Tem valor probatório a confissão realizada na audiência de custódia?
Sem uma exata compreensão das finalidades por trás da audiência de custódia, a pergunta realizada no título deste excerto não será adequadamente respondida.
terça-feira, 1 de novembro de 2022
Atualizado às 13:55
A realização de audiência de custódia figura como uma das mais importantes garantias extraídas da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), cujo art. 7.5 estabelece que "toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais [...]".
A previsão legislativa em foco possui caráter de norma supralegal, consoante se extrai do entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) no bojo do Recurso Extraordinário 466.343/SP.
Em que pese o valor normativo em comento, o legislador não se apressou em positivar a audiência de custódia no ordenamento jurídico brasileiro, sendo necessário que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por intermédio da Resolução n. 213, de 15 de dezembro de 2015, deliberasse sobre a matéria.
Com as alterações promovidas pela lei 13.964/19 (o famigerado "Pacote Anticrime"), houve, ainda que de modo tímido, a regulamentação da sobredita audiência em solo pátrio, precisamente no art. 310 do Código de Processo Penal (CPP).
O comando legal em evidência prevê, em seu caput, que o juiz, após receber o auto de prisão em flagrante, deverá, no prazo máximo de vinte e quatro horas, promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público.
Nessa audiência, o magistrado deverá, de maneira fundamentada: (a) relaxar a prisão ilegal ou; (b) converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos do art. 312 do CPP e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão, ou, ainda; (c) conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.
Além disso, ela se destina à verificação, também pela autoridade judicial, da ocorrência de eventuais abusos contra a integridade física e os demais direitos e garantias individuais da pessoa presa.
Tamanha é a sua importância que o CPP, no §4º do seu art. 310, com redação dada pela lei 13.964/19, estabelece que a não realização de audiência de custódia no prazo legal, sem motivação idônea, dará ensejo à ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva. O referido dispositivo, no entanto, encontra-se, até o presente momento, com a eficácia suspense pelo Supremo Tribunal Federal (vide ADIn's 6.298, 6.300 e 6.305).
As considerações feitas nas linhas acima têm uma razão de ser. Sem uma exata compreensão das finalidades por trás da audiência de custódia, a pergunta realizada no título deste excerto não será adequadamente respondida.
Diante disso, analise o leitor a seguinte situação concreta: uma mulher foi presa em flagrante pela suposta prática dos crimes de tráfico de drogas e associação para o tráfico, previstos, respectivamente, nos arts. 33 e 35 da lei 11.343/06. Ouvida por ocasião da audiência de custódia, ela teria confessado as práticas criminosas ora apontadas.
Todavia, ao ser interpelada sob o crivo do contraditório, durante a instrução processual, a mulher se retratou, negando as condutas criminosas imputadas a ela, tal como autoriza o art. 200 do CPP.
Não satisfeita, ela impetrou Habeas Corpus junto ao Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco (TJPE) pugnando pelo desentranhamento da mídia contendo a gravação da audiência de custódia, aduzindo, em síntese, que a sua manutenção nos autos implicaria em constrangimento ilegal, na medida em que a referida audiência "extrapolou os limites legais, posto que se aprofundou em fatos e provas relativas ao caso e não somente no que tange à prisão e suas consequências", razão pela qual o seu conteúdo jamais poderia ter sido disponibilizado e explorado pelo Ministério Público.
O Tribunal de origem não se convenceu dos argumentos acima indicados.
No entendimento da Corte, a Resolução 213 do CNJ não veda o apensamento do inteiro teor da audiência de custódia aos autos da ação penal.
Enfatizou-se, ademais, que "a audiência de custódia, apesar de ocorrer antes da instauração da ação penal, é realizada com a presença do Ministério Público e com o preso assistido por seu advogado, conferindo-se a todos eles a oportunidade de formularem perguntas, atendendo-se, portanto, aos preceitos constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa1".
Inconformada, a mulher recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). A Corte Federal, no entanto, tornou a rechaçar os argumentos invocados, amparando-se, para tanto, nas seguintes teses:
[...] a disponibilidade do conteúdo relativo à audiência de custódia, no bojo da ação penal, não caracteriza nulidade. Ademais, não houve comprovação de prejuízo pela defesa e, por aplicação do princípio do pas de nullité sans grief consagrado no art. 563 do CPP e no enunciado n. 523 da Súmula do STF, não há que se falar em nulidade no caso concreto. 2. A alegação de nulidade pressupõe inobservância ao texto procedimental, o que não se observa no caso concreto, tendo em vista que a Resolução 213/15 do CNJ não veda a juntada do teor da audiência de custódia aos autos da ação penal. Recurso ordinário em habeas corpus desprovido2.
