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Aeroportos como arenas de conflito: observações sobre o dia em que Congonhas (CGH) parou

A natureza do serviço de transporte aéreo é sui generis. O consumidor possui como objetivo único ser transportado sem qualquer intercorrência. Qualquer dificuldade criada gera stress e conflitos.

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Atualizado às 08:52

Breve introdução

O profissional treinado para solução de conflitos, mesmo sendo parte do conflito, sempre tentará auxiliar na melhor solução para a questão. Os aeroportos, devido ao modelo de negócios mantido por companhias aéreas e por concessionárias de aeroportos e Infraero, são um verdadeiro octógono, uma arena de conflitos multicultural onde funcionários com burnout são jogados sem treinamento adequado em solução de conflitos tendo que lidar com passageiros furiosos.

Um passageiro em aeroporto tem a expectativa de ser levado do ponto A para o ponto B sem intercorrências. Seu limiar psicológico é baixo. Se a CIA não tiver um bom CRM (customers relationship management) o conflito poderá surgir.

Presenciei a arena de conflito em pleno funcionamento no dia 9/10/22, o dia em que Congonhas parou... 

Os fatos: pista de Congonhas fechada e ausência de plano de contingência

Era um dia comum, estava em São Paulo à trabalho e iria pegar o voo das 15:35 (G3 2168) de Congonhas (CGH) para o Santos Dumont (SDU). Cheguei ao aeroporto com antecedência, às 13 horas. O embarque era somente às 15:20. Tentei utilizar a sala VIP, no entanto, como tem ocorrido ultimamente, está sempre lotada em Congonhas. Desisti e adentrei o aeroporto à procura de um café e de um lugar para sentar-se.

Congonhas já estava cheio e de fato, por ser o segundo aeroporto mais movimentado do país, é um aeroporto que lives on the edge. Qualquer contratempo ali pode ocasionar enormes transtornos.

Eis que por volta das 14 horas escuto o seguinte pronunciamento no alto-falante do aeroporto: "Informamos que os voos se encontram suspensos momentaneamente devido à inspeção na pista". Tal recado se repetiu por algumas vezes e meu voo já continha o aviso de estimativa de 1 (uma) hora de atraso. Ato contínuo, começa a ocorrer o anúncio do cancelamento de alguns voos. Nesse momento meu voo estimava de 2 horas de atraso e rapidamente subiu para 3 horas.

Resolvi investigar o que ocorreu e na minha experiência de vida, descobri que geralmente quem detém as informações de um estabelecimento é a equipe da limpeza. Eles circulam por todos os locais do estabelecimento (locais internos e externos), portanto, resolvi perguntar a um funcionário da limpeza sobre o que ocorria naquele momento, e recebo a informação que um avião tinha derrapado e ficado preso no final da pista de pouso e decolagem. Ou seja, enquanto não retirassem a aeronave de pequeno porte da pista principal de CGH, os pousos e decolagens estariam suspensos.

Já não havia mais lugar para sentar-se no aeroporto. Voos suspensos e passageiros ainda ingressando na área de embarque na esperança de voar. O único lugar que sobrara eram os bancos utilizados para calçar o sapato após a passagem pela segurança. Passageiros se sentavam no chão em vários pontos. Resolvi aguardar mais um pouco.

Às 17 horas, percebendo que ninguém voaria de CGH naquele fatídico dia resolvo, após confirmar inúmeros voos já cancelados, ir para a área de check-in do aeroporto buscar informações da minha companhia aérea (GOL). Cheguei no saguão do aeroporto e me deparo com filas intermináveis e uma multidão de pessoas para atendimento por um limitado número de funcionários e com notório burnout. Nada se resolveria.

Por iniciativa própria fui para o aeroporto de Guarulhos (GRU). No caminho para o táxi me deparo com tripulantes da LATAM indo embora do aeroporto. Converso com um comissário de bordo para levantar mais informações. O comissário, decepcionado, afirma que infelizmente não há plano de contingência dos aeroportos para esse tipo de situação e que isso prejudica todo o ecossistema aeroviário, ou seja, passageiros e funcionários. Entro no táxi e vou para Guarulhos (GRU). Sabia que lá teria alguma chance de voar ou, ao menos, de remarcar meu voo. No caminho telefono para o atendimento da GOL para tentar remarcar a passagem, no entanto, sem sucesso. O sistema estava sobrecarregado em todos os setores. Naquele momento passageiros e funcionários vivenciavam o verdadeiro estado de natureza hobbesiano.

