Análise crítica do instituto jurídico da desapropriação indireta no ordenamento jurídico brasileiro
Convém mencionar, que o Poder Público só se torna proprietário do bem expropriado, depois que efetua o pagamento da indenização ao particular.
sexta-feira, 28 de outubro de 2022
Atualizado às 09:02
Os Tribunais Pátrios estão recebendo constantemente diversas demandas resultantes das desapropriações indiretas, a iniciar, pela aplicação e finalidade do art. 35 do decreto-lei 3.365/41, pois existem divergências e controvérsias acerca do seu acolhimento ou não pela Constituição Federal.
Por seu turno, o entendimento dos Tribunais pátrios, sobretudo a atuação e aplicação de argumentos acerca do atendimento deste dispositivo legal as regras impostas pela Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, entendem que existe essa adequação aos ditames constitucionais, e ele é corriqueiramente aplicado às demandas judiciais que chegam a esses tribunais.
Para que ocorra a análise à luz da Constituição Federal acerca do art. 35 do decreto-lei, é oportuno e essencial entender que a aplicação e interpretação literal deste artigo, acarretam um sacrifício e uma limitação ao direito individual da propriedade garantido pela Constituição Federal. Isto ocorre devido ao fato de que os bens uma vez incorporados ao Patrimônio Público podem ser reivindicados tão somente mediante ação indenizatória. Desta maneira, não importa se durante o processo expropriatório ocorreu alguma nulidade, ou simplesmente se a Administração incorporou o bem sem dar qualquer explicação ao particular.
Com efeito, o direito de propriedade tem respaldo e proteção estabelecida pela Constituição Federal, bem como foi incorporado em nosso ordenamento jurídico, como um direito fundamental com status de cláusula pétrea, conforme dispõe o art. 60, § 4º, IV:
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
(...)
§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
(...)
IV - os direitos e garantias individuais.
(...)
Logo, a proteção e o respaldo dado pelo texto constitucional ao direito de propriedade compreendem-se em um amparo dado a dignidade inerente da pessoa humana, haja vista que a afeição de posse e domínio que o homem tem no que se refere às coisas, sejam elas móveis ou imóveis, é atribuição pertencente aos seus costumes.
Com o crescente surgimento de demandas versando sobre o instituto da desapropriação indireta, os tribunais pátrios vêm proferindo jurisprudências razoavelmente consolidadas acerca dos seus principais pontos e divergências.
Neste sentido, veja-se a jurisprudência:
ADMINISTRATIVO - CRIAÇÃO DO PARQUE ESTADUAL XIXOVÁ-JAPUÍ - DECRETO ESTADUAL 37.536/93 - DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA - REQUISITOS NÃO-CONFIGURAÇÃO. 1. Na seara do Direito Constitucional não há mais lugar para falar-se em direito absoluto, já que, segundo o princípio da razoabilidade, os direitos previstos na Carta Magna encontram seu fundamento e limite no próprio texto constitucional. 2. Antes da promulgação da Constituição vigente, o legislador já cuidava de impor algumas restrições ao uso da propriedade com o escopo de preservar o meio ambiente. 3. Para se falar em desapropriação indireta impõe-se que sejam preenchidos os seguintes requisitos: que o bem tenha sido incorporado ao patrimônio do Poder Público e que a situação fática seja irreversível. 4. Caso dos autos, em que não restou constatado que as apontadas restrições estatais implicaram no esvaziamento do conteúdo econômico da propriedade da recorrente, tampouco que o Poder Público revelou qualquer intenção de incorporar ao seu patrimônio o imóvel de propriedade da embargante. 5. Eventual limitação administrativa mais extensa do que as já existentes quando da edição do Dec. Estadual 37.536/93 deve ser comprovada pela autora por meio de ação própria. 6. Embargos de divergência não providos. (STJ - EREsp: 628588 SP 2005/0174528-7, Relator: Ministra ELIANA CALMON, Data de Julgamento: 10/12/08, S1 - PRIMEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 9/2/09).
