digna de elogios.

Penso que, mais do que nunca, a regulação de cada sinistro de roubo será muito importante, pois ela que determinará a possibilidade ou não de ressarcimento e de aproveitamento ou não do benefício clausular de isenção do direito de regresso.

Enfim, a medida da força maior será dada pelo metro da singularidade factual.

Como isso será cotidianamente, impossível prognóstico seguro. A notícia, porém, é ótima e há de ser festejada.

Agradeço a todos pela sempre gentil e honrosa atenção.

Segue a notícia oficialmente publicada:

TJ-SP - Cad. Administrativo

Disponibilização:  quinta-feira, 20 de outubro de 2022.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA SEÇÃO I ATOS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Subseção I: Atos e comunicados da Presidência da Seção de Direito Privado

PRESIDÊNCIA DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO NOVOS ENUNCIADOS DA SEÇÃO (NºS 11 a 16) CONSIDERANDO que o art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição da República assegura a todos a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação; CONSIDERANDO a relevância dos precedentes judiciais para a promoção da segurança e estabilidade jurídicas, com celeridade, na atividade pública de distribuição da justiça; CONSIDERANDO o disposto nos arts. 926 e 927 da lei 13.105/15 ? Código de Processo Civil (CPC), assim como os ditames dos arts. 190 e seguintes do Regimento Interno deste Egrégio Tribunal de Justiça (RITJSP); CONSIDERANDO os termos da Recomendação 134, de 9 de setembro de 2022, do Egrégio Conselho Nacional de Justiça (CNJ); CONSIDERANDO o brilhante trabalho desempenhado pelos integrantes do Grupo de Estudos sobre Enunciados e Súmulas desta Seção de Direito Privado, assim como pelos i. membros da Colenda Turma Especial da Subseção II de Direito Privado; CONSIDERANDO o quanto decidido, pela Colenda Turma Especial da Subseção II de Direito Privado, no Expediente Administrativo (CPA) 2022/56071, ao ensejo da Sessão realizada em 22 de setembro de 2022; CONSIDERANDO, finalmente, o teor da r. decisão desta Presidência de Seção proferida ao ensejo do encerramento do mesmo Expediente Administrativo (CPA) 2022/56071; A PRESIDÊNCIA DA SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO publica, para conhecimento, os Enunciados 11 a 16 , aprovados pela Colenda Turma Especial da Subseção II de Direito Privado em sessão realizada aos 22 de setembro de 2022, com indicação dos julgados que os originaram:

Enunciado 15 - No roubo de carga objeto de contrato de transporte terrestre, é cabível o direito de regresso, se assim o autorizam as circunstâncias fáticas, ainda que exista cláusula de renúncia pela seguradora nas hipóteses em que houve agravamento do risco ou culpa do transportador. Precedentes: PROCESSO RELATOR(A) JULGAMENTO AC 1002183-60.2016.8.26.0229 Mendes Pereira 13/2/19

Despeço-me com fotos de ótimo final de semana.

De Montevidéu, primavera de 2022

Fecho aspas

Pelo teor do Enunciado posso, mais do que nunca, dizer que é, sim, possível se buscar a reparação civil ou o ressarcimento em regresso contra o transportador rodoviário que não observar rigorosamente o dever geral de cautela, de que trata o art. 749 do Código Civil, os protocolos de segurança de sua atividade e o domínio do estado da técnica.

Em outras palavras: o roubo de carga será ou não inserido na cláusula de incolumidade a depender dos fatos e da conduta de cada transportador. E isso é muito justo, já que ao transportador é dado o poder de controle da atividade, de tal modo que donos e consignatários de cargas, bem como seus seguradores, nada podem fazer senão confiar no zelo daquele e na vontade inafastável de cumprir a obrigação assumida.

E interessante que o Enunciado foi até além do que sempre desejado. Houvesse parado em sua primeira metade e eu já seria um advogado bastante feliz com seus fundamentos, mas ele foi além e deixou muito claro que mesmo munido do benefício de isenção clausular de regresso, o transportador poderá responder pelos danos e prejuízos do roubo se assim as circunstâncias fáticas permitirem.