Chego em Guarulhos (GRU) e me deparo com filas pequenas. Consigo remarcar minha passagem de volta para o Santos Dumont (SDU) no mesmo dia às 21:30 hrs. Eram 18:30 hrs e me encaminhei para a sala VIP do aeroporto. Mais uma vez me deparo com uma sala lotada e quase sem espaço para sentar-se.

Próximo a hora do voo, caminho para o portão de embarque. O embarque estava atrasado em 40 minutos. Eis que o funcionário do portão informa que terá que reduzir 6000 KG na aeronave devido às condições climáticas no SDU. Ou seja, 30 passageiros tinham que se voluntariar para voar no dia seguinte. Em contrapartida, receberiam hospedagem, táxi e R$ 1.000,00 (mil reais). Me prontifiquei. Vi famílias na fila de embarque e eu, naquela viagem um lonely rider, não me considerei prioridade. Além disso, sempre tento respeitar as mensagens enviadas do Universo ou, como diria meu pai, não forçar a natureza das coisas: definitivamente não era meu dia de voar.

Confesso que, como os 30 voluntários estavam realizando um ato altruístico, acreditei que teríamos tratamento imediato da GOL. O funcionário da GOL nos informou que deveríamos procurar o guichê B36 para remarcarmos o voo e obtermos os vouchers de táxi e hotel.

Nenhum funcionário nos acompanhou, o que deveria ter sido feito por razões óbvias. O aeroporto de Guarulhos (GRU) é o segundo maior da América Latina perdendo apenas para o aeroporto de Mexico City (MEX). Ou seja, se perder é fácil.

Finalmente encontrei o guichê B36. Para minha surpresa, não teríamos tratamento especial. Todos os passageiros que tinham tido qualquer espécie de infortúnio, formavam uma fila no famigerado portão. Atendendo a fila, apenas dois funcionários da GOL. Já estávamos por volta das 22:00 hrs. Já sabia que sairia dali apenas na madrugada.

Na fila comecei a conversar com alguns do "Grupo dos 30". Aguardamos até uma funcionária da GOL nos chamar para uma sala da CIA nos bastidores do aeroporto onde ficaríamos até o passar da meia-noite. 

A importância da caixa de ferramentas (toolbox) em um octógono aeroviário 

Sentados em uma sala com sofás e bexigas murchas de uma comemoração pretérita de funcionários da GOL (como se fosse fim de festa) aguardávamos atendimento de funcionários que apareciam de forma intermitente e sumiam em seguida. Me sentia no desenho dos anos 80 Carverna do Dragão, tentava voltar para casa, mas o Mestre dos Magos (funcionários da GOL) aparecia vez ou outra dando informações desencontradas e criptografadas.

Percebendo que o pavio do barril de pólvora já estava aceso, comecei a fazer o perfilamento (profiling) dos passageiros que se encontravam comigo, e ao mesmo tempo, construindo rapport caso precisasse intervir. Já possuía o rapport natural por "estamos no mesmo barco", porém, estabelecer uma conexão conhecendo o background do indivíduo e se apresentando nominalmente faz toda a diferença.

Um profissional de solução de conflitos carrega sua caixa de ferramentas para todos os lugares. Mesmo exausto, não me via como um consumidor lesado, mas sim como um profissional de solução de conflitos dentro de um laboratório perfeito para observação e possível aplicação.

Observando e conversando com parte dos 30 passageiros, consegui identificar o perfil da maioria e, como previsto, eram perfis multiculturais como em qualquer ambiente coletivo. Como envolvidos havia, por exemplo, um empresário, dois militares, um webdesigner, alguns comerciantes (homens e mulheres), um casal jovem e o que mais me preocupava um pai com um filho de 7 (sete) anos. Era a única criança no local.

Conversava e ao mesmo tempo observava a linguagem não-verbal dos passageiros. Os mais tranquilos eram ou os viajantes experientes ou os já acostumados a algum tipo de desconforto como os militares. Esses se sentavam nas poltronas de forma relaxada. Os mais tensos e mais propícios ao conflito levantavam-se, caminhavam pelo ambiente, passavam as mãos no rosto ou na nuca, ou seja, demonstravam preocupação.

Para acalmar a criança que circulava pelo ambiente, ofereci chocolate para ela e para outros passageiros, e conversei perguntando sobre suas preferências de brincadeiras e jogos. Naquele momento já existia empatia com o pai, com a criança bem como com alguns outros passageiros.

Tinha consciência que eu não estava na função de mediador naquele momento. Era passageiro, no entanto, já me sentia apto a intervir para evitar que o conflito escalasse.

