Da (im)possibilidade de denúncia de tratados internacionais sem aprovação do Poder Legislativo
O Presidente da República não pode se retirar de tratados internacionais sem aprovação do Poder Legislativo
sexta-feira, 14 de outubro de 2022
Atualizado em 17 de outubro de 2022 09:07
Introdução
Em razão dos princípios do respeito à soberania, à autonomia de vontade dos Estados e da autodeterminação dos povos, os Estados não são obrigados a ingressar ou permanecer em tratados internacionais.
Tanto a adesão quanto a saída de tratados são atos internacionais de consentimento não regulados pelo Direito Internacional, pois compete aos Estados definir, em suas normas internas (geralmente em suas Constituições), a forma como ingressam e retiram-se de acordos internacionais.
A Constituição Federal do Brasil de 1988 revela, em seu art. 84 inciso VIII e art. 49 inciso I, que a ratificação de tratados internacionais depende das vontades do Presidente da República, que celebra, e do Congresso Nacional, que resolve definitivamente. No entanto, a Carta Republicana nada dispõe sobre o instituto da denúncia.
Em face disso, questiona-se: como a República Federativa do Brasil retira-se de um tratado internacional? Será que há participação do Congresso Nacional, assim como ocorre na ratificação? Ou o Presidente da República pode denunciar tratados sem anuência das Casas Representativas? Seria esse último um ato congruente com a sistemática atualmente adotada pela Constituição Federal?
Visando elucidar esse e outros questionamentos, o presente artigo discorre sobre a (im)possibilidade de denúncia de acordos internacionais sem referendo do Poder Legislativo, à luz da doutrina, da hermenêutica constitucional e do neoconstitucionalismo.
2. Ratificação, denúncia e prática político-executiva no Brasil
A ratificação consiste no ato internacional de adesão a um acordo internacional, através do qual a pessoa jurídica de Direito Internacional manifesta, com ânimus definitivo, sua vontade de ser parte. (REZEK, 2018. p. 76).
A denúncia, por sua vez, é o "ato pelo qual o Estado manifesta sua vontade de deixar de ser parte no acordo internacional". (REZEK, 2012, p. 138). Ou seja, a denúncia tem efeito diametralmente inverso ao da ratificação: o Estado retira-se do tratado, desvincula-se dos compromissos assumidos e provoca a perda de eficácia da matéria internacional no âmbito interno.
Todavia, diferentemente do que ocorre na ratificação, o Poder Legislativo Brasileiro não participa do procedimento de denúncia de tratados internacionais, pois a prática política no Brasil consolidou-se no sentido de que o rito da retirada de tratados dispensa a participação do Congresso Nacional:
Em 1926, sob a égide da primeira Constituição Republicana de 1891, o Presidente da República Artur Bernardes decidiu retirar o Estado Brasileiro da (extinta) Liga das Nações e, sem parâmetros normativos, convocou Clóvis Beviláqua, à época consultor do Itamaraty, para emitir um parecer. O jurisconsulto entendeu que tratados internacionais que contenham cláusula de denúncia expressa podem ser denunciados sem aprovação do Congresso Nacional, dado que a denúncia teria natureza de mera execução dos termos do tratado. (BEVILÁQUA, 1926, p. 347). Fundamentado nesse argumento, o Brasil retirou-se da Liga das Nações sem prévia manifestação do Poder Legislativo, na gestão de Washington Luís, em 1928.
Em 1996, o tema reacendeu-se na gestão do Presidente Fernando Henrique Cardoso, que denunciou a OIT n.º 158, e publicizou o ato através do decreto 2.100/96. Porém, o ato normativo foi alvo da ADI 1625/DF (que segue sem previsão de julgamento definitivo), por meio da qual se questionou a validade do ato praticado sem participação do Congresso Nacional.
Além dos casos apresentados acima, mais recentemente, em 2019, o Presidente da República Jair Messias Bolsonaro comunicou a saída do Brasil do Pacto Mundial de Imigração, bem como formalizou a retirada da Unasul, ambos atos praticados sem participação do Poder Legislativo.
Como visto, o entendimento formalmente exarado no século passado, por Clóvis Beviláqua, orientou a prática do Poder Executivo no sentido de denunciar tratados sem referendo ou participação do Congresso Nacional.
3. Posições doutrinárias
A doutrina diverge, converge e se complementa em diversos aspectos da análise da problemática.
A posição de Clóvis Beviláqua, no século XX, foi indubitavelmente favorável ao Poder Executivo, tendo em vista que através dela o Presidente da República adquiriu grande autonomia no processo de tomada de decisões desta natureza político-jurídico-internacional. Indaga-se, porém, se o entendimento de Clóvis Beviláqua seria o mesmo caso a sistemática político-jurídica da época fosse a mesma que vigora hodiernamente. Sobre essa reflexão, Valério Mazzuoli (2015) afirma que se Beviláqua tivesse emitido o seu parecer sob a égide da Constituição de 1988, o jurista defenderia a tese da necessidade de participação do Congresso Nacional no rito da denúncia de tratados.
Os argumentos de Beviláqua foram considerados "inconsistentes" inclusive por quem com ele compartilha posição favorável ao Chefe do Poder Executivo Federal: Para José Francisco Rezek, não é a existência de cláusula permissiva de denúncia que torna um tratado denunciável, mas sim a sua natureza. (REZEK, 2018, p.93). Inclusive, a própria Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 dispõe, no Art. 56, alínea b, que a ausência de cláusula de denúncia não impede de saída do acordo, se o direito de retirar-se pode ser deduzido da natureza do tratado.
