Inteligência artificial no setor de saúde e propriedade intelectual
É alta a expectativa pela concessão e implementação efetiva de proteção aos desenvolvimentos envolvendo IA, seja como ferramenta ou como criadora.
quarta-feira, 26 de outubro de 2022
Atualizado às 08:46
Inteligência artificial ("IA") é um conceito amplo que engloba as máquinas e sistemas que são capazes de simular o comportamento humano em termos de aprendizado e criação. Atualmente, o campo mais desenvolvido da IA é conhecido como "machine learning", em que a máquina, via um programa de computador, é ensinada a identificar padrões em dados analisados por algoritmos1 para então aplicar o conhecimento obtido em novos dados e prever resultados. No campo do "machine learning", a participação do ser humano ocorre, por exemplo, na determinação da qualidade de dados escolhidos ou na forma de programar um algoritmo. No entanto, já existem aplicações de IA com mínima ou nenhuma intervenção humana e que simulam a criação humana, como será discutido a seguir.
"Machine learning" não é uma ferramenta restrita a um único campo tecnológico, uma vez que proporciona benefícios comerciais em diversos campos técnicos, tal como no setor de saúde, telecomunicações, transporte e segurança.
De fato, considerando o recente desenvolvimento do "machine learning" no setor de saúde e as vantagens obtidas durante a pandemia de Covid-19, é notória a relevância da IA no patenteamento de invenções desse campo tecnológico.
A IA é utilizada na tomada de decisões inteligentes, e ainda, pode ser aplicada nos campos de sequenciamento e genômica funcional; design, descoberta e teste de novos fármacos; farmacologia; análise de big data; diagnóstico de câncer; entre outros.
Um exemplo do benefício do uso da IA no setor de saúde é a predição do diagnóstico de uma doença com base em formulários alimentados por um usuário em um sistema de computador, de modo que é possível facilitar o diagnóstico de doença de um paciente por um sistema de IA, com base nos sintomas apresentados pelo referido paciente.
No contexto da pandemia de Covid-19, por exemplo, as tomografias dos pulmões de pacientes com Covid-19 têm sido avaliadas em alguns hospitais, e, a partir dos inputs alimentados nas bases de dados, a IA possibilita o reconhecimento dos possíveis casos mais críticos da doença, o que otimiza o tempo e facilita a tomada de decisão pelos melhores procedimentos clínicos.
Do ponto de vista estatístico, o Radar Tecnológico 21, publicado em 2020 pelo INPI, apresenta o mapeamento dos pedidos de patentes depositados no Brasil de 2002 a 2019 relacionados à IA, em que o setor de saúde é o segundo do ranking, com um total de 19% dos pedidos de patente depositados, atrás apenas do setor de transportes com 25% dos depósitos realizados, enquanto o setor de telecomunicações aparece em terceiro lugar com 13% dos pedidos de patente depositados.
Em particular, o destaque no setor de saúde é a empresa holandesa Philips, que fabrica e fornece produtos voltados ao cuidado com a saúde e foi responsável pelo depósito de cerca de 12% dos pedidos de patente no Brasil relacionados à AI no referido campo técnico.
E ainda, o Núcleo de Inteligência em Propriedade Industrial (NIPI), em parceria com a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), publicou um estudo relacionado a este campo técnico no Brasil, especialmente direcionado a máquinas e equipamentos. Considerando os residentes nacionais, o setor de saúde foi identificado como o mais relevante dentre 15 categorias analisadas. Especificamente, o referido setor responde por 17% dos pedidos de patente depositados entre 2002 e 2019, seguido por reconhecimento de padrões (16%), elétricos (15%) e mecânicos (13%)
Diante das tantas possibilidades de novas tecnologias e inovações viabilizadas pela IA no setor de saúde e em muitos outros, proteger a propriedade intelectual envolvida se torna premente. Do ponto de vista da proteção de ativos intangíveis, como através de uma patente, por exemplo, a utilização da IA deve ser analisada e discutida a partir de duas formas: (i) IA como ferramenta para auxiliar as criações humanas; e (ii) IA como criadora de inovações com mínima (ou nenhuma) intervenção humana.
Nos casos em que a IA é utilizada como uma ferramenta para auxiliar o ser humano em uma determinada tarefa, como por exemplo, na seleção de compostos dentro de uma variedade de possibilidades; na previsão da toxicidade de fármacos; na utilização de software para avaliar tomografias de pulmão de pacientes com Covid-19 como acima mencionado, entre outros, a autoria da invenção ainda seria do ser humano. Porém, outros desafios também podem surgir durante a análise de patenteabilidade, incluindo como avaliar a atividade inventiva2 e a suficiência descritiva3 da dita invenção. O parâmetro da obviedade, ou seja, a atividade inventiva da invenção, demanda uma reflexão. Afinal, seria óbvio para um ser humano técnico no assunto, utilizando o sistema de IA no exemplo de eleger possíveis novas moléculas para testes clínicos, alcançar a invenção? O sistema patentário deveria alterar o nível de atividade inventiva considerado necessário para patentear invenções envolvendo IA?