Já esperávamos há mais de uma hora e todos havíamos preenchido um formulário com nossos dados. Dois funcionários da GOL faziam o atendimento das prioridades (que eram muitas). Os passageiros que não eram classificados como prioridade começavam a perder a paciência com a lentidão.

Às 23:30 um passageiro, exatamente o que tinha filho pequeno começa a interpelar os funcionários em volume alto. Ele estava cansado e com uma criança. Compreensível. Além disso, sua bagagem ainda se encontrava desaparecida naquele momento.

O funcionário da GOL, de forma equivocada demonstrando burnout e treinamento insuficiente (se é que existe) em solução de conflitos interpela o passageiro na mesma moeda e resolve chamar a segurança do aeroporto. A criança chorava ao ver seu pai nervoso e gritando.

Me posicionei atrás da criança que estava sentada em uma cadeira em frente ao funcionário da GOL. Sabia que chegaria a hora de intervir. Desesperado o pai indaga seu filho: Você quer que o papai compre uma passagem e a gente volte para casa o quanto antes? A criança, de forma inocente, concordou.

Naquele momento, com voz calma e comunicação não violenta intercedi o pai e o trouxe de volta à realidade: "Senhor, já são 23:30. O senhor não irá encontrar voo nesse horário e ainda vai pagar um valor elevado para um voo para amanhã. O senhor já pensou em aceitar a oferta da CIA aérea?". A alternativa (BATNA - Best Alternative To a Negotiated Agreement) para todos nós não era viável.

Concomitantemente interpelei o funcionário da GOL para que pudesse dar prioridade ao senhor e reconhecesse suas necessidades. Assim o funcionário procedeu e o senhor acatou minha colocação. Naquele momento a segurança já havia chegado. Fui conversar com a equipe para descobrir o modus operandi. O segurança afirmou que sabia que os funcionários das CIAs aéreas não tratavam os passageiros da forma correta e que os meses de dezembro a fevereiro eram ainda piores.

O funcionário da GOL, agradecido por eu ter intercedido na situação, me confessou que metade do contingente de Guarulhos (GRU) havia sido deslocado para auxiliar em Congonhas (CGH). Ou seja, justificou o atendimento precário com esse argumento.

Já passara da meia-noite. A GOL enviava os passageiros para hotéis em Campinas, Guarulhos e São Paulo. Era o que tinha disponível na faixa de preço que se dispunham a pagar. Cheguei ao hotel 1 da manhã, doze horas após minha chegada em Congonhas (CGH).

Em suma, não havia plano de contingência nem treinamento adequado para a situação que ocorrera. 

Nota conclusiva

A natureza do serviço de transporte aéreo é sui generis. O consumidor possui como objetivo único ser transportado sem qualquer intercorrência. Qualquer dificuldade criada gera stress e conflitos. O que ocorreu em Congonhas (CGH) foi a "queda do avião" literal e metaforicamente. Um avião de pequeno porte (Learjet) que torna a pista principal de um dos aeroportos mais movimentados do país intransitável. Não consigo mensurar a quantidade de reuniões perdidas e negócios que não foram realizados por causa dessa intercorrência.

A INFRAERO não poderia demorar 9 horas para liberar a pista e tampouco deixar aviões de pequeno porte transitarem na pista principal. No entanto, o objeto deste artigo é o tratamento interno dado aos passageiros.

Podemos afirmar que falta equipe de prontidão para atender emergências e, além disso, falta treinamento em soluções de conflito aos funcionários das CIAs aéreas. A postura com os passageiros que tiveram problemas foi equivocada desde a primeira abordagem. Por vezes, pedia informação com educação e recebia resposta em tom alto de forma grosseira.

Treinar os funcionários nas técnicas de mediação sem dúvida amenizaria a espiral dos conflitos. Manter uma equipe de mediadores treinada para esses momentos também poderia ser ótima solução. Os mediadores poderiam realizar ações preventivas com bastante eficácia. Aeroportos são ambientes de conflito coletivo, o dia em que as principais partes envolvidas (CIAs aéreas) perceberem isso, os passageiros e seus funcionários sofrerão menos e as soluções serão mais facilmente atingidas através do diálogo construtivo e pacífico.

Daniel Brantes Ferreira

Daniel Brantes Ferreira

Doutor e mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC/RJ. Pós-doutor em Direito Processual pela UERJ. Vice-presidente de Assuntos Acadêmicos do CBMA - Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem. Professor da Universidade Cândido Mendes, da EMERJ e do Mestrado da Ambra University.

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