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A inclusão digital como garantia de direito social e a Constituição brasileira

A urgência da promoção de uma política pública federal de reconhecimento do direito social à inclusão digital, como estratégia de redução da desigualdade econômica e combate ao analfabetismo digital.

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Atualizado em 17 de outubro de 2022 08:44

Não há mais como negar que vivemos em um mundo globalizado e digital. A Internet e suas ferramentas fazem parte do nosso dia a dia, em praticamente todas as atividades que realizamos.

Através de um aparelho de telefone celular (munido de internet móvel ou rede Wi-Fi), é possível a realização de reuniões e aulas remotas, pagamentos e movimentações bancárias, agendamentos de atendimentos médicos e consultas por plataformas de telemedicina (sendo breve nos exemplos).

Mas a chegada da era virtual e suas tecnologias, está dando corpo a uma nova vertente jurídica: o Direito Digital. A inserção da utilização dos processos eletrônicos no Brasil é uma realidade que cada vez mais ganha disposições legais. A autorização de intimações judiciais, mediante adesão voluntária das partes, validada em forma de portaria pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) ainda no ano de 2017, também ganhou aprovação da CCJC (Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados) em junho passado, tornando-se um grande exemplo da onda de atualização tecnológica dos procedimentos judiciais. O Projeto de lei 1595/20 agora aprovado, segue a linha de validação do CNJ, autorizando a intimação judicial por meio de aplicativo de mensagens. Por ter tramitado em caráter conclusivo no Senado, a proposta poderá seguir diretamente para a sanção presidencial, caso não haja recurso para votação pelo Plenário.

Sob esta síntese, fica claro o entendimento de que caminhamos a passos largos para um mundo digital, onde o aceso à informação e a utilização das ferramentas tecnológicas agilizará os processos, pacificando as diferenças e injustiças resultantes da desigualdade social. Será? Em um mundo perfeito, sim. Mas não é o caso do Brasil, pelo menos neste momento.

Vejamos. O caput do art. 5 da Constituição Federal diz: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.", e no art. 6: "São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição". Os dois artigos claramente garantem igualdade perante a lei, fato.

Ainda com o propósito de garantir o acesso à justiça, o art. 5 de nossa Constituição Cidadã de 1988, prevê como princípio constitucional de acesso à justiça, em seu inciso XXXV, a garantia da possibilidade de acesso ao Poder Judiciário e à Justiça, sem lesão ou ameaça a direito, para todos os brasileiros ou estrangeiros residentes no Brasil.

Os direitos fundamentais e sociais, fortemente elencados no texto de nossa Constituição Federal, são direitos protetivos. A eles confere o dever de garantir o mínimo necessário para que qualquer membro da sociedade, independente de cor, classe social ou gênero, viva de forma digna dentro dos espaços administrados pelo Poder Estatal.

Mas como garantir direitos fundamentais e sociais, como o acesso a uma Justiça cada vez mais dependente de recursos tecnológicos que não estão disponíveis para a grande maioria da população?

 Sob este foco, é evidente a importância de um aprofundamento sobre a discussão que envolve o tema da Inclusão Digital como Direito Social Constitucional e a exposição da necessidade imediata da sua positivação, haja vista que temos no Brasil uma desigualdade econômica avassaladora e que tende a crescer em virtude da exclusão digital.

A desigualdade social e de recursos no Brasil não é nenhuma novidade. Trata-se de uma disfunção estrutural social recorrente desde o período colonial. Problemas crônicos de má distribuição de renda, racismo, discriminação de gênero, alta tributação, além da clássica falta de investimentos do Poder Público em setores essenciais como educação, saúde e segurança pública. Nesse contexto, o aumento da violência e da pobreza comprovam a vulnerabilidade de nossa população.

Porém, com a inesperada e nada bem-vinda chegada da Pandemia de Covid 19 no início de 2020, uma nova faceta da desigualdade social brasileira foi escancarada: a exclusão digital.      

Não é difícil relembrar que, nos períodos mais críticos da pandemia, onde a maioria dos serviços teve seu funcionamento restringido (e muitas vezes fechado) em virtude do distanciamento social, a oferta e o acesso a estas atividades era, em sua maioria, feita apenas via Internet ou aplicativos como o WhatsApp.