Como era de se esperar, a questão chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), por meio do HC 161.318.
O relator, Min. Nunes Marques, malgrado tenha conhecido, em parte, da impetração, indeferiu o habeas corpus, sob o argumento de que a ocorrência de nulidade prescinde da efetiva demonstração do prejuízo, circunstância não verificada no caso em tela. O sobredito voto foi seguido pelo Min. Edson Fachin3.
Com efeito, duas questões precisam ser elucidadas.
De fato, a Resolução 213 do CNJ autoriza o apensamento da mídia da audiência de custódia (art. 8º, §2º.). Até poderíamos questionar a (inconstitucionalidade) de uma resolução que se proponha a tratar de temática nitidamente afeta a direito processual penal, tema de competência privativa da União (art. 22, I, da CF/88), mas isso fugiria aos objetivos do presente texto.
O cerne da problemática fica por conta da impossibilidade de uso de eventual confissão no bojo da audiência de custódia como meio probatório apto a sustentar uma condenação criminal.
Uma análise do disposto no art. 155, caput, do CPP, conduz à inequívoca conclusão de que "prova" é tudo aquilo produzido sob o crivo do contraditório judicial, em momento processual próprio, específico.
A audiência de custódia, consoante exposto anteriormente, possui finalidades muito bem delineadas; ligadas, sobretudo, a uma deliberação, pelo magistrado, acerca das condições e circunstâncias da prisão, bem como sobre a (des)necessidade de imposição de uma sanção cautelar, a exemplo da prisão preventiva.
Como se sabe, o Brasil adotou a sistemática da tipicidade dos atos processuais. Significa dizer que, "para cada ato a ser praticado no processo, há um tipo processual específico, há um caminho a ser seguido"4. Permitir que a confissão realizada na audiência de custódia sirva como fundamento para uma condenação criminal é retirar da audiência de instrução e julgamento a função que lhe cabe.
Destarte, a própria Resolução 213 do CNJ estabelece, em seu art. 8º, inciso VIII, que a autoridade judicial, ao entrevistar a pessoa presa, deve se abster "de formular perguntas com finalidade de produzir prova para a investigação ou ação penal relativa aos fatos objeto do auto de prisão em flagrante".
Trata-se, em verdade, de clara pretensão de dissociar a audiência de custódia da instrução probatória, momento processual adequado para que as partes explorem o mérito.
Atento a isso, o Min. Gilmar Mendes, no HC 161.318 (já mencionado acima), inaugurou preciosa divergência, enfatizando que o mecanismo da audiência de custódia será corrompido acaso ela seja utilizada como "momento de indevida produção probatória por meio de interrogatório de preso com objeto de utilização na sentença"5.
Prevalecendo a linha de entendimento defendida no presente artigo, qual deve ser o tratamento conferido à confissão da pessoa presa na audiência de custódia? Nesse caso, tal como sugere parcela da doutrina, a confissão será considerada prova ilícita, devendo ser desentranhada dos autos, nos termos do art. 157, caput, do CPP6.
O §5º do dispositivo legal supramencionado, incluído pela lei 13.964/19, prevê que "o juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão".
O parágrafo em foco, que lamentavelmente também se encontra com a eficácia suspensa, busca preservar a originalidade cognitiva do magistrado, evitando que a sua convicção seja formada a partir de indevidas contaminações.
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1 Nesse sentido: TJPE, Habeas Corpus Criminal 440710-10006467-88.2016.8.17.0000, Rel. Cláudio Jean Nogueira Virgínio, 3ª Câmara Criminal, julgado em 03/08/2016, DJe 11/08/2016.
2 Cf., STJ, RHC n. 77.359/PE, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 2/8/2018, DJe de 15/8/2018.
3 Disponível em:
4DOMINGOS, Letícia Fernandes. Jusbrasil. Disponível em: < https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/701836291/tese-defensiva-nulidades-no-processo-penal#:~:text=Atipicidade%20processual%20%C3%A9%20g%C3%AAnero%2C%20sendo,absoluta%20e%20a%20inexist%C3%AAncia%20do > Acesso em: 27 de out. de 2022.
5 Disponível em:
6 Cf., PAIVA. Caio. Depoimento da audiência de custódia pode ser utilizado na Ação Penal? Revista Consultor Jurídico, 23 de agosto de 2016. Disponível em:< https://www.conjur.com.br/2016-ago-23/tribuna-defensoria-depoimento-audiencia-custodia-utilizado-acao-penal:> Acesso em: 27 de out. de 2022.