Dentro do cenário do Direito dos Seguros, que é sempre o que imediatamente me interessa, posso imaginar que o Enunciado impacta positivamente na carteira de transportes e nas de seguro de responsabilidade civil do transportador rodoviário de carga, seja o obrigatório e geral, seja o facultativo e específico de desvio de carga.

Ora, no caso do seguro de transporte o impacto é absolutamente evidente e tem a ver com o que até aqui se defendeu: a viabilidade efetiva do exercício pleno do ressarcimento com imputação de responsabilidade do transportador. Já nos seguros de responsabilidade civil, a influência reside na possibilidade de as seguradoras negarem indenizações aos transportadores que não cumprirem seus deveres objetivos e subjetivos, agravando o coeficiente de sinistralidade e a probabilidade de evento.

Mais do que nunca o PGR - Plano de Gerenciamento de Risco assume protagonismo nas relações jurídicas entre transportador e dono da carga e entre transportador, segurado, e segurador. Seu fiel ou não cumprimento permitirá: 1) imputação de responsabilidade e dever de ressarcimento ao transportador, não se lhe sendo aproveitável sequer a existência de cláusula de isenção de direito de regresso; e 2) o não recebimento de indenização dos seguros de responsabilidade civil por grave ofensa aos termos e condições do contrato de seguro.

Com o Enunciado é restabelecido o equilíbrio de forças que estava adernado pela aplicação indistinta da fortuidade. A visão anterior, com todo respeito, incentivava, ainda que às avessas, menor comprometimento do transportador com a prestação de serviços e o encarecimento dos prêmios de seguros. Tratava-se de verdadeira cláusula de irresponsabilidade e em nada contribuía para o diálogo entre os agentes políticos do Estado e os protagonistas privados da Economia para a amenização do gravíssimo problema dos roubos de cargas, que tanto prejuízo causa diariamente à sociedade brasileira.

Agora, espera-se, tudo isso tem enorme chance de mudar, porque o transportador não poderá mais usar o conceito de força maior e a cláusula de isenção do direito de regresso como espécies de salvo-condutos para o arrepio inescusavelmente culposo, quando não inacreditavelmente voluntário, dos procedimentos e normas da Lex Artis de sua atividade e do atendimento necessariamente escrupuloso do Plano de Gerenciamento de Riscos.

Há, sim, motivos para grande ânimo, positivas expectativas e alvissareiras perspectivas, pois as falhas operacionais não mais serão protegidas, ao menos automaticamente e com o peso de verdades absolutas, pelos escudos da força maior e da isenção de regresso.

Evidentemente que esses escudos continuarão a existir - e é bom, justo e necessário que existam - e a cumprir sua função que é a de proteger quem realmente faz jus e os empunha com correição. A força maior sempre será causa de rompimento do nexo causal e de exclusão de responsabilidade, sendo sua incidência vinculada à ontologia dos fatos. O roubo tanto dela mais se aproximará ou não conforme as circunstâncias de sua ocorrência. Igualmente, cláusula de isenção do direito de regresso, que é sempre válida e interessante economicamente aos atores dos transportes e dos seguros, será ou não eficaz, projetará ou não seus efeitos, se os transportadores cuidarem do bom cumprimento dos seus deveres obrigacionais de guarda, zelo, proteção e entrega de cada coisa confiada remuneradamente.

O transporte de cargas é vital para o crescimento econômico e o desenvolvimento social. Trata-se de atividade estratégica e que interessa de perto ao Estado, ao Governo e ao povo. Não peco por exagero ao dizer que é um dos meios pelos quais a paz social é garantida. Sem transporte não há abastecimento de coisas e esta é gatilho de graves distúrbios, senão comoções sociais. Além disso tudo, as histórias dos transportes de coisas e do negócio de seguro confundem-se, de tal modo que um praticamente não existe sem o outro.