Outrossim, quando ocorre o esbulho por parte de um particular, o proprietário vale-se dos interditos possessórios e da ação reivindicatória. Entretanto, quando a Administração Pública realiza esse esbulho possessório, o proprietário não pode valer-se destes institutos, haja vista, que os bens uma vez incorporados à fazenda pública, não podem ser objetos de reivindicação, qualquer ação julgada, resolver-se-á em perdas e danos, o pagamento deverá ser feito por meio de precatório. Convém frisar, que caso ainda não tenha ocorrido essa incorporação, não há nenhum impedimento em relação ao proprietário utilizar esses institutos.
Por conseguinte, a jurisprudência vem consolidando a matéria em razão do princípio da economia processual, isto é, no ajuizamento de ação indevida a situação fática a qual o bem foi expropriado, é possível que ocorra a transformação para a ação que se encontrar mais apropriada, tendo como escopo fazer com que o particular ajuíze nova demanda. Sobre o tema, tem-se a jurisprudência do STJ:
PROCESSO CIVIL E ADMINISTRATIVO. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. INVIABILIDADE. BEM AFETADO AO SERVIÇO PÚBLICO. DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. CONVERSÃO. 1. Não há violação do art. 535 do CPC quando o Tribunal de origem resolve a controvérsia de maneira sólida e fundamentada, apenas não adotando a tese do recorrente. 2. Trata-se de ação reintegratória ajuizada contra a Comlurb/RJ com a finalidade de recuperar a posse de imóveis contratualmente cedidos ao ente da administração indireta por tempo determinado. 3. A instância ordinária atestou que os imóveis estão afetados ao serviço público - servindo de aterro sanitário -, sendo, portanto, inviável a pretensão reintegratória. 4. Com a ocupação e a destinação do bem ao serviço público fica caracterizada a desapropriação indireta, remanescendo ao autor a buscar da indenização por danos, que no caso envolve responsabilidade de cunho contratual e extracontratual. 5. A jurisprudência desta Eg. Corte e do STF, com fundamento nos princípios da economia e celeridade além da tutela das obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa certa distinta de dinheiro, consagrou a orientação de que é possível que a ação reintegratória seja convertida em ação de indenização por desapropriação indireta. 6. Na espécie, havendo pedido, é possível que a ação reintegratória seja convertida em ação de indenização em respeito aos princípios da celeridade e economia processuais. 7. Recurso especial parcialmente provido. (STJ - Resp: 1060924 RJ 2008/0113189-7, Relator: Ministro CASTRO MEIRA, Data de Julgamento: 3/11/09, T2 - SEGUNDA TURMA).
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇAO ORDINÁRIA. ACOLHIMENTO DA PRETENSAO INDENIZATÓRIA EM LUGAR DA PRETENSAO REINTEGRATÓRIA DE POSSE DE IMÓVEL POR DESAPROPRIAÇAO INDIRETA. PROCEDÊNCIA PARCIAL. APELAÇÕES SIMULTÂNEAS. PRESENÇA DOS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE. INOCORRÊNCIA DE JULGAMENTO EXTRA PETITA E DE NULIDADE DA SENTENÇA. PROFERIMENTO COM OBSERVÂNCIA DOS REQUISITOS PREVISTOS NO ART. 458 DO CPC PRELIMINARES REJEITADAS. INVASAO DE PARTE DO IMÓVEL. LIMITAÇAO DE OPÇÕES DE INVESTIMENTO NA ÁREA REMANESCENTE CONSTATADA EM LAUDO PERICIAL, INFLUENCIÁVEL NO JULGAMENTO DA LIDE. EXTENSAO RECLAMADA ACOLHIMENTO. INTELIGÊNCIA DO DECRETO Nº 4.9561903. PROVIMENTO PARCIAL JUROS COMPENSATÓRIOS. DIES A QUO. INCIDÊNCIA A PARTIR DO DESAPOSSAMENTO. SÚMULA N.º 114/STJ. CONDENAÇAO AO PAGA.(TJ-BA , Relator: LICIA DE CASTRO L CARVALHO, Data de Julgamento: 01/02/2007, CÂMARA ESPECIALIZADA).