Mas dentro do caótico contexto pandêmico, o maior estrago deixado como herança pelo Corona Vírus, foi a revelação da gritante realidade da exclusão digital para a Educação e seus efeitos ainda por vir. Não é segredo que a educação pública brasileira, em geral, já vinha de longa data com uma grande defasagem no aprendizado. Para tanto, basta verificarmos os dados de pesquisas sobre o desenvolvimento educacional do Brasil, aplicadas pela UNESCO ou até mesmo pelo IBGE. Todavia, o fechamento das escolas por quase dois anos e a adoção de práticas pedagógicas totalmente direcionadas ao uso de TDICs (Tecnologias digitais de informação e comunicação), onde os encontros se davam através de plataformas de vídeo ou aplicativos como o WhatsApp e o Google Sala de Aula, tornou público o abismo existente entre os estudantes de baixa renda (da Educação Infantil ao Ensino Superior) e o acesso aos recursos digitais.

Famílias de regiões periféricas, que sequer tinham alguma renda, por serem trabalhadores informais ou por terem perdidos suas colocações no mercado de trabalho, se viram na "obrigação" de "dar conta" da instrução de seus filhos em casa, sem a menor estrutura ou conhecimento para tanto. Muitas vezes, estes pais ou responsáveis sequer sabiam ler, muito menos acessar um aplicativo para postar a atividade dos filhos. O analfabetismo digital, caminha ao lado da exclusão digital. Lembrando que é fisicamente impossível acessar a internet sem dispor de uma conexão de dados e possuir aparelhos compatíveis com as funções exigidas pelos aplicativos e plataformas educacionais e as famílias carentes quando dispunham de um aparelho celular, este deveria ser compartilhado entre todos os filhos. Sem falar nas dificuldades enfrentadas pelos professores! Mas esta é uma conversa para outro momento...

A grande verdade, é que este longo período fora da escola para aqueles que vivenciaram a enorme lacuna educacional, alimentada pela inexistência de investimento do Estado e sua falta de políticas públicas para a implantação de novas tecnologias voltadas para a Educação, certamente cunhará sua marca em nossa população, acentuando ainda mais a desigualdade social das próximas gerações. Esta dolorosa realidade torna evidente a necessidade improrrogável e inadiável da inserção da Inclusão Digital como um dos Direitos Sociais garantidos em nossa Constituição Federal.

Fora do Brasil, muitos países consideram a garantia de oferta do acesso a "world wide web" a todos os cidadãos, como um dever do Poder Estatal, a fim de facilitar a disponibilização de informações e serviços.

Temos como exemplo, o Canadá, que por meio da criação da Comissão Canadense de Rádio-Televisão e Telecomunicação, promoveu aos canadenses o acesso à Internet rápida, tornando desta forma a utilização do serviço um direito fundamental. Na época, o governo do Canadá se comprometeu a garantir que 90% de acesso à rede mundial de computadores até 2021, para toda sua população.

Muito adiantado sobre as questões digitais, nosso país coirmão Portugal, promulgou em maio de 2021, a "Carta de Direitos Humanos na Era Digital". O documento estabelece por meio de 23 artigos, as normas que tutelam direitos, liberdades e garantias aos cidadãos na ordem jurídica portuguesa e aplicáveis no ciberespaço.

Feita "para todas as pessoas, seja qual for o seu gênero, orientação sexual, origem familiar, origem étnica, nacionalidade, língua, religião, grau de educação, situação econômica e orientação política. É uma lei que estabelece direitos e define regras para garantir que todas as pessoas tenham acesso à internet e a consigam usar sem precisar de ajuda. Tem também como objetivo garantir que a internet é um espaço seguro, em que os direitos humanos são respeitados e protegidos. Além disso, prevê o direito de obter informações claras sobre a utilização das plataformas digitais."

Na esfera internacional de proteção aos Direitos Humanos, a ONU em relatório produzido pelo seu Conselho de Direitos Humanos no ano de 2011, há época já afirmava "que o acesso à internet é um direito humano e que desconectar a população da web viola esta política." Uma clara crítica aos países que se utilizam da lei para bloquear, vigiar ou restringir suas populações quanto ao uso da rede mundial de computadores.