Ora, se o que autoriza a denúncia é a natureza do tratado, vale dizer que, pela mesma razão (natureza), há tratados insuscetíveis de denúncia. Tratam-se, segundo a doutrina, de tratados que versam sobre direitos humanos e são aprovados sob o mesmo rito de emenda constitucional (art. 5º, §3º, CF). Esses tratados, segundo Valerio Mazzuoli e Flávia Piovesan não podem ser denunciados porque são considerados cláusulas pétreas, à luz do art. 60, §4º, inciso IV, da Carta Cidadã. (MAZZUOLI, 2019, p. 1294 e PIOVESAN 2018, p. 161).
Rezek, por sua vez, além de tecer críticas ao entendimento de Beviláqua, defende que o poder de romper compromissos internacionais não seria exclusivo do Presidente da República. Para o estimado ex-ministro do STF, o Congresso Nacional também poderia, por meio de lei ordinária, determinar a denúncia de tratado internacional, pois, se o processo de ratificação dos tratados exige duplo consentimento, lançando o Estado em acordos internacionais, bastaria a vontade de um deles para retirá-lo dos tratados. (REZEK, 2018, p.93)
Assim, na visão de Rezek (2018, p. 143), os tratados internacionais sustentam-se sobre "dois pilares", representados pelas vontades dos Poderes Executivo e Legislativo, de modo que a denúncia promovida por qualquer dos Poderes seria suficiente para fulminar o texto internacional da ordem jurídica brasileira.
Valério Mazzuoli (2019, p. 431) acompanha Francisco Rezek quando da possibilidade de denúncia pelo Poder Legislativo, mas diverge nos fundamentos. Para ele, a denúncia promovida pelo Congresso Nacional justifica-se pela participação do Presidente da República no processo legislativo de elaboração do projeto tendente a denunciar o tratado internacional, por meio da sanção ou veto, não ocorrendo o mesmo na denúncia realizada somente pelo Presidente da República, em que o rito não contempla a participação das Casas Representativas. Em função disso, considera esta hipótese absolutamente irrazoável, visto que contraria os ideais da democracia e da vontade popular.
O ilustre Pontes de Miranda, há mais de 50 anos, já defendia que a denúncia por ato único do Presidente da República é "subversiva dos princípios constitucionais" (MIRANDA, 1970, p. 109), declarando-se contrário à denúncia de tratados sem a participação do Congresso Nacional.
O art. 2º, da CF, por exemplo, revela que o Estado Brasileiro adotou a Separação dos Poderes como princípio fundamental, uma vez que, através dele, dilui-se o poder soberano entre os Três Poderes da República, garantindo, assim, equilíbrio institucional e proteção ao povo. A razão de ser do sistema consiste na ideia de que a ausência de controle mútuo entre os Poderes coloca em risco os direitos fundamentais, os valores constitucionais e a soberania popular. E com isso em mente, a denúncia de tratados por ato único do Poder Executivo sem qualquer controle ou participação do Poder Legislativo mostra-se incompatível com o sistema adotado pela Constituição Federal.
Aliás, não se mostra razoável mitigar as funções típicas do Poder Legislativo de legislar e fiscalizar o Poder Executivo, notadamente porque a denúncia repercute sobre o ordenamento jurídico e pode acarretar encargos e compromissos gravosos ao patrimônio nacional, sendo imperiosa, nesse sentido, a participação do Congresso Nacional na processualística da denúncia de tratados internacionais.
Considerando ainda que a saída do tratado provoca-se uma alteração permanente no ordenamento jurídico, retirando assim a obrigatoriedade de observância ao texto internacional, conclui-se, sem maior esforço, que não há lógica jurídica na denúncia sem a participação do Poder tipicamente responsável pela elaboração de normas e fiscalização do Poder Executivo.
Vale lembrar que quando o Congresso Nacional autoriza a ratificação do tratado, por meio de decreto legislativo, autoriza, também, o ingresso do texto internacional ao ordenamento jurídico interno. Todavia, quando a denúncia de tratados internacionais é procedida somente pelo Presidente da República, ergue-se uma desarmonia irrazoável entre os parâmetros lógicos e sistemáticos inerentes à correta interpretação da Constituição.
Portanto, a denúncia de tratados sem possibilidade de debate, controle e revisão revela-se mais compatível com regimes totalitários, onde imperam as decisões de um só membro ou Poder, o que, veementemente, foi rechaçado pela atual Constituição.
4. Conclusão
Sob a nova perspectiva em torno dos princípios e das técnicas de hermenêuticas inauguradas pelo neoconstitucionalismo, é possível concluir, enfaticamente, pela impossibilidade de denúncia de tratados internacionais mediante ato singular do Presidente da República, por ofensa aos valores contemplados na Constituição Federal (essencialmente considerada aberta, dinâmica e axiológica), indo de encontro ao âmago maior do Estado Democrático de Direito, onde imperam os valores fundamentais de uma ordem jurídica pautada na limitação do poder e primazia da soberania popular.
Desse modo, a força normativa dos princípios e a interpretação dinâmica e sistemática da Constituição embasam o desfecho do presente artigo, concluindo-se pela impossibilidade e inconstitucionalidade de denúncia de tratados internacionais sem prévia aprovação do Poder Legislativo, não só por contrariar a lógica do sistema normativo, mas sobretudo por violar o disposto no art. 49, I e art. 84, VIII, da Carta Maior e afrontar princípios constitucionais tais como da separação dos poderes, soberania popular, simetria e razoabilidade.
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AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Curso de direito internacional público. 5 ed. São Paulo. Atlas, 2015.
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