Diante disso tudo é que festejo a decisão aqui abordado do Superior Tribunal de Justiça e, mais ainda, o poderoso Enunciado nº 15 do Tribunal de Justiça de São Paulo, porque deixam as coisas nos seus devidos e justos lugares. Com elas não haverá mais, assim espero, quadrados redondos. O ressarcimento, elemento fundamental para a saúde do seguro não será prejudicado de antemão e o transportador atencioso aos seus deveres não sofrerá qualquer prejuízo.

Observadas as cautelas que dele razoavelmente são esperadas, demonstrada a ausência de desvio dos protocolos de segurança e o cumprimento do Plano de Gerenciamento de Riscos, ele não responderá pelo roubo da carga sob sua custódia e se beneficiará plenamente da cláusula de isenção de regresso que, antes, se lhe foi concedida.

No caso específico do Plano de Gerenciamento de Riscos, cabe, aqui, observar que seu fiel cumprimento tem três consequências jurídicas imediatas, quase absolutas, sendo uma delas também de natureza prática e factual Tem-se que a sensível redução da probabilidade de evento reduzida ao nível quase zero, porque se o transportador cuidar de tudo o que gerenciador determinar, dificilmente o roubo ocorrerá e, se ocorrer, restarão previamente configuradas a isenção de regresso clausular, quando houver, e a própria força maior.

Ora, a atenção ao Plano de Gerenciamento de Riscos, mais do que um dever. é um direito do transportador, ao menos o que respeita o usuário dos seus serviços e aspira ao crescimento contínuo. Fala-se em direito porque é o melhor meio de defesa, de aproveitamento de benefícios clausulares e de normas garantidoras dos seus interesses. É, em primeira e última análises, sua catequese operacional, o manual da quase certeza de proteção, e seu veraz dique de proteção quanto à imputação de responsabilidade. O Paraíso. Já a desatenção, o próprio Inferno, com as portas abertas e diante das quais toda esperança há de ser deixada.

Todavia, inobservadas as cautelas, comprovado pelo interessado (daí se falar em inversão da inversão do ônus da prova) o desvio protocolar e/ou descumprimento do Plano de Gerenciamento de Riscos, ele responderá pelos danos e prejuízos e não se beneficiará do conceito de força maior, ainda que beneficiário de cláusula de isenção do direito de regresso. E não é só: no caso dos seguros de responsabilidade civil, poderá perder, agora com mais razão do que antes, o direito de indenização.

Enfim, os seguradores com a decisão em destaque e, mais ainda, com o Enunciando aplaudido poderão, segundo as particularidades do caso concreto, buscar os ressarcimentos e proteger seus legítimos direitos e interesses, os do mútuo (colégio de segurados) e, indiretamente, os da sociedade, já que a todos interessa a eficácia e a excelência do setor de transportes, o fluxo de bens e riquezas e, sobretudo, a diminuição da criminalidade.

A desídia operacional, a desatenção administrativa, o descompromisso negocial e o erro substancial sobre o que é e como deve ser observado o contrato de seguro custarão muito caro aos que não se esforçarem para cumprir seus deveres e obrigações e dar a cada um o que é seu, tendo-se por certo que o princípio da eficiência é rigidamente imposto ao administrador público e, por arrastamento, esperado, senão exigido, de todo aquele que exerce atividade de risco, protagoniza a economia e se põe na ampla cadeia de interesses da Economia e da sociedade.

O rumo da jurisprudência neste assunto será decisivo para mudança positiva de comportamentos, realinhamento geral de condutas e, quem sabe, a efetiva promoção do bem comum.

Talvez a experiência e a prudência, fiéis companheiras de hoje, não tenham de todo afastado aquela parte boa de ingenuidade, irmã da esperança, aríete de conquistas, que era uma dor que me mordia como um lobo ao coração. Agora, o lobo uiva e isso não é pouca coisa.

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1 Art. 749. O transportador conduzirá a coisa ao seu destino, tomando todas as cautelas necessárias para mantê-la em bom estado e entregá-la no prazo ajustado ou previsto.

2 Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Paulo Henrique Cremoneze

Paulo Henrique Cremoneze

Advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes. Sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados. Mestre em Direito Internacional Privado. Especialista em Direito do Seguro.

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