A arbitragem e o direito bancário
Neste artigo, nosso intuito é o de examinar eventuais particularidades do direito bancário diante da utilização da arbitragem, em termos de oportunidade, validade e eficácia.
quinta-feira, 3 de novembro de 2022
Atualizado às 08:05
Os operadores do direito afeitos à arbitragem sabem que esse instituto se aplica à solução de conflitos inerentes a direitos patrimoniais disponíveis, como uma alternativa ao Judiciário. Neste artigo, nosso intuito é o de examinar eventuais particularidades do direito bancário diante da utilização da arbitragem, em termos de oportunidade, validade e eficácia.
Em primeiro lugar, devemos fazer a identificação das relações do direito bancário com outros microssistemas quanto à utilização da arbitragem, merecendo especial destaque o direito trabalhista e o direito do consumidor.
No tocante ao direito trabalhista, não vemos diferenças sensíveis entre a situação jurídica dos empregados dos demais tipos de empresas e das instituições financeiras, que não sejam eventualmente relacionadas a uma jornada diferenciada de trabalho. Neste particular, identificados direitos trabalhistas disponíveis, nada impede que a arbitragem possa ser utilizada para a solução dos conflitos que surjam em tal ambiente, destacando a questão dos custos, os quais podem ser muito elevados, observando que têm sido criadas câmaras de arbitragem especializadas nessa área. Se essa é a opção, as instituições financeiras devem caracterizar muito claramente que não houve abuso diante do seu empregado na assinatura por este da cláusula compromissória, devendo ser feita por meio da sua aceitação em separado, com destaque, a par da verificação de que o acesso à arbitragem não será financeiramente pesado demais para o colaborador. Isso dependerá também de tipos especiais de arbitragens mais baratas e mais ágeis em quaisquer câmaras, colocadas à disposição dos interessados, que recorrerão de forma mais frequente ao árbitro único. É o caso, por exemplo, da arbitragem expedita.
Fazendo a análise no campo do direito do consumidor, devemos atentar para o fato de que a sua aplicação no ambiente das instituições financeiras ocorre basicamente quanto à prestação de serviços, sabendo-se que a questão da taxa de juros é afeta ao regulador, no caso, o Banco Central do Brasil. Nesse sentido, as relações bancárias de consumo podem ser resolvidas pelo recurso à arbitragem, com o surgimento do mesmo problema de custos elevados que a podem tornar inviável para o cliente do banco, conforme referido acima. Soluções tecnológicas que vêm sendo utilizadas em plataformas privadas de negociação virtual (ou negociação "on line") podem ser úteis para barateamento do custo de litígios massificados, nos casos em que a autocomposição não surtir resultado e, subsidiariamente, a arbitragem for necessária.
Quanto ao microssistema jurídico formado pelo direito bancário, uma observação preliminar dá-se quanto à forma de celebração das operações correspondentes. Até algum tempo atrás, nós ensinávamos aos nossos alunos dessa disciplina que as instituições financeiras não se apresentavam em situação de oferta permanente, como geralmente acontece em muitos estabelecimentos comerciais. Nestes, o cliente pega um produto na prateleira, em cuja embalagem encontram-se as informações necessárias para a compra, que pode incluir o preço e, de posse dele, o cliente dirige-se ao caixa onde faz o pagamento, notando-se que o vendedor não pode negar-se a fazer a operação.
No direito bancário tradicional as coisas não ocorrem como acima. Interessado em algum produto financeiro como uma aplicação ou empréstimo, o cliente solicita informações e informa ao banco a respeito do seu interesse, indagando sobre quais sejam as modalidades disponíveis e as suas condições, fazendo, em seguida, uma proposta. Esta pode ser aceita ou não, dependendo da análise que o banco faz em relação à capacidade financeira do cliente e ao risco que, quanto a ele, particularmente assumiria. E isto acontece tanto nas relações de consumo como naquelas em que se aplica o direito bancário comum, digamos assim.