A decisão acima mencionada analisa diferentes pontos e divergências acerca do instituto da desapropriação indireta. Verifica-se que o pedido preambular, tinha como objetivo a concessão da reintegração de posse em face do apossamento administrativo, todavia, como houve incorporação do bem ao patrimônio público, tal medida tornou-se inviável. Como já houve a incorporação, a ação será transformada em ação indenizatória. A referida decisão aborda também o instituto da retrocessão, que limita e restringe parte do bem do proprietário, e que embora não tenha a limitação em toda a área que será objeto de desapropriação, houve dano à propriedade do particular. Este instituto será analisado detalhadamente em tópico próprio. No julgado supratranscrito, tem-se também a aplicação da Súmula 114 do STJ, que determina que os juros compensatórios na desapropriação indireta tenham como termo inicial o desapossamento.
Outra questão a ser analisada, é a possibilidade do Poder Público, ressarcir os danos morais, que o proprietário sofreu em virtude da desapropriação indireta. Nessa esteira é o seguinte precedente do Tribunal Regional Federal:
INCRA. DESPAPROPRIAÇÃO INDIRETA. INDENIZAÇÃO. DANOS MATERIAIS. DANOS MORAIS. 1. Havendo o desapossamento administrativo do imóvel, em razão de assentamento realizado irregularmente pelo INCRA, caracteriza-se a ocorrência de desapropriação indireta, impondo-se o pagamento da indenização constitucionalmente garantida. 2. Em razão da destruição dos bens, da perda da produção e dos investimentos feitos no terreno, bem como frente às expectativas de safras futuras, devida também indenização pelos danos emergentes e pelos lucros cessantes. 3. Consideradas as circunstâncias em que ocorreu o despejo do autor e de sua família, devida, ainda, indenização por dano moral. Veja Também - STJ: PROC 200701275688, j 12/2/08; Resp 957759, DJ 10/3/08. (TRF-4 - APELREEX: 2206 PR 2005.70.05.002206-4, Relator: Relatora Data de Julgamento: 30/9/08, TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: D.E. 29/10/08).
Como ocorre em qualquer outra situação, para configurar o dano moral, tem que correr o dano e o nexo causal, e na desapropriação indireta não é diferente, ou seja, o Poder Público tem que indenizar o proprietário, haja vista que a desapropriação indireta além de atentar contra normas constitucionais, legais, bem como princípios da administração pública, cause tamanho desconforto ao proprietário, que a sua honra e privacidade sejam lesadas.
A desapropriação indireta vem acontecendo com certa frequência no ordenamento jurídico brasileiro. De maneira, que os gestores públicos estão atuando a margem da legalidade, no momento da desapropriação, violando incisivamente o direito de propriedade dos administrados.
Assim, o crescente registro de casos de desapropriação indireta vem ocorrendo, não só pela inércia dos particulares em deparar-se com normas constitucionais, legais, bem como princípios desrespeitados por parte do Poder Público, mas também por não se ter notícias de administradores corrigidos e punidos em decorrência da prática dessa desapropriação irregular.
Segundo José dos Santos Carvalho Filho:
Não podemos olvidar que é garantia constitucional de todos nós que o Estado não pode nos privar de nossa propriedade sem um devido processo legal onde se possa exercer o contraditório e a ampla defesa. Ademais, o Administrador Público é aquele que de ofício cumpre a lei, o que é corolário lógico do princípio da legalidade administrativa previsto no caput do art. 37 da Carta Magna, de sorte que ele só poderá agir do modo ou nos limites permitidos em lei. Dessa sorte, como a Constituição Federal não prevê uma modalidade de desapropriação caracterizada pelo esbulho, tal ato de forma alguma pode ser aceito. O dispositivo (art. 35, decreto-lei 3.365/41) declara que a desapropriação indireta resolver-se-á por perdas e danos quando o bem estiver ao patrimônio público, como se tal ato nunca pudesse ser invalidado. Ora, se até as leis podem ser declaradas invalidas por vício de constitucionalidade com efeitos retroativos, por qual razão este esbulho seria intocável? (CARVALHO FILHO, 2006, p. 123-124).
