A relevância e a repercussão geral não são institutos com os mesmos efeitos
O instituto da Relevância para os Recursos Especiais não pode ser confundido com a Repercussão Geral. São institutos diferentes.
quinta-feira, 20 de outubro de 2022
Atualizado em 21 de outubro de 2022 14:18
A emenda constitucional 125/22 trouxe a Arguição de Relevância para os Recursos Especiais no Superior Tribunal de Justiça de modo a fortalecer, inequivocamente, a idealização da Corte Superior como Corte de Precedentes e não apenas como Corte de Justiça (apta a tão somente promover a "correção" da aplicação da legislação federal aos casos concretos por meio de recurso).
De fato, a Arguição de Relevância traz, para âmbito dos recursos especiais, uma forma de aproximar aquilo que a Repercussão Geral se tornou para os recursos extraordinários perante o STF. Tem-se feito uma analogia entre a arguição de relevância e a repercussão geral, de modo a se entender o que se deve argumentar para atendimento a este requisito criado recentemente.
No entanto, é necessário um temperamento nesta análise. De um lado, é necessário ter em mente a necessidade de fortalecer a Corte Superior como instituição com função precípua de criação (e manutenção) de precedentes, atribuindo-lhe, na prática, aquilo que foi desejado quando da sua criação. Ou seja, dar ao STJ condições práticas para cumprir sua função de dizer a interpretação da legislação federal, uniformizando o entendimento a ser seguido pelos tribunais. O fortalecimento desta ideia, na prática, é um grande avanço para se buscar a segurança jurídica, atribuindo aos Tribunais o dever - de modo preciso e determinante - de cumprir a interpretação conferida pela Corte Superior. Ou seja, não se pode admitir a desvalorização (infelizmente ainda presente em alguns temas) daquilo que o fixa como tese (que é vinculante por força de lei). O ato de julgar em conformidade com o direito (e, portanto, com a noção institucional daquilo que é justiça) passa por enxergar e colocar em prática o absoluto respeito da hierarquia e do ordenamento juridico. A justiça, objetivamente considerada, se perfaz com o julgamento em acordo com as normas processuais e com respeito aos precedentes vinculantes. A justiça como sentimento subjetivo não interessa ao Direito. A não conformação do julgador com precedente vinculante, de modo a sobressair o senso subjetivo de justiça na sua decisão (especialmente na parte dispositiva), não se presta ao legítimo exercício da jurisdição, pois é ato eivado de pessoalidade do qual o texto constitucional proíbe expressamente. Portanto, a obediência aos precedentes também é garantia da impessoalidade e da imparcialidade; ou seja, da justiça que interessa ao direito.
Porém, se existe a aproximação entre o instituto da Relevância - positivada pela EC 125/22 - com a já existente Repercussão Geral, mormente sobre o objetivo que as qualifica referente a função das Cortes Superiores (STJ e STF), é de se pontuar algumas distinções práticas e procedimentais, que, ao nosso ver, decorrem da própria estrutura normativa constante no art. 105 §§ 2º e 3º do texto constitucional.
A Repercussão Geral, que também existe como filtro recursal dos recursos extraordinários, fez com que o STF, percebesse que a sua aplicação na prática, decorrente do próprio interesse público na definição da questão trazida no recurso, funcionasse como verdadeiro propulsor de precedentes vinculantes. Tanto é que o Supremo vem dispensando (de forma técnica ou não) a aplicação do procedimento de recursos repetitivos para julgamento de recursos extraordinários, pois sendo a repercussão geral requisito de todo e qualquer recurso extraordinário e configurado o interesse público decorrente de tal repercussão geral, tudo que é decidido em recurso extraordinário acaba, por consequência, configurando um precedente vinculante, de observância obrigatória perante os demais tribunais nos limites daquilo que foi objeto de discussão. Apesar de ser esta a aplicação prática que vem sendo dada pelo Supremo, fato que a repercussão geral não substitui (ou impede) a adoção do procedimento de recursos repetitivos e, portanto, nada impediria a convivência dos dois institutos.
Na positivação da arguição de relevância para os recursos especiais, tem-se uma atitude normativa um pouco distinta, que decorre da leitura do texto positivado (se comparado com a repercussão geral). A relevância do direito federal infraconstitucional a ser demonstrada pelo recorrente nas suas razões de recurso especial pode decorrer de uma situação previamente estabelecida na constituição - aquilo que está sintetizado no § 3º e seus incisos, do art. 105 da CF/88 -, de modo objetivo, em que não se levou em consideração a questão propriamente debatida, mas sim algumas características previamente estabelecidas. Assim, considerou-se relevante recurso decorrente de ação cujo valor da causa ultrapasse quinhentos salários-mínimos ou ação que verse sobre improbidade administrativa, por exemplo. Ou seja, enquadrando-se o caso nestas molduras previstas no referido parágrafo, a questão discutida terá relevância reconhecida pela Constituição e não poderá ser rejeitada pelo STJ (é de se ver que foi utilizado o imperativo "haverá a relevância").
Exatamente neste regime positivado do que é relevante para conhecimento e julgamento do recurso que temos uma diferença em relação ao instituto da repercussão geral. Existe uma concepção normativa que deverá ser considerada para atendimento deste filtro recursal relevante e o STJ terá que conhecer do recurso (evidentemente, preenchidos os demais requisitos recursais), sob pena de negar vigência ao texto.