No entanto, de alguns anos a esta parte, principalmente como resultado da utilização das novas tecnologias no sistema bancário, alguns produtos estão sendo oferecidos na forma de prateleira, bastando o cliente acessar o site da instituição escolhida, selecionar a operação, informando-se sobre a taxa de juros correspondente, e, assim, realizando o fechamento, o que se faz possível em função de, na relação anterior com ela estabelecido, já lhe ter sido concedido um crédito dentro de determinado limite - crédito pré-aprovado.
Em quaisquer das duas situações acima será necessário identificar a natureza da operação, se de consumo ou não, para o efeito da aplicação do direito correspondente, e escolhida ou não a arbitragem como o caminho para a discussão de pendências que possam surgir em função da contratação.
Outra questão fundamental na arbitragem bancária está no elevado tecnicismo que revestem as operações realizadas no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, notando-se praticamente inexistente ou muito pobre o ensino do direito bancário nas faculdades, no melhor dos casos sendo a ele dedicado tão somente um semestre nos cursos de graduação, o que dá tão somente para se ter uma breve visão sobre um campo de possibilidades tão vastas e profundas.
Como se pode perceber, o direito bancário é aprendido de forma empírica nas próprias instituições financeiras e nos escritórios de advocacia que as tenham como clientes usuais. E esse aprendizado, como se pode perceber, é assistemático e acidental quanto à teoria geral do direito bancário e suas diversas ramificações nos microssistemas que a integram. Pouquíssimos cursos de pós-graduação suprimem em parte essa significativa lacuna.
Iniciativas valiosas têm sido adotadas para que o conhecimento do direito bancário se difunda, como acontece com comitês especializados organizados por algumas entidades como o IASP, a OAB e a Escola Paulista da Magistratura (Órgão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo), mas ainda se revelam altamente insuficientes para tal fim.
Ora, desde muito tempo a característica fundamental dos bancos está em que eles recebem dinheiro de clientes originados de depósitos e da compra de títulos e emprestam os valores correspondentes a terceiros que deles necessitam. Isso caracteriza o papel daquelas instituições como intermediários financeiros, ou seja, emprestam recursos que deverão devolver a pedido dos depositantes ou no vencimento dos títulos negociados. O fato de que esses depósitos têm a natureza jurídica de irregulares - da qual resulta a transferência de sua propriedade para os depositários - isso não descaracteriza a obrigação de devolver na mesma espécie, qualidade e quantidade, exceto neste último caso, quanto ao acréscimo eventual de juros contratados. Essas considerações aplicam-se primariamente em relação aos chamados bancos comerciais, sabendo-se que os de investimento atuam em operações de natureza eventualmente mais diferenciada e complexa, precisamente o campo em que arbitragens poderão ser instauradas para a solução de pendências dessa natureza, enfrentando os julgadores mares muitas vezes revoltos, ainda não navegados por muitos deles - é o caso das operações estruturadas de dívida, crédito no atacado, mergers and acquisitions, oferta pública de valores mobiliários, emissões privadas de títulos, repasse de empréstimos, administração de fundos de investimento, operações com derivativos do mercado de balcão organizado e fianças estruturadas.
Sabe-se, a propósito, que os operadores do direito são quase inteiramente jejunos quanto ao direito bancário, ao mesmo tempo em que a criatividade dos operadores funciona a todo o vapor, vinte e quatro horas por dia, inclusive sob o influxo de inovações de produtos financeiros provindas do Exterior, dando à luz operações novas ou lhes conferindo uma roupagem diferenciada quanto a operações já existentes. Isso leva a duas consequências interligadas. No tocante à primeira, aumenta o fosso do desconhecimento do direito bancário pelos seus operadores jurídicos. A segunda, muito séria, diz respeito ao nascimento de operações que não preenchem os requisitos jurídicos de validade e de eficácia, porque ferem alguma norma cogente. E não se fala aqui propriamente do ilícito deliberado, mas do que poderíamos chamar de ilícito fortuito, ou seja, aquele que nasce precisamente da ignorância do direito em geral e do direito bancário em particular.