Em solo brasileiro, percebo que nossa maior dificuldade não se dá frente à criação de leis. Existem atualizações em nossos códigos (civil, penal, processual), que apesar de ainda serem tímidas, se interpretadas e aplicadas de maneira coerente, ajudarão substancialmente nosso sistema jurídico a avançar nas demandas tecnológicas.

A questão é que ainda engatinhamos no que diz respeito ao conceito de Direito Digital e Inclusão Digital. Esta é uma relação quase visceral, pois compreendo que um não existe sem o outro. Obviamente a legislação e a segurança jurídica, são elementos essenciais para o pleno desempenho da justiça, mas a compreensão de que as normatizações e regulamentações do uso dos ambientes digitais, bem como de suas ferramentas deve vir depois da apropriação de seus princípios, objetivos e finalidades, representa o primeiro passo deste processo.

Para ilustrar minha linha de raciocínio, menciono no âmbito da legislação infraconstitucional brasileira, a existência da lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet), que dispõe claramente sobre o Direito de Acesso à Internet, como um direito de todos e essencial ao exercício da cidadania e democracia, disciplinando estes os direitos e deveres para o uso da internet no Brasil e determinando as diretrizes para atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em relação à matéria. O texto da lei é muito bom, porém sozinho não tem condições de legislar. É neste momento que deve entrar o empenho do Poder Público em proporcionar os recursos necessários para o cumprimento efetivo e integral da Lei.

Atualmente, temos a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 47/21), da Senadora Simone Tebet (MDB-MS), que acrescenta o inciso LXXIX ao art. 5º da Constituição Federal, para introduzir a Inclusão Digital no rol de direitos fundamentais. A proposta foi aprovada em 2/6/22 pelo Senado Federal e encaminhada para votação na Câmara dos Deputados, onde atualmente aguarda a designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania.

Em uma primeira análise, a proposta da Senadora em vincular a Inclusão Digital a um direito fundamental, parece fazer sentido. Entretanto se analisarmos o conceito de "direito fundamental", veremos que enquanto os direitos fundamentais, também chamados de individuais, se amparam no valor primário da liberdade, os direitos sociais têm como base o valor primário da igualdade. Os Direitos Sociais, são aqueles que buscam a corrigir desigualdades que nascem da disparidade das condições econômicas e sociais. Portanto, a Inclusão Digital é um direito social.

Diante dos argumentos acima, vislumbro que o texto da proposta de emenda constitucional adequado deveria acrescentar a Inclusão Digital na redação do art. 6 da Constituição Federal, enquanto direito social, e não como novo inciso incorporado ao artigo 5º.

De qualquer forma, estou na torcida para que a Inclusão Digital se materialize em uma realidade muito próxima, transformando-se em um "portal" para o futuro, onde as desigualdades sociais comecem a ser diminuídas e os excluídos digitalmente tenham as mesmas condições de concorrência no trabalho, formação profissional, estudo, atendimentos médicos e jurídicos, que a população digitalmente ativa já possui.

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https://blog.algartelecom.com.br/gestao/acessibilidade-e-a-importancia-da-inclusao-digital/

https://brasil.un.org/

https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pec-47-2021

https://dre.pt/dre/legislacao-consolidada/lei/2021-164870244

https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2011/06/onu-afirma-que-acesso-internet-e-um-direito-humano.html

https://jornal.usp.br/atualidades/exclusao-digital-pandemia-impos-mais-uma-lacuna-aos-estudantes-de-baixa-renda/

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm

https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2022/03/educacao-busca-superar-estragos-dapandemia#:~:text=Excluindo%2Dse%20o%20montante%20destinado,%2C%20percentual%20inferior%20a%204%25.

https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2022/06/senado-aprova-pec-que-torna-inclusao-digital-um-direito-fundamental

https://todospelaeducacao.org.br/?s=SNE&gclid=Cj0KCQjw3eeXBhD7ARIsAHjssr-15pM-syYCmC-S_AAqJuG-GXN492Cfyu6baHbNshAk63O0GQxccuQaAjgKEALw_wcB

https://pt.unesco.org/fieldoffice/brasilia/education-quality

https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos

Alessandra Terni Pedro

Alessandra Terni Pedro

Pedagoga, Servidora do Município de Porto Alegre, Especialista em Gestão Escolar, Supervisão e Orientação, Psicologia Educacional e Educação Especial Inclusiva, Estudante do Curso de Direito da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre.

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