As idas e vindas do poder de controle na sociedade limitada - Impactos da lei 14.451/22
Com a lei 14.451/22, novo rearranjo de poder ocorre nas sociedades limitadas, com impactos substanciais nas relações sociais.
terça-feira, 25 de outubro de 2022
Atualizado às 10:00
I. Introdução
Com o advento da lei 14.451, de 22 de setembro de 2022 (com entrada em vigor após trinta dias de sua publicação oficial), a sociedade limitada passa por uma nova modificação substancial quanto à questão do controle da sociedade. De fato, tais modificações têm sido frequentes nos últimos vinte anos, e novamente se verifica uma alteração de regras com impactos relevantes na relação de poder entre os sócios. Vejamos:
II. A situação no decreto 3.708/19
A sociedade limitada foi inserida em nosso ordenamento jurídico por força do decreto 3.708, de 1919, norma aplicável até a entrada em vigor do Código Civil. Aquela lei tinha somente dezenove artigos e pode-se entender que em sua simplicidade estavam tratados todos os temas relevantes ao seu funcionamento. No tocante às deliberações sociais não havia norma expressa, entendendo-se que o contrato social poderia regulá-las e, assim não ocorrendo, elas seriam tomadas segundo os termos de lei especial ou pelo voto da maioria do capital social, conforme o entendimento da melhor doutrina, na qual se inseria Waldemar Ferreira1:
..." de acordo com o preceituado no art. 331, segunda alínea, do Código Comercial (de 1850) todas as deliberações se tomariam pelo voto da maioria dos interesses contra o da minoria nos mesmos interesses, ainda que representada esta pelo maior número de sócios e aquela por um só", com algumas exceções legais expressas.
Não se cogitava, como se percebe, do estabelecimento de maioria qualificada para as deliberações sociais, o que podia ser feito voluntariamente no contrato social. No regime de ampla liberdade que até então existia na organização daquelas sociedades pode-se dizer que os sócios eram felizes e talvez não o soubessem, diante dos modelos que o substituíram como será visto em seguida, eivados de exigências e formalidades muitas vezes incompatíveis com a flexibilidade que deve revestir os institutos do Direito Comercial. E, pior ainda, a limitada foi jogada no berço da sociedade simples, tendo perdido a sua autonomia.
III. A modificação imposta pela redação original do Código Civil de 2002
Com o advento do Código Civil, foi realizada modificação substancial nas relações de poder, em razão da estipulação de trâmites de deliberação (assembleias e reuniões de sócios) e inserção de quóruns elevados para aprovação das decisões mais estratégicas da sociedade. Dentre vários quóruns estipulados (unanimidade, 2/3, maioria absoluta, maioria de presentes), cabe, como destaque, a imposição, na redação original do art. 1.076, inciso I, de exigência de votos correspondentes a, no mínimo, três quartos do capital social, para permitir a modificação do contrato social. Dessa maneira, notou-se um rearranjo na situação societária, na medida em que um sócio, até então detentor da maioria do capital (50% +1), não conseguiria mais, nessa nova realidade criada pelo código de 2002, aprovar modificações no contrato social, o que levou a um aumento de poder de sócios minoritários, detentores de percentual mínimo superior a 25% do capital.
Tal realidade, de fato, acarretou em súbita instabilidade nas posições preexistentes, levando, em alguns casos, à perda de poder de controle anteriormente detido. Cabe notar ainda que essa maior complexidade atribuída à sociedade limitada foi objeto de diversas críticas à época, tal como visto na posição de José Waldecy Lucena, ao afirmar que ¨o Código fez de uma matéria tão simples um imbróglio¨2.
IV. Nova modificação, imposta às sociedades enquadradas com ME/EPP, pela lei Complementar 123/06
Em resposta às críticas decorrentes da nova realidade imposta pelo Código Civil, surgiu, em 2006, uma modificação quanto à matéria. Pela lei Complementar 123, que instituiu o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, foi determinado tratamento diferenciado quanto à matéria das deliberações de sócios, para as sociedades enquadradas na condição de ¨ME - Microempresa¨ ou ¨EPP - Empresa de Pequeno Porte¨.
Desta forma, nos termos do art. 70 da referida lei, as sociedades enquadradas como ME e EPP "são desobrigadas da realização de reuniões e assembleias em qualquer das situações previstas na legislação civil, as quais serão substituídas por deliberação representativa do primeiro número inteiro superior à metade do capital social".