E quando a arbitragem é o caminho escolhido para dirimir questões de direito bancário surge o ingente problema da escolha do tribunal arbitral que as enfrentará, devidamente preparado para tanto, como resultado de uma formação técnica e jurídica que o torne apto a dar conta de sua tarefa julgadora. Como se pode verificar no rol das câmaras de arbitragens, não há muitos deles, ali colocados para a escolha dos interessados, precisamente como fruto das insuficiências acima apontadas, que não serão superadas facilmente.
O problema se agrava ainda mais quando se torna necessário entender o mundo das novas tecnologias, da qual fazem parte os algoritmos, os robôs (que interagem com os clientes, os chabots), os smart contracts (no tocante à sua discutida autonomia operacional), os ativos digitais, novos meios de pagamento etc. Nunca é demais ressaltar que o direito tradicional, ora posto, não estaria preparado para enfrentar adequadamente - ou, em uma visão pessimista, de forma alguma - esse mundo tecnológico novo. Para tanto, o operador do direito necessitará revestir-se de uma base muito forte no plano das teorias gerais do direito e do contrato, entre outras, fundamentalmente, para poder identificar sobre qual base jurídica conhecida estaria erigida uma nova operação, despida da roupa tecnológica e mostrada no seu âmago material. Essa é a velhíssima tarefa da pesquisa da natureza jurídica dos institutos, essencial para, quanto a eles, aplicar-se a solução adequada.
Neste passo, creio que podemos arriscar um palpite no sentido de que jamais será criado um instituto jurídico inteiramente novo, mesmo no mercado bancário, quando, tanto quanto acontece nos demais, os contratos (operações) novos têm a natureza jurídica de mistos, ou seja, são formados pela conjugação de elementos de contratos antigos aos quais se acrescenta algum novo. Pode-se assim dizer com tranquilidade que no mercado bancário não há nada de absolutamente novo sob a luz do sol, mas as novidades, mesmo que em algum grau relativas, podem trazer efeitos jurídicos inesperados.
Diante de todo esse quadro, a escolha da arbitragem para a solução de litígios na área do direito bancários deve se dar relativamente à formação de tribunais arbitrais que o conheçam bem e que possam transitar pelas questões propostas nos casos concretos com a devida eficiência, sendo que, em certas situações, deverão ser buscados árbitros sob medida do ponto de vista do domínio daqueles negócios, mesmo sendo necessário encontrá-los eventualmente fora do rol das câmaras de arbitragem escolhidas, nas quais transitem os processos correspondentes.
Destaque-se, finalmente, que o recurso pelos árbitros a fontes de jurisprudência como ferramenta para auxiliá-los no deslinde de questões sobre direito bancário nem sempre os atenderá, porque, tirante os casos de massa, próprios do direito do consumidor e trabalhista, a grande variedade das operações celebradas nesse mercado não apresentará decisões judiciais sobre elas, principalmente quanto a operações novas, cujo ingresso nos tribunais e a solução definitiva correspondente necessitará de muito tempo até se chegar a uma sentença transitada em julgado em segunda instância ou no STJ. Nesse caso, a "fonte do direito" a ser utilizada emergirá da própria vivência teórica e prática do árbitro, da sua experiência profissional, o que, nos diversos ramos de atuação do direito bancário, é uma constante histórica, em vista do contexto que expusemos neste texto.
Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.
Alexandre Sansone Pacheco
Sócio de Sansone Pacheco Advocacia. Professor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP). Doutor em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Vice-Presidente da Comissão Permanente de Estudos de Direito Bancário do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP). Membro do Conselho Superior de Direito e do Conselho de Assuntos Tributários da Fecomercio/SP.