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Dia mundial da bioética em 2022 no Brasil: o que celebrar?

Atualmente, a biopolítica ainda se faz presente - basta ler qualquer noticiário para conhecer parte do longo repertório de suas manifestações.

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Atualizado às 13:27

Desde 2016, por iniciativa da Unesco, celebra-se o dia mundial da Bioética em 19 de outubro. A cada ano, a efeméride é marcada por um tema que pauta os debates e conscientização. Em 2022, o tema é "Responsabilidade Social e Saúde", inspirado no Art. 14 da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco que diz:

Art.14 - Responsabilidade Social e Saúde:

a) A promoção da saúde e do desenvolvimento social para a sua população é objetivo central dos governos, partilhado por todos os setores da sociedade.

b) Considerando que usufruir o mais alto padrão de saúde atingível é um dos direitos fundamentais de todo ser humano, sem distinção de raça, religião, convicção política, condição econômica ou social, o progresso da ciência e da tecnologia deve ampliar:

(i) o acesso a cuidados de saúde de qualidade e a medicamentos essenciais, incluindo especialmente aqueles para a saúde de mulheres e crianças, uma vez que a saúde é essencial à vida em si e deve ser considerada como um bem social e humano;

(ii) o acesso a nutrição adequada e água de boa qualidade;

(iii) a melhoria das condições de vida e do meio ambiente;

(iv) a eliminação da marginalização e da exclusão de indivíduos por qualquer que seja o motivo; e

(v) a redução da pobreza e do analfabetismo.1

Após a trágica experiência que a humanidade vivenciou com a pandemia de Covid-19, a reflexão sobre o Art. 14 diz respeito à própria essencialidade da Bioética e dos Direitos Fundamentais:

A sobrevivência digna da humanidade. Ressurge o questionamento da pandética, ou seja, como valores morais/éticos são aplicados, relativizados ou reforçados em situações de grandes calamidades sanitárias2.

Mas, quando 43,2% da população brasileira sofre com a insegurança alimentar leve ou moderada e 15,5% sofre com forma mais grave, o que celebrar de responsabilidade social e saúde? Quando há um corte orçamentário de 59% do programa Farmácia Popular para assistir pacientes com doenças crônicas que fazem uso contínuo de diversos medicamentos essenciais à sua qualidade de vida e sobrevivência, como celebrar o direito ao acesso a cuidados de saúde de qualidade e medicamentos essenciais? E quando se estabelece limiares de custo-efetividade nas decisões em saúde, como falar em usufruir o mais alto padrão de saúde atingível como direito fundamental? E quando se estabelece como antiética a conduta médica que procura disponibilizar cuidados paliativos por meio de produtos com canabinoides?

As consequências de tais decisões políticas (que vulnerabilizam ainda mais a população que historicamente subsiste em condições mínimas de existência digna) são conhecidas e, justamente por isso, são intencionais. A esse poder que dita quem vive e morre, Achille Mbembe definiu como as novas formas de políticas centradas no poder sobre a morte, especialmente na forma como Estados conduzem respostas a crises3. Em sua análise, Mbembe inicia demonstrando que tal forma de política é uma fuga da democracia, quando governos deixam de respeitar as formas democráticas alegando-se crise e exceção das mais diversas formas.

No Brasil, tal política ocorreu durante o período pandêmico mais grave. Descrevi tais condutas anteriormente como biopopulismo4 ou seja, a apropriação política de discursos científicos que visam instrumentalizar a ciência como mecanismo populista de, valendo-se da democracia, ir contra ela própria. Assim, se a necropolítica ocorre em um cenário que contraria a democracia, é por meio do biopopulismo que esse cenário é estabelecido.

Por ocasião daquele texto já alertava para consequências alarmantes, como o aumento da vulnerabilidade sanitária de parcela da população, inclusive com aumento de mortes que poderiam ser evitadas, além de deslegitimar a respeitabilidade e a função social do desenvolvimento cientifico, da ciência e cientistas.5

Atualmente, a biopolítica ainda se faz presente - basta ler qualquer noticiário para conhecer parte do longo repertório de suas manifestações. O descaso é uma opção política de reforço das estruturas socioeconômicas e técnico-científicas de restrição do acesso à promoção da saúde e do desenvolvimento social.

Este é o sentido do dia da bioética em 2022 no Brasil:

Lembrar que é preciso resistir à "morte e vida severina"6 de uma biopolítica em que nem todos são iguais perante a lei, e na qual tampouco a saúde é um direito de todos e dever do Estado; lembrar que, quanto menos humanidade for atribuída a alguém na minha comunidade, também menos humano eu serei.

_________________________

1 Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf

2 SELGELID, M. J. Pandethics. Public Heath Journal. Vol. 123, n. 3. Londres: Elsevier, mar./2009, p. 255-259.

MBEMBE, Achille. Necropolitics. Durham: Duke University Press, 2019.

4 FÜRST, Henderson. Biopopulismo e a apropriação política de narrativas científicas. In: CASTELO BRANCO, Pedro H. Villas Bôas; GOUVÊA, Carina Barbos; LAMENHA, Bruno (coords.) Populismo, constitucionalismo populista, jurisdição populista e crise da democracia. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020, p. 141 e ss.

5 Idem, p. 174.

6 "E se somos Severinos

Iguais em tudo na vida,

Morremos de morte igual,

Mesma morte Severina:

Que é a morte de que se morre

De velhice antes dos trinta,

De emboscada antes dos vinte,

De fome um pouco por dia

(de fraqueza e de doença

É que a morte Severina

Ataca em qualquer idade,

E até gente não nascida)"

MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida Severina. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, p. 92

Henderson Fürst

Henderson Fürst

Doutor em Direito pela PUC-SP. Doutor em Bioética pelo CUSC. Presidente da Comissão de Bioética da OAB-SP. Diretor da Sociedade Brasileira de Bioética. Membro do CISS/Conselho Nacional de Saúde.

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