Essa sutil diferença entre os institutos acaba por ser responsável pela diferenciação em relação a abrangência daquilo que será decidido no STJ (em comparação com o que é decidido em repercussão geral pelo STF). Assim, para se criar um precedente vinculante, mesmo decorrente do atendimento do requisito da relevância, deverá ser utilizado o sistema de precedentes já existente no Código de Processo Civil e que o próprio STJ possui familiaridade. Trata-se da sistemática de julgamento de recursos repetitivos - ou, a depender da hipótese, do Incidente de Assunção de Competência (IAC)1 - que conviverá, ao fim, com arguição de relevância, pois não é com ela excludente, pelo contrário.
A sistemática de julgamento de recursos repetitivos - ou do IAC - garante que a relevância constatada assumirá um papel de precedente vinculante daquilo que for decidido a partir do caso analisado. Constatando o STJ que a questão federal ventilada no recurso especial possui relevância, poderá a Corte Superior julgar o tema, definindo a abrangência da sua decisão. Se admitirá o conhecimento do recurso (se satisfeitos os demais requisitos de admissibilidade) entendendo como relevante a questão trazida, sendo, por sua vez, discricionariedade da Corte se aquilo que concluirá valerá apenas para o caso concreto ou se produzirá efeitos normativos para casos idênticos, sendo necessário, neste caso, a observância do procedimento de julgamento de recursos repetitivos - ou do IAC.
Assim, entender que uma questão é relevante não é sinônimo de entender que ela deva ser abrangente em relação aos seus efeitos. Se o STJ entender que deva surgir, daquele recurso especial admitido, uma definição de tese vinculante - e, portanto, abrangente - aplicará, como já vem aplicando, o procedimento de recursos repetitivos (ou o IAC), cumprindo a função precípua de uma Corte de Precedentes. Se, porém, reconhecendo a relevância da questão de direito federal - que como visto, pode até ser decorrente de situações objetivas previamente capituladas no § 3º do art. 105 da CF/85 - poderá se limitar a resolver apenas aquele caso concreto, sendo um precedente não vinculante e até objeto, por óbvio, de persuasão em casos futuros (podendo levar, futuramente, o amadurecimento da discussão para criação de um precedente vinculante através do microssistema de precedentes já disciplinado no CPC).
Não há como enxergar, no entanto, pelo texto positivado, que todo julgamento de recurso especial gerará um efeito igual ao da repercussão geral. Quando a lei impõe que determinada hipótese tenha a relevância admitida, não pela questão ventilada mas por características da ação da qual o recurso provém - como o faz no seu § 3º do art. 105 da CF/88 - se deixa visível a oportunidade para o conhecimento/admissão do recurso especial, sem que, necessariamente, o decidido, configure um precedente vinculante tal como a repercussão geral.
Tal dinâmica acabará autorizando a convivência do instituto da relevância com o processamento dos recursos repetitivos e do IAC, conferindo, sem dúvida, poder ao STJ que, por sua vez, definirá o momento e se, diante daquilo que foi apresentado, firmará um precedente vinculante ou apenas um precedente persuasivo (que servirá inclusive de indicação de que a Corte poderá, mais adiante, definir tese sobre aquela questão em outro recurso)
Em resumo, os dois institutos representam verdadeiros filtros recursais. Porém, a repercussão geral, impõe a fixação daquilo que se convencionou denominar de precedentes vinculantes, definindo teses jurídicas de observância obrigatória pelos Tribunais. Já a relevância dos recursos especiais, poderá assumir também este papel, dando mais espaço para o STJ se institucionalizar como Corte de Precedente. Nestes casos, deverá ser prestigiado o rito procedimental dos recursos repetitivos (ou do IAC) por ser o que possibilita o aprofundamento das discussões com participação mais democrática dos agentes que sofrerão os efeitos vinculantes do precedente.
Todavia, poderão existir casos com relevância reconhecida que não gerarão a qualidade de precedentes vinculantes, permanecendo como precedentes persuasivos, estando o STJ ainda com a competência constitucional para julgá-los isoladamente.
O instituto da relevância é, acima de tudo, um poder conferido ao STJ, como Corte Suprema (ao lado do STF), de decidir o que considera adequado e oportuno decidir, tendo como bússola sua função institucional.2 Essa reflexão deverá amparar a utilização deste poder, que, bem utilizado enobrecerá o poder judiciário e o qualificará na busca de coerência, uniformidade e integridade.
Evidentemente que estes são apenas os primeiros comentários (que podem até ser superados futuramente) com o amadurecimento das discussões sobre o novo instituto e sua regulamentação. Fato é que a novidade está aí, desafiando a interpretação e a adequação institucional. O foco deve ser sempre a segurança jurídica, a uniformização e a concepção de uma judiciário mais eficiente.
1 Já existem temas decididos em IAC pelo STJ, pelo que o sistema é plenamente aplicável na Corte.
2 Esse poder não é novidade nem no direito comparado, se analisadas as Supremas Cortes estrangeiras e nem no Brasil. Destaca-se, previsão no Regimento Interno do STF que permite que a ausência de repercussão geral em determinada questão não seja obstáculo para, mais adiante, se reconhecer. Vejamos:
"Art. 326.Toda decisão de inexistência de repercussão geral é irrecorrível e, valendo para todos os recursos sobre questão idêntica, deve ser comunicada, pelo(a) Relator(a), à Presidência do Tribunal, para os fins do artigo subsequente e do art. 329.
§ 1º Poderá o relator negar repercussão geral com eficácia apenas para o caso concreto
Scilio Faver
Advogado e sócio do escritório Vieira de Castro, Mansur & Faver Advogados. Pós-graduação em Processo Civil pela Universidade Cândido Mendes e em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas.