SEFAZ/RJ e a responsabilidade dos marketplaces
Novo modelo de tributação no Estado do Rio de Janeiro não pode colocar obstáculos sérios, ou mesmo inviabilizar, as atividades dos marketplaces.
quinta-feira, 3 de novembro de 2022
Atualizado às 08:11
Nos últimos anos, e principalmente em razão da pandemia ocasionada pela Covid-19, o comércio digital cresceu exponencialmente no Brasil. Neste cenário, os denominados marketplaces ganharam notoriedade por disponibilizarem um "espaço virtual" para que outros vendedores (sellers) consigam acessar um maior número de consumidores.
Em razão da ampliação deste modelo de negócio, iniciou-se o debate sobre eventual responsabilidade tributária das plataformas digitais pelo não recolhimento de tributos devidos pelo vendedor, na medida em que algumas Unidades da Federação realizaram movimentos legislativos1 com o objetivo de imputar às plataformas o dever de realizar o pagamento do imposto não recolhido pelos sellers.
No Estado do Rio de Janeiro, o tema ganhou maior relevância após a edição da lei 8.795/20, que alterou legislação ordinária de ICMS local (lei 2.657/96) para inserir os parágrafos 8º e 9º no art. 17 e o inciso IX no art. 18, dispositivos que passaram a prever a possibilidade de responsabilização das plataformas sempre quando deixarem de prestar as informações exigidas pela legislação, quando tiverem ciência da situação irregular dos contribuintes/vendedores e quando, em razão de descumprimento de outras previsões legais, concorrerem para o não recolhimento do Imposto.
O Órgão Especial do TJRJ, ao examinar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 0040214-33.2020.8.19.0000, proposta pelo então Deputado Estadual Francisco Siemsen Bulhões Carvalho da Fonseca, declarou constitucional o art. 18, IX, da lei estadual 8.795/20, validando, assim, a regra que responsabiliza os marketplaces pelo pagamento do ICMS devido e não pago pelos vendedores das mercadorias.
Seguindo o posicionamento da Procuradoria do Estado e da Procuradoria de Justiça, a Corte Estadual manifestou-se afirmando que a responsabilização estaria amparada pelos arts. 128 do CTN e 5º da lei complementar 87/96.
A avaliação do acórdão proferido pela Corte Especial do E. RJ revela, a nosso ver, que a constitucionalidade do dispositivo foi declarada com base em dois pilares objetivos.
Primeiro, que o modelo de negócio explorado por plataformas de marketplace vincula o player à venda de mercadoria e, consequentemente, ao fato gerador da obrigação tributária. Segundo, que a responsabilização somente ocorrerá nos casos em que a plataforma deixar de cooperar com o Estado, no que diz respeito à disponibilização de informações ao Fisco.
Quanto ao primeiro pilar, o entendimento pela aplicação do art. 128 do CTN deve ser analisado com cautela, ainda que se trate tão somente de operações com "contribuintes irregulares", sob pena de se ampliar demasiadamente a norma contida na lei federal.
Quando o art. 128 do CTN utiliza a expressão "vinculado ao fato gerador", diz respeito a dois pressupostos: a vinculação do terceiro à operação de compra e venda; e o acesso deste terceiro à riqueza oriunda daquela operação.
Nesse contexto, entendemos que a atividade de intermediação dos marketplaces não possui relação direta com a atividade de mercancia (fato gerador do ICMS). Isso porque, o serviço que estes players prestam consiste unicamente em facilitar o encontro entre vendedor e consumidor por intermédio de um meio digital.
É importante ressaltar que o modelo de negócio em destaque é utilizado em diferentes setores de todo o ecossistema do varejo. Vale dizer, existem plataformas de intermediação para compra e venda de uma gama enorme de tipos de mercadoria, como por exemplo, roupas, alimentos, bebidas etc.
Corroborando o tema, em um precedente (REsp 55.346), o STJ analisou a possibilidade de exigir das administradoras de cartão de crédito o ISS devido pelos estabelecimentos a elas filiadas e cujo pagamento era realizado com cartão.
Nesta situação, entendeu o STJ que o fato gerador ocorreria entre o estabelecimento filiado (isto é, o estabelecimento que prestou o serviço) e o usuário do serviço que realiza o pagamento com cartão, sendo que a administradora - cujos papéis são, basicamente, o de agenciamento de clientes e o de pagamento aos prestadores - não teria nenhuma relação com o fato gerador praticado pelos prestadores a elas filiados.
Tal raciocínio se aplica por analogia aos marketplaces, cujo papel é o de agenciamento e facilitação da transação financeira.
Destaca-se que a situação dos marketplaces é ainda mais desvinculada do fato gerador praticado pelos sellers nelas cadastrados. Isso porque, no caso examinado pelo STJ, tanto as administradoras de cartão como os prestadores de serviço são contribuintes do ISS, ao passo que, no caso dos marketplaces, apenas os vendedores vinculados às plataformas é que são contribuintes do ICMS.
Admitir a interpretação do art. 128 de forma extensiva, significa enxergar como factível atribuir ao shopping center o dever de fiscalizar os lojistas e, no limite, realizar o recolhimento do ICMS que eventualmente deixou de ser recolhido.
Outrossim, para que as legislações estaduais atribuam às plataformas a responsabilidade pelo recolhimento do ICMS eventualmente não pago pelos sellers, tal como dispõe o art. 128 do CTN, seria mais razoável que atribuíssem algum mecanismo de recuperação desse valor, como a retenção, por exemplo.
No que diz respeito ao segundo pilar indicado pela Corte do Estado do Rio de Janeiro, sustenta a Fiscalização que a responsabilização das plataformas recairá, tão somente, àquelas que não cooperarem com a disponibilização de informações a respeito das vendas intermediadas.
Embora tenha se construído argumento em prol do interesse público (afinal, eliminar os sonegadores, em teoria, fomenta a concorrência leal no mercado), a redação do recém-criado §8º ao art. 17 permite que a SEFAZ/RJ institua qualquer tipo de obrigação acessória às plataformas.
A depender da complexidade das informações buscadas pela Fazenda, o movimento que tem por objetivo construir um ambiente teoricamente mais competitivo pode inviabilizar a manutenção das plataformas em território fluminense, o que geraria danoso impacto para diversos pequenos e médios empreendedores que dependem deste importante canal para escalar suas vendas.
Nesse contexto, em Audiência Pública realizada no dia 20/10/22, a Secretaria de Fazenda Fluminense reforçou que vem estruturando a regulamentação da lei justamente para criar obrigações acessórias factíveis de serem cumpridas pelas plataformas, mas que auxiliem o Fisco no combate à inadimplência do ICMS.
O mercado, por sua vez, espera que a SEFAZ leve em consideração alguns contornos importantes.
O modelo de negócio explorado pelas plataformas é dinâmico e atende a diferentes setores do varejo, cada um com as suas particularidades. Diversos sellers são microempreendedores e, em alguns casos, dispensados de emitir documento fiscal. Eventual complexidade criada em benefício da arrecadação pode acabar por inviabilizar operações e contribuir para um maior esvaziamento da atividade empreendedora.
O tema certamente ganhará mais discussões no futuro. O que resta, agora, é aguardar a edição do Decreto regulamentador e esperar que este novo modelo de tributação não acabe por colocar obstáculos sérios, ou mesmo inviabilizar, as atividades dos marketplaces.
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1 Lei 13.918/09 no Estado de São Paulo e lei 11.081/20 no Estado do Mato Grosso.
Augusto Chimborski
Advogado no escritório Gaia Silva Gaede Advogados. Pós-Graduando em Direito Tributário pelo IBET. Bacharel em Direito pela UP. Membro da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/PR.
Jorge Luiz de Brito Júnior
Sócio de Gaia Silva Gaede Advogados e Mestre em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP
Raphael Nóbrega de Andrade
Advogado do Gaia Silva Gaede Advogados, no Rio de Janeiro.