Portanto, para simplificar a atuação de tais entidades, referida legislação dispensou a necessidade de trâmites de deliberação (assembleias e reuniões de sócios), e reduziu o quórum de deliberação para 50% + 1 do capital (adotando critério de maioria absoluta do capital)3.
Essa lei acabou por criar uma ¨dupla realidade¨ de poder em relação às sociedades limitadas. Ou seja, para as sociedades limitadas em geral, o sócio controlador deveria possuir no mínimo 75% das quotas para ter força de aprovação das matérias mais relevantes. No entanto, se (e enquanto) a referida sociedade se enquadrasse como ¨ME - Microempresa¨ ou ¨EPP - Empresa de Pequeno Porte¨, passaria a se submeter às regras específicas da LC 123, alterando substancialmente a relação de poder na sociedade, bem como acarretando a dispensa da necessidade de realização de assembleias ou reuniões.
V. Nova modificação, imposta às sociedades limitadas em geral, pela lei 14.451/22
A par das regras especiais aplicáveis a sociedades limitadas enquadradas como ME e EPP, agora, em outubro de 2022, com a vigência da lei 14.451, ocorre nova mudança substancial nas relações de poder das sociedades limitadas em geral.
Isso porque, referida lei alterou alguns quóruns de deliberações das sociedades limitadas, constantes do Código Civil (art. 1.076), reduzindo de três quartos do capital social (ou seja, 75%), para ¨mais da metade do capital social¨, os quóruns para modificação do contrato social, bem como para deliberar a incorporação, fusão e dissolução da sociedade, ou a cessação do estado de liquidação4. No entanto, diversamente das ME e EPP, mantém-se a necessidade de assembleias ou reuniões para deliberação dos sócios5.
Com isso, novo rearranjo de poder ocorre, com impactos substanciais nas relações sociais, elevando a uma condição de controle sócios que, embora detivessem a maioria matemática das quotas, não alcançavam o quórum estratégico de 75% do capital. Nessa nova realidade, pós lei 14.451, aqueles sócios ganham substancial poder, em detrimento de sócios minoritários que, até então, detivessem mais de 25% do capital, mas menos da metade do total.
VI. Conclusões
Os quóruns deliberativos nas sociedades deveriam ser em primeiro lugar uma questão de livre escolha dos sócios, devendo o legislador estabelecer padrões mínimos, de forma a garantir a estabilidade social interna, mas, ao mesmo tempo, não permitir sua estagnação nem dar lugar a abusos tanto do controlador quanto dos minoritários. Estes, por exemplo, com o quórum atual e em certas circunstâncias, podem travar a vida social e, consequentemente, o exercício eficaz da atividade exercida pela sociedade.
O fundamento do controle está primeiramente na necessidade de se criar um sistema estável, no qual se localiza a responsabilidade daquele que deve de forma não abusiva levar a sociedade a preencher a sua finalidade. Deve-se ter em conta, ainda, que sendo titular da maior parcela do capital social, é o controlador que mais ganha com o sucesso da sociedade, mas também quem mais perde no insucesso. E, neste sentido, o estabelecimento de um quórum de mais da metade do capital social, como acaba de ser feito, para algumas decisões estratégicas (como a modificação do contrato social), novamente modifica a concepção de controle para as sociedades limitadas em geral.
1 In "Tratado de Direito Comercial", Vol. 3, p. 437, Ed. Saraiva, São Paulo, 1961.
2 Conforme "Das Sociedades Limitadas", 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 539.
3 Note-se que as referidas modificações só não serão aplicáveis em casos em que haja disposição contratual em contrário, caso ocorra hipótese de justa causa que enseje a exclusão de sócio ou caso um ou mais sócios ponham em risco a continuidade da empresa em virtude de atos de inegável gravidade, nos termos do parágrafo 1º do art. 70, hipóteses em que realizar-se-á reunião ou assembleia de acordo com a legislação civil.
4 Destaque-se que referida lei também alterou a redação do art. 1.061, para dispor que "A designação de administradores não sócios dependerá da aprovação de, no mínimo, 2/3 (dois terços) dos sócios, enquanto o capital não estiver integralizado, e da aprovação de titulares de quotas correspondentes a mais da metade do capital social, após a integralização".
5 Relembre-se, entretanto, que nesses casos tanto a reunião quanto a assembleia tornam-se dispensáveis quando todos os sócios decidirem, por escrito, sobre a matéria que seria objeto delas, conforme disposto no art. 1.072, parágrafo 3º do Código Civil.
Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.