O direito em disrupção - Inteligência artificial, mediação e justiça
Para se ter uma ideia, cada busca feita no Google, cada clique dado em uma loja e-commerce, cada cadastro feito na internet, gera informação para os algoritmos.
sexta-feira, 4 de novembro de 2022
Atualizado às 09:27
Numa velocidade crescente, novas tecnologias surgem e outras são aprimoradas, influenciando todas as áreas da nossa vida cotidiana, da vida privada à profissional, de relacionamento interpessoal às relações em grande escala nas redes sociais e assim por diante. É nesse contexto que observamos o aumento da utilização da Inteligência Artificial (IA), com suas inúmeras peculiaridades, funcionalidades e objetivos.
A IA avançou a passos largos (quase desenfreadamente!) na última década. Por isso, seu uso tem suscitado questionamentos em várias camadas da sociedade, revolucionado modelos tradicionais de tomada de decisão e de trabalho no século XXI. Atualmente, duas grandes indagações são recorrentes:
1. Até que ponto os seres humanos estão dependentes das máquinas?
2. Até que ponto os seres humanos são substituíveis por essas máquinas?
Desde 2011, o mundo absorve as formas de IA mais rapidamente. Tomemos, por exemplo, a Inteligência Artificial por trás de plataformas como o Google, Uber, AirBNB, Facebook, Instagram, Netflix, Tinder, entre outros. Esses aplicativos são regidos por algoritmos, que talvez consigam identificar nossos próprios gostos e preferências tão bem quanto nós mesmos, o que nos faz pensar nos limites possíveis para tal fato.
Para se ter uma ideia, cada busca feita no Google, cada clique dado em uma loja e-commerce, cada cadastro feito na internet, gera informação para os algoritmos e, com base na interpretação desses parâmetros, passam a sugerir produtos e serviços. Este universo de dados é chamado de The Big Data, e corresponde a um "El Dorado" para grandes corporações.
Conhecimento virou quase uma nova moeda, sendo que Israel, um dos principais ecossistemas de inovação do mundo, adotou o slogan "inovação é nosso recurso natural".
No mercado, novas formas de prestação de serviços e redes de relacionamento também estão sendo criadas e renovadas cada vez mais velozmente. O surgimento de crowd-working e de work-on-demand por meio de aplicativos também são evidências dessa era de transformação.
Por falar em transformação, hoje estamos em um momento interessante para observar a aceleração desse processo tecnológico devido à pandemia. Este artigo está sendo escrito em outubro de 2022, e chega a ser estarrecedora a comparação com o que éramos em 2019 e o que somos agora. Nesse intervalo, tornamo-nos muito mais dependentes e fomos quase tragados pelo mundo digital.
O DIREITO EM DISRUPÇÃO
Aqui, abrimos um espaço para comentar sob a ótica jurídica a prática da mediação com o uso da IA. No Brasil, por exemplo, as plataformas online e a IA estão ampliando com rapidez sua importância como uma das soluções para amenizar os problemas relacionados à lentidão do Judiciário e ao grande número de processos pendentes de julgamento (ou soluções).
Enquanto a resolução de conflitos na esfera judicial objetivava conter a crescente litigiosidade, a tecnologia veio trazer novas possibilidades e até mesmo um novo espectro para o quadro em questão (Maia & Gouvêa Neto, 2020)1
Espera-se que, a esta altura, advogados já tenham se indignado diante da análise dos dados do Justiça em Números2 e verificado os altos índices de judicialização no Brasil. Não à toa, basta constatar o tempo médio de um processo e o custo do uso da máquina do Judiciário. No mínimo, desnecessários e/ou inaceitáveis.
De toda forma, destaca-se aqui que, apenas no auge pandemia da Covid-19, em 2020, a Justiça brasileira recebeu 25,8 milhões de novos processos. Segundo o já mencionado relatório Justiça em Números publicado em 2021.
O tempo médio de tramitação dos processos no Brasil hoje é de 3 anos e 6 meses, levando em conta todos os ramos do Judiciário.
Além disso, nosso Judiciário é mais caro do que em qualquer outro país da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). No tocante ao porcentual de PIB, segundo estudo do Prof. Luciano Timm - "Propostas para uma reforma do sistema de Justiça no Brasil:
Como evitar a tragédia do poder judiciário"3 - publicado no projeto Millenium Papers, do Instituto Millenium, algumas soluções são analisadas para vencer os principais problemas do Judiciário: a morosidade, o excesso de litigância e a falta de acesso dos mais pobres à Justiça.
Sem dúvida, os dados são alarmantes e mostram um vício da sociedade de querer acionar o Judiciário a qualquer preço, por qualquer motivo, sufocando a estrutura de acesso à Justiça e, infelizmente, aumentando o risco de desfechos injustos.
