Avaliação de tecnologias em saúde: apontamentos a partir da ética e do direito.
As novas tecnologias em saúde nem sempre são benéficas! É preciso que todos os cuidados de avaliação sejam adotados para garantir a segurança dos beneficiários do sistema público e da saúde suplementar.
sexta-feira, 21 de outubro de 2022
Atualizado às 08:57
Tecnologia e saúde
A lei 14.454, de 2022, determinou mudanças substanciais no sistema de saúde suplementar adotado no país e obrigatório para planos e seguros saúde. Em conformidade com a nova lei, a lista de procedimentos e eventos em saúde suplementar atualizada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS, constitui referência básica para os planos privados de assistência à saúde, mas em caso de tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo assistente do paciente, que não estejam no rol, a cobertura será autorizada pela operadora desde que: exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou, existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias em Saúde no SUS, ou autorização pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária; ou, exista recomendação de, no mínimo, um órgão de avaliação de tecnologias que tenha renome internacional.
A expressão "ou", contida no artigo da nova lei, é motivo de preocupação porque na primeira parte o texto legal se refere somente a existência de comprovação da eficácia à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico, sem nenhuma exigência prévia sobre a fonte ou origem da referida comprovação de eficácia. Em outras palavras, se um médico assistente do paciente estiver fundamentando sua prescrição em um único estudo, independente da qualidade, será suficiente para ser obrigatoriamente oferecido pela operadora de saúde? Aparentemente sim, o que representa uma enorme insegurança para os beneficiários de planos e seguros saúde.
A tecnologia e a inovação estão presentes em todas as áreas da saúde, pública e privada, e a expectativa é que continuem a ser produzidas em larga escala de forma a atingir todas as etapas de cuidado, da atenção primária aos tratamentos complexos para doenças raras ou autoimunes. O incentivo para o desenvolvimento tecnológico e disruptivo vem de todos os atores dessa rede de relações: pacientes, médicos, hospitais, indústria farmacêutica e, embora as fontes pagadoras, governo e planos de saúde, vejam com apreensão o aumento dos custos decorrentes das novas tecnologias da saúde, também desejam melhor atendimento e desfecho clínico positivo para os beneficiários.
Mas como garantir que todas as inovações em saúde sejam, efetivamente, seguras para serem utilizadas? Que não sejam fator de risco para aqueles que pretenderem se beneficiar delas?
Ética e responsabilidade na decisão por novas tecnologias
A reflexão em torno da ética e da responsabilidade na inovação em saúde se alicerça no aspecto fundamental da liberdade para a realização do trabalho e da pesquisa científica.
No Brasil, a Constituição Federal garante a liberdade de expressão da atividade científica, independentemente de censura ou licença, conforme consignado no art. 5º, inciso IX, localizado no título Dos Direitos e Garantias Fundamentais. Também consagra no art. 207 a autonomia didático-científica das universidades e dos institutos de pesquisa científica e tecnológica. E no art. 216, inclui as criações científicas e tecnológicas no patrimônio cultural brasileiro.
O Código de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina, Resolução CFM 2.217/18, no Capítulo I, que trata dos Princípios Fundamentais, determina como quinto princípio que compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente e da sociedade. Os médicos ficam autorizados por sua normativa máxima a agirem na busca dos melhores recursos científicos o que, na atualidade, quase sempre corresponde aos melhores dispositivos tecnológicos no campo de procedimentos, materiais e/ou medicamentos.
Se por um lado a trajetória histórica da humanidade é marcada pela convivência com os riscos naturais e sociais desde o início do processo civilizatório, por outro lado a busca incessante pela técnica criou novas formas de risco, decorrentes do desenvolvimento das tecnologias e de sua utilização na vida prática. O avanço da técnica trouxe novas responsabilidades e a necessidade do debate sobre a ética na pesquisa científica. Em todas as fases da evolução tecnológica e muito em especial na atualidade, em que as inovações disruptivas têm crescido de forma vigorosa, os temas da responsabilidade e da ética na pesquisa científica adquiriram maior relevância.
Hans Jonas1 assinala que a ciência vive do retorno que sua aplicação técnica lhe confere, ou seja, já não se faz ciência pelo interesse ou curiosidade do pesquisador, de forma desinteressada, mas sim para que algum resultado possa ser obtido no campo da utilização prática. Assim, o financiamento para custeio de pesquisa será mais facilmente obtido se dela resultarem benefícios no campo prático.
Para os médicos contemporâneos a responsabilidade pela tomada de decisão está ampliada em relação às práticas médicas de cinquenta anos atrás. De forma muito rápida a evolução da pesquisa científica e da tecnologia colocaram à disposição dos médicos diferentes possibilidades de prescrição de exames diagnósticos e tratamentos, mas ao mesmo tempo ampliaram o potencial de verificação de eficácia, acurácia, eficiência, ou seja, a responsabilidade pelas escolhas. Se de um lado existem muito mais recursos tecnológicos e farmacêuticos para tratamentos, é inconteste que o espectro de responsabilidade pela decisão ficou igualmente maior.
A pressão econômica também contribuiu para a ampliação do campo da responsabilidade e da ética. As práticas de mercado estão presentes na área da saúde com especial vigor para a disseminação de novas tecnologias como representação de melhores resultados. A força da informação disseminada por redes sociais, buscadores de internet e publicidade chega para médicos e para pacientes e contribui para fomentar a utilização de novas tecnologias em saúde.
A autonomia médica para escolher o tratamento em benefício do paciente, a pressão econômica da indústria de novas tecnologias em saúde e o anseio dos pacientes por acesso a instrumentos que lhes garantam saúde e qualidade de vida, podem se tornar elementos propulsores de gastos extraordinários e insuportáveis para os orçamentos públicos e privados, tanto quanto fonte de risco para os próprios pacientes.
A ciência da avaliação das tecnologias é imprescindível para auxiliar na decisão de melhor aplicação dos recursos finitos e garantir segurança para os destinatários da tecnologia.
Resistir ao impulso de escolher o novo só é viável se alguns fatores relevantes estiverem conjugados: evidências de que os resultados serão melhores; responsabilidade pela escolha e ética na tomada de decisão.
Nessa perspectiva, a avaliação de tecnologia em saúde assume contornos relevantes porque deixa de ser uma metodologia para auxiliar na alocação de recursos escassos para se transformar em concretização das melhores práticas éticas, na medida em que contribui para aferir se existem evidências que garantam a segurança para o usuário da tecnologia ou, se ela é apenas uma estratégia de mercado com vistas a obter resultados para a indústria.
Avaliação de tecnologia em saúde: desafios da cobertura em saúde
Com o aumento exponencial de novas tecnologias em saúde e com os altos custos que elas representam, é necessário conhecer e avaliar adequadamente novas tecnologias para incorporar apenas aquilo que atenda a indicadores seguros da relação custo-benefício, bem como de efetividade para o atingimento do propósito pretendido.
Letícia Krauss-Silva2
A avaliação tecnológica em saúde (ATS) é, na atualidade, em países desenvolvidos, um subsídio importante para decisões sobre cobertura de tecnologias/procedimentos e para a elaboração de diretrizes clínicas e, portanto, para os processos de planejamento/gerência e avaliação de serviços e programas, tanto ao nível nacional quanto ao nível de cada serviço. Ela ainda é questionada, todavia, em nosso país, como sendo um mero recurso tecnocrático vinculado ao pensamento neoliberal de contenção de gastos no setor, por compreender "a utilização de critérios de eficiência econômica", o que simplifica a questão da falta de recursos e os problemas da baixa efetividade, eficiência e qualidade dos serviços de saúde no país.
A mesma autora aponta que o uso de novas tecnologias guiadas mais pelo fascínio do novo, decorrente mais da eficiente difusão publicitária do que das evidências de benefício, fizeram com que a atenção dos gestores de recursos na saúde pública e nos planos e seguros saúde se voltasse para a necessidade de produzir mais saúde, mais qualidade e mais valor, ancorados em evidências científicas e, não apenas pelo entusiasmo pelo novo ou pela pressão dos fabricantes.
Lima, Brito e Andrade3 destacam os países de economia central que possuem programas de ATS e os objetivos da metodologia
A difícil decisão de alocar recursos públicos finitos na atenção à saúde encoraja países com sistemas públicos de saúde a consolidar seus programas de Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS). Atualmente, Austrália, Canadá e Reino Unido são exemplos de vanguarda internacional quando o assunto é avaliação e incorporação, utilização ou suspensão de uso de tecnologias de seus sistemas de saúde.
A ATS tem como principal objetivo auxiliar os gestores em saúde na tomada de decisões coerentes e racionais quanto à incorporação de novas tecnologias, evitando a introdução de tecnologias cujo valor é incerto para os sistemas de saúde e optando por uma abordagem política responsável (accountable) pelas decisões para a população.
O cenário de expansão da demanda e da oferta por novas tecnologias em saúde, com recursos finitos e ampliação da longevidade, faz com que o Brasil tenha que tomar decisões corretas para construir orçamentos públicos e privados viáveis, o que torna a avaliação de tecnologias em saúde imprescindível para garantir a perenidade dos sistemas.
1 JONAS, Hans. Técnica, Medicina e Ética. S.Paulo: Paulus, 2013, p. 107.
2 SILVA-KRAUSS. Letícia. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 20 Sup 2:S199-S207, 2004, p. 199.
3 Lima, Sandra Gonçalves Gomes, Brito, Cláudia de e Andrade, Carlos José Coelho de. O processo de incorporação de tecnologias em saúde no Brasil em uma perspectiva internacional. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2019, v. 24, n. 5 [Acessado 17 Fevereiro 2022] , pp. 1709-1722. Disponível em:
Angelica Carlini
Doutora em Direito Político e Econômico. Mestre em Direito Civil. Pós-doutorado em Direito Constitucional. Pós-graduanda em Direito Digital pelo ITS-UERJ. Advogada. Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCONT.
Fernanda Paes Leme
Doutora e Mestre em Direito Civil pela UERJ. Professora Titular de Direito Civil do Ibmec-RJ. Coordenadora da graduação em Direito do Ibmec-RJ. Advogada e Pesquisadora.
Vivian Almeida
Possui Mestrado e Doutorado em Economia pela UFF (2011) e graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal Fluminense (2006). Possui experiência em pesquisa econômica aplicada, nas áreas de Economia Social (ênfase em Economia da Saúde e Desenvolvimento Infantil) e Políticas Públicas. Atualmente é Consultora e Professora Titular no Ibmec. Atuou nas instituições Ipea, Anbima e Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos.