O contrato de cosseguro
Um tema pouco explorado, mas de extrema relevância para o mercado segurador. Entenda suas particularidades e acórdão judicial recente a seu respeito.
sexta-feira, 14 de outubro de 2022
Atualizado em 17 de outubro de 2022 08:40
A apólice de seguro é um contrato, prevendo os direitos e deveres dos contratantes, convenções de obrigações recíprocas e sinalagmáticas. Visa garantir determinado risco, cujas especificações e alcance de cobertura são, ou pelo menos deveriam ser devidamente detalhadas nas especificações de coberturas, com a determinação dos riscos assumidos pela seguradora, mediante a contraprestação de um prêmio1.
Mas, muito além daquelas previsões contratuais, há questões também previstas sob as regras de contratação de uma apólice e que são pouco abordadas ou de desconhecimento geral.
Como se sabe, por meio da subscrição, as seguradoras tendem a minimizar seus riscos, em função de um conhecimento mais especializado a respeito da probabilidade de sua ocorrência, da sua conformação mais precisa e possibilidade de originar um dano2, adotando formas internacionalmente conhecidas de limitar o valor das retenções próprias, sejam eles através do cosseguro ou mesmo resseguro.
O resseguro é uma estrutura complexa, contrato atípico, no qual se divisa a transferência de riscos do segurador para o ressegurador3,chamado popularmente como o "seguro do seguro", a partir do qual as seguradoras pretendem distribuir a responsabilidade parcial incidente sobre um risco específico ou uma carteira de contratos que representam uma globalidade e o faz com empresas que operam a retenção de riscos em grande escala. Algumas atuam em todas as partes do globo e se constituem nos maiores operadores financeiros do planeta. O segurado, na maioria dos casos, sequer tem conhecimento de sua existência ou possui qualquer tipo de obrigação em relação a este contrato, porquanto todo o regramento é realizado em conformidade com a legislação infraconstitucional e normativos do órgão regulador que, dentre outras características, promovem a segurança em prol dos consumidores.
Para a alocação dos contratos de resseguros existe um mundo totalmente à parte e alheio ao conhecimento dos segurados. Trata-se de um contrato bem delimitado, com obrigações definidas entre ressegurador e ressegurado sobre o qual se pode tecer vários comentários, pois, conforme alertado, é uma estrutura construída ao longo dos séculos, como forma de oferecer proteção às seguradoras que atuam com seguros de todos os ramos e capacidade de aceitação de seguros que não poderiam ser assumidos por uma só companhia, como ocorre com as hipóteses de ocorrências relacionadas a eventos catastróficos, furacões, terremotos, tsunamis, secas, incêndios na costa oeste americana ou canadense e mesmo seguros de grandes plantas industriais a exemplo de plataformas de petróleo, aviões, navios, foguetes.
Já o cosseguro é uma figura com regulamentação exclusivamente nacional, presente em regramento normativo da SUSEP - Superintendência de Seguros Privados, com uma dose significativa de decisão em poder dos próprios contratantes que são as seguradoras. Também se dedica a distribuir os riscos assumidos, em geral, pela cessão proporcional dos prêmios cobrados, pois, não há previsão de distribuição em excesso de danos dos prêmios e valores segurados.
O detalhe crucial dessa operação é que se dá entre empresas concorrentes. Seguradoras que sozinhas não reúnem ativos ou interesse em assegurar uma planta industrial, a responsabilidade civil de uma atividade perigosa ou mesmo a administração de uma carteira em que as apólices estejam mais pulverizadas. Para que possam se desincumbir dessa tarefa estabelecem acordos comerciais com suas congêneres, estipulando uma líder dos negócios, normalmente, aquela que atua no segmento ou região determinada, chamada cedente e que fará a emissão das apólices com a cessão de um percentual do risco e do prêmio de cada negócio4. Recebe em troca uma comissão de cosseguro para remunerar os esforços de captação, inspeção de riscos, subscrição, atendimento e desenvolvimento de negócios.
Assim, a líder poderá reter 60% de um risco e ceder 40% para uma ou mais seguradoras. O prêmio cedido costuma ser líquido de comissão de corretagem, chamado prêmio net, considerando que o corretor do seguro deverá estar cadastrado obrigatoriamente na líder e não nas cosseguradoras e será remunerado por quem emitiu a apólice e tem o dever de responder ao cliente5. Observa-se que a apólice indicará sempre o código do produto registrado pela líder na SUSEP e, portanto, todo o clausulado deve coincidir com aquele disponibilizado ao público.