Uma tentativa de se diminuir uma demanda tão alta de processos pendentes e novos foi a recente atualização da Resolução CNJ 125/2010 (Conselho Nacional de Justiça), que regulamenta a Política Judiciária de Tratamento de Conflitos.4
Em sua emenda 2ª, além de diversos outros ajustes importantes, foi introduzido o Sistema de Mediação Digital para permitir a resolução pré-processual de conflitos e, no interesse de cada Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal, a atuação consensual em processos judiciais em andamento.
No entanto, apesar de seus esforços recentes, principalmente em relação às nações mais desenvolvidas, o Brasil ainda está nos estágios iniciais para se tornar parte dessa realidade digital e resolver conflitos por meio de sistemas e procedimentos online. Em boa parte do mundo, já existe uma onda de plataformas desenvolvidas para facilitar, acelerar e catalisar tais processos.
Diminuir um volume tão alto de processos, especialmente os relacionados a consumo, mais procedimentais (geralmente não emocionais e com menos variáveis ??envolvidas), tornou-se imperativo para permitir que os tribunais brasileiros agilizem seus processos, foquem mais em casos mais complexos e adequados e, como resultado, entreguem melhores soluções para as partes envolvidas.
De modo geral, a plataforma ideal deve, oportuna e estrategicamente, disseminar informações de forma a alinhar as expectativas dos consumidores e das empresas e facilitar a celebração de acordos com ganhos mútuos. Além disso, deve também selecionar e apresentar opções que já foram utilizadas com sucesso por outros usuários, com a possibilidade de construir uma seleção de precedentes online para ajudar os consumidores a se prepararem para uma sessão de negociação ou mediação.
Independente dos benefícios claros, mas como acontece com frequência quando inovações são introduzidas em um ambiente profissional bem estabelecido, há alguma resistência à ideia de Plataformas de Resolução de Disputas Online. E sobre essa questão, voltamos à pergunta inicial do artigo:
Até que ponto os seres humanos podem ser substituídos por máquinas?
Quanto ao impacto e consequências no mercado de trabalho, as plataformas de IA irão inquestionavelmente poupar os indivíduos de atividades repetitivas no futuro, abrindo, assim, mais tempo para mais criatividade e outras atividades insubstituíveis como interação social e interconexão pessoal.
Diante desse cenário, podemos observar as mudanças nas profissões e nos critérios de recrutamento e seleção de profissionais pelas organizações. O que está em destaque é a demanda por Soft Skills (habilidades comportamentais/sociais), que são habilidades inerentes ao ser humano e que o torna, entre outros aspectos, mais apto a lidar com trabalho em equipe. O "X" da questão é que, se há uma demanda tão grande por esse tipo de atributo, isso representa uma adaptação do mercado e, tão cedo, máquinas não irão substituir seres humanos em boa parte das profissões. O que vemos, é uma absorção da tecnologia em algumas áreas nas quais a mão de obra necessita de otimização e automação em fases de produção.
Uma coisa que precisamos sempre ter em mente é:
Sempre será sobre gente! Máquinas não se reproduzem sozinhas, sua inteligência não é inata e nem se desenvolve sozinha. Ela precisa de um ser humano para ser construída e programada.
Do ponto de vista da Mediação, instituições bem estabelecidas já reconhecem essa tendência. Por exemplo, membros da Independent Standards Commission (ISC) do IMI criaram uma força tarefa especial, composta por líderes de pensamento e profissionais de destaque em E-Mediation para, entre outros objetivos, explorar e projetar um conjunto mensurável de critérios de competência para profissionais de todo o mundo. A Certificação de Competência IMI em Mediação Eletrônica ajudará os usuários a tomar decisões informadas ao escolher e nomear mediadores eletrônicos para negociações e Resolução de Disputas (DR).
Por fim, alguns especialistas de campo afirmam que, em termos gerais, a IA poderá substituir cerca de 45% das atividades realizadas em quase todos os setores e é inútil negar essa realidade irreversível. As plataformas de resolução de disputas online usando IA tenderão a aumentar e melhorar no futuro. Os advogados, como quaisquer outros prestadores de serviços, devem ver inovações, como a utilização da Mediação e da IA, como mais opções de ferramentas profissionais e usá-las a seu favor. Felizmente, nossa capacidade de criar empatia, avaliar e entender elementos culturais, gerenciar o comportamento humano, entre vários outros conjuntos de habilidades e competências, permanecerá insubstituível. Pelo menos, no futuro previsível.
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1 MAIA, A; GOUVÊA NETO, F. E-Book: Online Dispute Resolution (ODR). Disponível em: www.mediar360.com.br)
2 BRASIL.. Justiça em números 2021 / Conselho Nacional de Justiça. - Brasília: CNJ, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/relatorio-justica-em-numeros2021-12.pdf. Acesso em: 15 outi. 2022.
3 TIMM,Luciano. Estudo "Propostas para uma reforma do sistema de Justiça no Brasil: como evitar a tragédia do poder judiciário" disponível em: https://milleniumpapers.institutomillenium.org.br/. Acesso em 30 de jun de 2022.
4 https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/Resolucao_n_125-GP.pdf
Andrea Maia
Vice Presidente de Mediação do CBMA - Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA)