Cláusula do não obstante - um paradoxo constitucional
Diante de muitas discussões sobre as funções típicas e atípicas exercidas pelos três poderes no Brasil, expõem-se de forma argumentativa sobre a cláusula canadense do não obstante.
sexta-feira, 21 de outubro de 2022
Atualizado às 13:53
Com a criação da Carta Canadense dos Direitos e Liberdades em 1982, a cláusula do não obstante foi aceita com o intuito de reeditar leis declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte deste país. Nessa linha, alguns requisitos para se adotar este tipo de deliberação podiam ser descritos como o quórum de maioria absoluta das autoridades legislativas, a validade quinquenal dos procedimentos e as decisões restritivas em relação aos direitos fundamentais. Destarte, uma importante questão que foi apontada abrangia a atuação do judiciário no controle de constitucionalidade quando retirava do ordenamento jurídico leis ou atos normativos com efeitos erga omnes e ex tunc. Ou seja, a questão da competência foi colocada em xeque, uma vez que somente o poder legislativo era composto por indivíduos escolhidos pelo povo, por meio de sufrágio e representação popular. Em contrapartida, os integrantes do judiciário eram escolhidos na forma de concursos de provas e títulos por meio da meritocracia. Nessa toada, os responsáveis por elaborar as leis de um país dependiam de aprovação do judiciário no julgamento da constitucionalidade destas. Por conseguinte, para o Canadá especificamente, a cláusula do não obstante foi implementada pela Carta Magna canadense com finalidade de equilibrar a função legislativa à judicial, tentando se aproveitar, ao máximo, da aplicabilidade das leis referentes a direitos fundamentais.
Segundo o ministro do STF Alexandre de Morais, "A independência e a harmonia entre os poderes da república vem consagrados pela Constituição Federal e protegidas por diversos mecanismos de controles recíprocos que precisam, efetivamente, ser utilizados evitando, dessa forma, a tentativa de criação inconstitucional de mecanismos que induzam à possibilidade de guerrilha institucional". Nesse contexto, no Brasil, por exemplo, foi impetrada a ADI 4983 contra lei Estadual cearense considerada inconstitucional, pelo fato de violar o artigo 225 da Constituição (sobre o meio ambiente equilibrado). Nesse diapasão, o que estava em discussão era a constitucionalidade da lei que liberava a Vaquejada, uma vez que existiam conflitos entre dois direitos fundamentais: direito à liberdade de acesso à cultura imaterial da população e o direito à manutenção do bem-estar da fauna e flora de determinada região. Ademais, questionava-se se o sofrimento dos animais era justificado pelo retorno econômico para a região da Vaquejada e se a cultura imaterial do povo deveria ser preservada. Portanto, mesmo o STF considerando a lei Estadual inconstitucional, o Poder legislativo não se vinculou à decisão e aprovou, de maneira diversa, a Vaquejada mantendo o evento- instituto chamado pelos juristas de "backlash" (contra-ataque político).
Segundo a teoria da separação de poderes elaborada pelo Barão de Montesquieu, "há em cada Estado três tipos de poderes, o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das nações e o poder executivo daqueles que dependem do direito civil. Pelo primeiro, o príncipe ou o magistrado faz leis por um tempo ou para sempre, e corrige ou abroga aqueles que são feitos. Pelo segundo, ele faz paz ou guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece segurança, evita invasões. Pelo terceiro, punha os crimes ou julga os diferentes indivíduos. Este último será chamado de poder judicial; e o outro, simplesmente o poder executivo do Estado". Para contextualizar a situação atual, muito se tem discutido sobre a cooperação entre os poderes no Brasil em relação as funções típicas e atípicas. Todavia, ao se tratar do assunto elaboração das leis e do controle de constitucionalidade, nota-se que podem ser funções antagônicas e geradoras de crises. Ou seja, muitos questionam sobre o legislativo assumir a posição de controlar a constitucionalidade das leis, uma vez que são eleitos pela população e, portanto, representam a vontade desta.
Nesse sentido, mesmo diante de questionamentos acerca das normas inconstitucionais e suas consequências no ordenamento jurídico brasileiro, a cláusula do não obstante no Brasil não foi aceita, pois as autoridades respeitavam a teoria montesquiana de freios e contrapesos supracitada. Entretanto, o controle de constitucionalidade reserva uma série de mecanismo para tentar aproveitar, ao máximo, a produção normativa pelo legislativo como a interpretação conforme de normas polissêmicas, o controle de constitucionalidade sem redução da lei, entre outros. Por conseguinte, o judiciário parte do princípio da presunção da constitucionalidade e acredita da produção normativa, elaborada pelo legislativo, haja vista a rigidez e a cautela constitucional para se elaborar as leis e os atos normativos em geral (Artigo 59 a 69 da CF/88).
Outrossim, apesar dos membros do poder judiciário não serem eleitos pela população por meio da votação, só conseguem ser empossados na função, após finalizar um processo formal dificílimo que requer anos de conhecimento adquirido e experiência profissional. Além disso, os magistrados representam o povo indiretamente, uma vez que tem o dever de julgar a constitucionalidade difusa e abstrata de leis sobre temas como a dignidade da pessoa humana, os direitos fundamentais,os direitos sociais, entre outros. Finalmente, após toda essa explanação sobre a cláusula do não obstante canadense, infere-se que essa ainda não se adequa ao atual ordenamento constitucional brasileiro, de modo que o sistema check and balances delimita a todos na contemporaneidade. Ou seja, no momento atual, há a necessidade premente de arrefecimento de conflitos entre as autoridades para o atingimento da tão sonhada segurança jurídica e social na qual os cidadãos obtenham a tranquilidade de se pautar nas leis elaboradas moralmente, com licitude e legitimidade processual.