Na hipótese de ocorrência de um sinistro, o aviso é encaminhado apenas à líder a qual providencia o registro em seu sistema e a notificação das demais companhias. Procederá à regulação do sinistro às suas expensas e sob os critérios aplicados no seu produto, sem prejuízo de que alguma cosseguradora queira acompanhar os trabalhos. Ao final, procederá ao pagamento da indenização ao beneficiário e, mediante a prova do pagamento, poderá obter a recuperação desses valores perante as demais participantes, incluídas as despesas e honorários com a regulação.
Deve-se ter presente que o cosseguro é uma relação entre seguradoras, um contrato firmado entre empresas privadas, livremente pactuado e que pressupõe, necessariamente, a atribuição de riscos proporcionais às participantes, com a imposição de que os documentos desse pacto entregues ao segurado, como a apólice, tragam os nomes, as participações percentuais e os limites máximos de indenização atribuídos a cada uma delas.
Esse contrato atípico submete-se ao regramento comum do código civil e, como tal, não tem o poder de gerar prejuízos a terceiros que dele não participam. Como já afirmado, para que possa valer perante um segurado específico, será necessário obter dele a anuência formal e prévia à emissão da apólice que o tenha como beneficiário.
Porém, parte das informações acima sobre o funcionamento do cosseguro derivam de práticas de mercado. A pouca disposição legal existente a respeito está disposta na Resolução CNSP 68/21, que autorizada pelo art.80 do decreto lei 73/1966, dispõe em apenas 11 arts. sobre questões muito básicas, tais como a definição dos termos comuns à cosseguro e sobre a informação que deve estar disposta na apólice sobre a sua existência.
Há uma proposta em audiência pública de resolução do CNSP - Conselho Nacional de Seguros Privados para resseguro, retrocessão e cosseguro, além da contratação de seguro em moeda estrangeira e a contratação do seguro no exterior a qual não traz modificações nos procedimentos atuais.
Diante deste cenário, determinam-se algumas lacunas fundamentais no tratamento de um tema tão importante, especialmente, na regulação das relações entre as congêneres e, nesse sentido, como um exemplo interessante, houve a publicação do Acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nos autos da Apelação 1124177-15.2020.8.26.0100.
No caso, a líder de um contrato de cosseguro ingressou com ação contra a congênere após negativa de reembolso dos valores despendidos a título de indenização a um beneficiário numa apólice em que ambas participavam como cosseguradoras.
Sustentou a cosseguradora ser de um ano a pretensão da Líder para pleitear o pagamento de indenização realizada ao segurado, buscando apoio nos termos do art. 206, § 1, II do código civil. Tendo ultrapassado o prazo ânuo, o reembolso por parte da congênere, já não seria devido, fulminado pelo prazo prescricional.
A ação foi julgada improcedente em primeira instância, no entanto, teve sua reversão unânime no Tribunal. Entendeu o Tribunal que o instituto do cosseguro não se relaciona a uma cobrança de lide em regresso, e devido a isso, não cabe a aplicação da prescrição ânua, prevista no art. 206, § 1, II do código civil. Segundo o Tribunal, referida disposição legal é claramente relativa à relação entre segurado e segurador, não sendo, portanto, possível a analogia para aplicar-se à relação entre cossegurado e cossegurador.
Desta forma, haja vista a ausência de disposição acerca do tema, entendeu o Tribunal ser aplicável a prescrição prevista no art. 205 do Código Civil, sendo assim, de dez anos o prazo para o cossegurado cobrar de seu cossegurador o repasse atinente ao valor indenizado pela seguradora líder ao segurado.
Do ponto de vista civilista, uma decisão razoável. Do ponto de vista operacional, uma tragédia.
De fato, entre a decisão comercial de várias seguradoras se unirem numa parceria de divisão proporcional dos riscos e o momento de executar uma parcela do contrato, como a cobrança de parcelas de indenização pode decorrer muitos anos.
Assim, por exemplo, a seguradora líder pode ser condenada a formar uma reserva para pagamento de uma pensão alimentícia vitalícia para um beneficiário. Cinco anos depois, a sua área de sinistros constata que as congêneres nem foram avisadas da ocorrência do sinistro e, nesse período, possivelmente as companhias já passaram por mudanças na composição da diretoria, dos departamentos comerciais e, talvez, já nem tenham mais interesse em manter uma operação de cosseguro.