Em relação à suficiência descritiva e sua importância para fomentar o constante desenvolvimento tecnológico da sociedade, também há aspectos relevantes a serem considerados. O uso da IA em um pedido de patente dificulta a garantia de sua suficiência descritiva? Caso positivo, haverá impacto em sua patenteabilidade?
Por outro lado, nos casos em que a IA é responsável pela criação de uma invenção, a principal discussão recai sobre a autoria da invenção. Um exemplo emblemático é o do sistema de IA "Dabus", que foi desenvolvido por um ser humano4. No caso Dabus, o próprio sistema de IA desenvolveu duas invenções para as quais o cientista que o criou depositou pedidos de patente. Neles, o Dabus foi indicado como o inventor, enquanto o cientista (pessoa física) era o titular.
Os escritórios de patente da Austrália, Estados Unidos e Europa rejeitaram os referidos pedidos de patente, com o argumento de que apenas uma pessoa física poderia ser nomeada como inventor. Na fase de recurso, as cortes dos Estados Unidos e da Europa mantiveram a decisão de rejeição dos pedidos de patente, mas a corte da Austrália aceitou o pedido de recurso e deferiu a patente com o argumento de que deve ser utilizada uma interpretação evolutiva da lei patentária na análise de invenções relacionadas à IA.
No Brasil, um dos pedidos de patente para criações do Dabus teve uma exigência formal emitida solicitando esclarecimentos em relação ao fato de que apenas o Dabus foi incluído como inventor. Embora o Titular tenha respondido a exigência formal na tentativa de justificar tal inclusão, o INPI não aceitou os argumentos do Titular, com base na impossibilidade de nomear ou indicar uma IA como a inventora de um pedido de patente brasileiro.
De fato, a legislação patentária brasileira não aborda explicitamente o termo "pessoa física" para um inventor, mas, a interpretação mais aceita é a que o inventor deve necessariamente ser uma pessoa física. Então, o INPI publicou uma decisão de retirada do pedido da fase nacional brasileira na Revista da Propriedade Industrial nº 2696, de 6 de setembro de 2022. A referida decisão ainda pode ser objeto de recurso pelo Titular na instância administrativa ou contestada perante a Justiça Federal em uma ação judicial contra o INPI.
Sabemos que o direito e as leis devem acompanhar as mudanças sociais e econômicas de cada país, bem como considerar suas relações internacionais. A IA, especialmente, se torna cada vez mais presente no mundo, seja em situações do dia a dia, como uma máquina de autoatendimento em supermercados, seja no desenvolvimento tecnológico voltado para a saúde pública, como mencionado nos parágrafos acima.
Assim, diante da tendência global de expansão e avanço tecnológico, é necessário estabelecer uma regulamentação específica sobre aqueles avanços tecnológicos alcançados com IA, de modo a garantir a eficiência no mercado e segurança jurídica perante terceiros. É premente modular um critério para a análise de invenções envolvendo IA, tanto com relação aos aspectos formais (como titularidade e autoria dessas invenções), quanto com relação aos parâmetros mais técnicos e subjetivos (como a determinação do nível de atividade inventiva de uma invenção envolvendo IA), ou como avaliar e confirmar se esta apresenta suficiência descritiva.
Fato é que as legislações patentárias que regem a maioria dos países não previu que um sistema de IA seria capaz de criar e inovar. Então, toda a produção tecnológica e criativa ficou limitada a uma pessoa física, o que traz novas e importantes reflexões: o sistema patentário e de PI deve deixar de ser antropocêntrico? Ainda é válida a aplicação da Teoria Econômica5 num ambiente de desenvolvimento tecnológico baseado em IA? As discussões para responder a essas e outras perguntas estão ainda em andamento.
É alta a expectativa pela concessão e implementação efetiva de proteção aos desenvolvimentos envolvendo IA, seja como ferramenta ou como criadora. Além disso, é preciso acompanhar a evolução tecnológica e criativa, almejando o progresso das nações, favorecendo parcerias entre universidades e empresas, seja por transferência de tecnologia ou por desenvolvimento conjunto, proporcionando, assim, benefícios à população mundial.
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1 Algoritmos são sequências de tarefas para alcançar um resultado esperado em um tempo limitado.
2 Atividade inventiva é um dos requisitos para considerar uma invenção patenteável
3 Suficiência descritiva de um pedido de patente também é um requisito de patenteabilidade
4 Stephen Thaler é o criador do sistema de IA "Dabus" que significa literalmente "Device for Autonomous Bootstrapping of Unified Sentience", ou em tradução livre, "Dispositivo para inicialização autônoma da Senciência Unificada".
5 A Teoria Econômica prevê que a retribuição financeira gera incentivo para pesquisas de inovações e divulgação de informações por parte dos titulares.
Gustavo Felipe Haas Vieiralves
Integrante da área de Propriedade Intelectual, especialista em Patentes. Advogado do escritório BMA Advogados.
Letícia dos Santos Viana
Integrante da área de Propriedade Intelectual, especialista em Patentes. Advogada do escritório BMA Advogados.
Lilian Ghitnick Arcalji
Integrante da área de Propriedade Intelectual, especialista em Patentes. Advogada do escritório BMA Advogados.