Registra-se por oportuno o fato de que o quantum utilizado na indenização a ser paga na desapropriação que ocorre de maneia irregular, é o mesmo auferido na hipótese da desapropriação de maneira regular. Ademais, na desapropriação indireta a indenização é paga tão somente ao final da ação interposta pelo particular, ao passo que a desapropriação que ocorre de maneira regular, como por exemplo, por necessidade pública, atendida as normas constitucionais e legais existem a possibilidade de o particular receber 80% (oitenta por cento) do valor que foi depositado pelo ente expropriatório, ocorrido antes da sentença que arbitrará esse valor, conforme prevê o art. 33, § 2°.
Assim, os administradores, valem-se dessa circunstância para efetivar desapropriações sem a observância de normas constitucionais e legais, bem como princípios da Administração Pública, com escopo de obterem os mais variados propósitos, como por exemplo: a) realizar obras públicas sem a previsão orçamentária e recursos suficientes; b) lesar inimigos; c) atrasar o pagamento do valor da indenização, eu no caso da desapropriação indireta ocorre depois do trânsito em julgado; d) agilizar a entrega de obras públicas, que em muitas das vezes, tem o escopo de ser uma vitrine para campanhas políticas, em benefício eleitoreiro.
Como bem ensina José Carlos Moraes Salles:
Infelizmente, a desapropriação indireta, eu deveria ser expediente excepcionalmente utilizado pela Administração, nos casos de apossamento de bens particulares por equívoco do Poder Público com o consequente emprego em obra pública, vai se transformando em procedimento corriqueiro, diuturna e consequentemente empregado. Torna-se mais fácil invadir a propriedade particular para só depois de muitos anos indenizar. (SALLES, 2006, p. 728/729)
A respeito da criação de mecanismos para frear a decretação de desapropriações indiretas, tem-se que ela deve se tornar mais oneroso para a Administração Pública, seja pela elaboração e aplicação de multa específica caso venha ocorrer o instituto, ou para criar medidas que tornem mais rápido o pagamento das indenizações, haja vista, que elas ocorrem somente com o trânsito em julgado da sentença. Ademais, outra solução seria a aplicação da lei de improbidade neste caso, tendo em vista que ocorre a violação dos princípios da Administração Pública.
Pelo exposto, nos casos de ocorrência da desapropriação indireta, em que os bens já tenham sido incorporados definitivamente ao patrimônio da Fazenda Pública, tem-se que os juízes devem arbitrar sentenças em que o particular realmente satisfaça ou pelo menos amenizem todos os danos por ele sofrido. É importante essa ressalva, porque, não raras vezes, os tribunais vêm arbitrando sentenças com condenações tímidas, na qual não há satisfação por parte do particular, em virtude da arbitrariedade dos administradores, e o dano que é experimentado pelo particular. Convém mencionar, que o Poder Público só se torna proprietário do bem expropriado, depois que efetua o pagamento da indenização ao particular.
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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:
BRASIL. Decreto-lei 3.365, de 21 de junho de 1941. Dispõe sobre desapropriações por utilidade pública. In: Presidência da República. Legislação Republicana Brasileira. Brasília, 1941. Disponível em:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 21. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009.
SALLES, José Carlos de Moraes. A desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. 5ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
______, STJ - Embargos de Divergência em RESP 628.588 - SP (2005/0174528-7), Ministra ELIANA CALMON, Data de Julgamento: 10/12/08, S1 - PRIMEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJ 9/2/09. Disponível em:
______, STJ - RECURSO Especial 1060924 RJ 2008/0113189-7, Ministro CASTRO MEIRA, Data de Julgamento: 3/11/09, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJ 11/11/09. Disponível em:
______, TJ BA - APL 2201122005 BA 22011-2/2005, Relator: LICIA DE CASTRO L CARVALHO, Data de Julgamento: 1/2/07, CÂMARA ESPECIALIZADA. Disponível em:
Marcus Vinicius Alencar Barros
Advogado, pós-graduado em Direito do Trabalho e Previdenciário na Universidade Estácio.