Instaura-se uma discussão importante, na qual as congêneres apontam que a líder recebeu uma contraprestação, traduzida em comissão sobre o prêmio, para instruir os procedimentos administrativos. Nesse sentido, sua falha em comunicar tempestivamente as cosseguradoras deve ter os prejuízos daí advindos arcados por ela própria.
Além disso, as seguradoras são obrigadas pela SUSEP a manter reservas técnicas e as devidas provisões de seus sinistros. Na prática, é evidente que uma seguradora não manterá uma reserva em aberto por até dez anos, aguardando que a seguradora líder desperte e decida então cobrar o cosseguro.
O acórdão proferido, citado acima, obviamente não se atentou a este ponto, condenando Cosseguradoras a ficarem reféns, pelo período de dez anos, a serem compelidas ao pagamento de um cosseguro que podem sequer ter tido o conhecimento prévio e necessário à constituição de reservas.
A confusão não é pequena, pois, esse entendimento inicial, com caráter exclusivamente comercial, perde a sua razão de ser e, não são raras as situações em que as congêneres obtêm acesso a contratos de resseguro nos quais esses riscos são também incluídos.
Nessas situações, as Cosseguradoras perderiam o seu direito ao recebimento dos valores ressegurados, pois, devidamente previsto em contrato de resseguro o prazo para notificação e cobrança que nem de longe é tão extenso quanto o reconhecido pelo Tribunal.
Claro, é possível se fazer uma distinção importante. O prazo prescricional começa a vigorar a partir da pretensão resistida, conforme a teoria da "actio nata". Assim, se a congênere não recusou a sua participação em um sinistro, nem haveria iniciado o prazo prescricional. Sob essa hipótese, o prazo para comunicação do sinistro e cobrança da congênere não seria prescricional, mas decadencial.
Ainda assim, os contratos de cosseguro podem não trazer a especificação de um prazo para aviso e cobrança, situação que leva à discussão de perdas e danos pelo atraso da líder na comunicação de um evento, seguindo a regra do artigo 771 do Código Civil, invocada como analogia para o contrato de cosseguro:
Art. 771. Sob pena de perder o direito à indenização, o segurado participará o sinistro ao segurador, logo que o saiba, e tomará as providências imediatas para minorar lhe as consequências.
Conforme discorrido, além de não haver legislação suficiente que trate sobre o tema cosseguro, as seguradoras seguem práticas de mercado, não pactuando expressamente sobre seus direitos e obrigações. Assim, ficam à mercê de decisões rasas como o mencionado acórdão, que não adentra ao mérito do negócio e pode trazer grandes prejuízos ao setor privado.
Uma alternativa para que este tipo de decisão não seja atroz entre empresas de igual capacidade econômica, sem vulnerabilidade entre si, seria com que elas próprias estabelecessem mais claramente em contrato específico seus direitos e obrigações no que tange ao cosseguro. Tal medida se faz possível e encontra amparo na lei 13.874/19, conhecida como "Lei de liberdade Econômica".
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1 ALVIM, Pedro. O contrato de seguro. 2 Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 103-117.
2 STIGLITZ, Rubén S. Derecho de Seguros. 3 Ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2001, p. 189-191
3 POLIDO, Walter Antonio. Resseguro: cláusulas contratuais e particularidades sobre responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Seguros, 2008.
4 BASILONE, Fábio. Desvendando o Resseguro. In Seguros em artigos de acadêmicos: acervo de cátedras da ANSP. Série Estudos II. São Paulo: Oficina do Texto, 2019, p. 98.
5 MARENSI, Voltaire. A reciprocidade e cooperação nos contratos de seguro. In Seguros em artigos de acadêmicos: acervo de cátedras da ANSP. Série Estudos I. São Paulo: Oficina do Texto, 2018, p. 99.
Adilson Neri Pereira
Advogado, mestre em Direito Político e Econômico, Doutorando em Direito Administrativo, Comissário de Avarias, Regulador de Sinistros. Professor da Escola de Negócios e Seguros. Atua com seguros desde 1975. Sócio proprietário da NERI PEREIRA SOCIEDADE DE ADVOGADOS, membro da AIDA e da ANSP.