PEC dos freios e contrapesos. Aprimoramento ou captura?
Levada a cabo a proposta, no âmbito das agências reguladoras a forma de atuação regulatória seria profundamente alterada, pois seriam apartadas funções que hoje são exercidas por estruturas não segregadas na organização administrativa.
terça-feira, 25 de outubro de 2022
Atualizado às 09:23
A Frente Parlamentar do Empreendedorismo (FPE) anunciou que apresentará no Congresso Nacional uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que foi chamada de "PEC dos freios e contrapesos" e o fará para incluir o art. 37-A à Carta Política brasileira. A proposição enuncia que a "Administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, será organizada e funcionará por meio da separação e autonomia entre os órgãos responsáveis pelas atividades executiva, normativa e de contencioso administrativa". Dito isso, a proposta incluiria a separação dos poderes na atividade de regulatória do Estado.
Em síntese, a regulação consiste na execução de políticas públicas, monitoramento e fiscalização do mercado e ainda inclui o julgamento administrativo de processos administrativos; tudo com o fim de resolver impasses e ordenar o mercado em benefício do ambiente de negócios, incluindo na equação a qualidade dos serviços regulados e o melhor interesse dos consumidores usuários.
Para o efeito pretendido na proposta de PEC o seu arranjo determina que a função executiva seria exercida pelos órgãos da Administração pública direta e indireta que realizariam as funções de implementação de políticas públicas, a prestação direta de serviços públicos e de fiscalização. A função normativa ficaria a cargo de Conselhos dos quais participariam representantes do Ministério, das Agências, dos setores regulados da atividade econômica, da academia e dos consumidores, todos aprovados pelo Congresso Nacional. No caso do contencioso administrativo o encargo recairia sobre órgão julgador independente, garantida a ampla defesa, o contraditório e o duplo grau de jurisdição administrativa.
Levada a cabo a proposta, no âmbito das agências reguladoras a forma de atuação regulatória seria profundamente alterada, pois seriam apartadas funções que hoje são exercidas por estruturas não segregadas na organização administrativa.
A proposta sugere que a intenção da PEC é democratizar o processo de elaboração das normas pela participação de representantes de setores regulados da atividade econômica, da academia e dos consumidores. No entanto, a segregação das funções em um tal nível de independência pode prejudicar esforços atuais de alguns reguladores que, com potencial de consecução de resultados desejáveis, atuam na aplicação de ferramentas e métodos mais sofisticados na execução da regulação, adotando práticas como o uso de sanções premiais, regulação por incentivos, utilização da consensualidade no processo administrativo sancionador e adoção da regulação responsiva, e tudo isso demanda a concessão de boa margem de discricionariedade ao Regulador.
Além disso, a PEC não garante que os Conselhos e os órgãos julgadores teriam a autonomia atribuída às Agências por salvaguardas como a estabilidade, mandatos fixos e independência de gestão. Ela também pode ter por efeito a redução da precisão técnica nas decisões em processos e na elaboração das normas regulatórias setoriais (isso dependendo do perfil de composição dos integrantes dos órgãos e Conselhos).
Neste contexto, é natural que haja alguma desarticulação no enforcement de aplicação de inovações nos métodos e estratégias regulatórias, isso pelo simples fato de dificultar a utilização de intervenções transversais que, por exemplo, permeiem sanções (função de jurisdição administrativa) com orientação, monitoramento ou medidas de estímulo de conformidade (funções executivas), já que os exercentes destas funções atuariam em estruturas independentes, sob gestões diversas e que podem não compartilhar dos mesmos métodos e estratégias de regulação.
Mesmo que a razão de fundo seja a imposição de mais pluralidade pela participação de todos os stakeholders envolvidos, e a indução da fiscalização cruzada que entre si fariam os exercentes das funções, não há garantia de que a segregação das atividades de execução, normatização e jurisdição administrativa resguarde a regulação do Estado da possibilidade de captura por agentes do interesse político ou econômico.
E para legitimar alteração tão intensa não se pode dizer que exista um déficit de participação da sociedade na construção normativa no âmbito das Agências, já que elas se utilizam constantemente de ferramentas de participação popular, como a consulta pública1. Elas também estão submetidas ao controle externo da Controladoria Geral da União2, Tribunal de Contas da União, Ministério Público Federal e Judiciário.
Finalmente, a partição das naturezas instrumentais das agências reguladoras tende a reforçar a estratégia de regulação por comando e controle, por ser simples e totalmente subordinada à norma (prescrição-infração-punição), apesar de ser pouco eficiente3. Com isso, certamente se prejudicará a aplicação de outras soluções mais responsivas e que demandam flexibilidade, conexão e discricionariedade. Por último, é necessário lembrar que as agências reguladoras, sob inspiração liberal, foram criadas para terem composição técnica altamente especializada, para serem independentes e, com isso, estarem a salvo de interesses políticos e econômicos, mas o que se tem visto é que a captura política das agendas e deliberações regulatórias é tão ou mais provável de ocorrer do que, propriamente, a captura por interesses econômicos e a dispersão de funções pode não contribuir para a solução deste problema.
1 Ilustra bem a questão a Proposta de Revisão do Regulamento Geral de Direitos do Consumidor de Serviços de Telecomunicações (RGC), Resolução 632/14 que passou por consulta pública recebendo 916 contribuições da sociedade - vide ANÁLISE 112/22/EC constante do Processo 53500.061949/2017-68.
2 Exemplo está no Relatório de Avaliação do processo sancionatório da Anatel - Exercício 2020, disponível em: https://eaud.cgu.gov.br/relatorios/download/886363. Consulta realizada em 10/10/2022.
3 No acórdão 1970/17 o TCU avaliou que o índice de arrecadação das multas aplicadas pelas agências reguladoras federais é muito baixo e as causas estão em recursos, prescrições e judicialização. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/multas-administrativas-de-orgaos-reguladores-nao-sao-amplamente-divulgadas.htm. Consulta realizada em 10/10/22.
Alexandre Almeida da Silva
Formado em Direito pela UFRJ com pós-graduação em Direito Privado pela PUC-Rio Sócio da Jacó Coelho Advogados.