Ressalvas à recém aprovada súmula 76 do TJ/GO
O TJ/GO, recentemente, aprovou a súmula 76 que, basicamente, dispensa a oitiva do réu não citado no julgamento do agravo de instrumento. O enunciado, porém, expõe problemas de ordem prática e de constitucionalidade duvidosa.
quinta-feira, 13 de outubro de 2022
Atualizado às 14:21
No dia 10 de outubro de 2022, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ/GO) aprovou quatro súmulas em sessão extraordinária1, dentre elas, a súmula 76 com a seguinte redação: "É desnecessária a citação da parte agravada para apresentar contrarrazões ao agravo de instrumento, quando ainda não angularizada a relação processual na origem".
O enunciado da súmula, como se percebe, considera dispensável a oitiva do agravado se ele não houver sido citado na primeira instância. É dizer: para o TJ/GO, se a parte não for citada no processo de origem e também não o for no agravo interposto, não haverá nulidade, isso independentemente de qual seja o resultado do julgamento - pela reforma ou não da decisão recorrida.
Essa orientação, entretanto, parece desafiar maior reflexão, em especial porque pode apresentar problemas de ordem prática e legitimar soluções com duvidosa conformação constitucional.
A dispensa de "citação" (sic) da parte agravada, a bem da verdade, imprime regra que conflita com o procedimento previsto no art. 1.019, inciso II2 do CPC. Veja-se que, na hipótese fática tratada na súmula, o próprio Código de Processo Civil não dispensou a interpelação do agravado pelo só fato de ainda não ter sido citado, mas o contrário: estabeleceu uma alternativa à ausência de angularização da relação processual por intermédio da intimação por "carta com aviso de recebimento".
Ainda que se faça vista grossa a esse procedimento singular, a súmula ainda continua problemática se consideradas as disposições do CPC que prestigiam o contraditório participativo e a excepcionalidade das decisões monocráticas.
De acordo com os incisos do art. 932 do CPC, que pautam a atuação do relator no Tribunal, é possível depreender que a lei processual só autoriza a solução monocrática dos recursos, sem contraditório, em caráter estritamente excepcional, e ainda assim, desde que não tenha aptidão a provocar prejuízo à parte que não foi ouvida.
É o caso do inciso III3, que autoriza a decisão monocrática no juízo negativo de admissibilidade do recurso. Também, é a situação descrita no inciso IV4, que possibilita o julgamento unipessoal se a tese recursal contrariar precedente de observância obrigatória pelos juízes e tribunais. Observa-se que, nessas duas situações, o julgamento do agravo diretamente pelo próprio relator não tem potencial algum de prejudicar a parte que não foi ouvida, pois, ao fim e ao cabo, será ela própria a beneficiada.
Bem diferente, no entanto, ocorre quando o resultado do recurso tem reflexo na esfera jurídica do agravado. O inciso V5 do art. 932 do CPC estabelece, enfaticamente, que o provimento monocrático da impugnação recursal, ainda que fundado em precedente obrigatório, só será possível após oportunizada a apresentação das contrarrazões. Destarte, ao contrário do que ocorre com os incisos III e IV do mesmo dispositivo, a potencialidade do prejuízo ao jurisdicionado conduz ao exercício prévio do contraditório, o que coloca o procedimento em sintonia com as previsões do art. 9º6 e do art. 107 do CPC que coíbem a denominada "decisão surpresa".
Nesse contexto, é possível observar que a súmula 76 do TJ-GO parece tornar sem efeito a relação de "causa e efeito" entre o contraditório participativo e o cabimento da decisão monocrática. É que o enunciado jurisprudencial tem o efeito de desconsiderar as singularidades entre as hipóteses dos incisos III, IV e V do art. 932 do CPC para as colocar numa mesma vala comum, na medida em que descarta - reputa "desnecessária" - a avaliação do prejuízo e dispensa ex ante a oitiva da parte agravada. Destarte, esse procedimento não só se mostra incompatível com o modo de exercer os poderes franqueados ao relator pelo CPC, como também desafia a própria lógica positivada às nulidades - pas de nullité sans grief - que autoriza a invalidação de atos processuais quando evidenciado o dano decorrente do vício.
Afora essas considerações, a orientação do TJ-GO também tem repercussão sobre o exercício da sustentação oral e, de consequência, à garantia constitucional da ampla defesa.
Via de regra, o agravo de instrumento não admite a verbalização das razões recursais perante o Tribunal. A única ressalva admitida pelo CPC consiste na hipótese de interposição do recurso contra o (in)deferimento da tutela provisória (art. 937, VIII8 do CPC).
Assim sendo, a se considerar a orientação da súmula 76 do TJ/GO, é possível imaginar a situação na qual a parte agravante profere sustentação oral à revelia da parte agravada, mas que só não proferiu também, pois não foi intimada na forma do art. 1.019, II do CPC. Aqui parece evidente a incompatibilidade da jurisprudência sumulada com o "princípio da paridade de armas", previsto no art. 7º9 do CPC, na medida em que confere tratamento diferenciado entre os litigantes, mas sem se apoiar em justificativa razoável.
Em linha de conclusão, ainda cabe uma última ponderação.
Deve ser somada à reflexão a peculiaridade de que o sodalício goiano10 vem admitindo, com fundamento na interpretação extensiva do art. 988, inciso II11 do CPC, o cabimento da reclamação para tutela da autoridade das suas próprias súmulas. Sem ingressar no mérito desse entendimento, fato é que, na linha dessa jurisprudência, o advento da súmula 76 do TJ/GO inaugura a possibilidade do seu conteúdo ser objeto de tutela pela reclamação, e ainda, diretamente pela jurisdição do Órgão Especial.
Partindo dessa premissa imagine-se, por exemplo, um acórdão proferido no julgamento de agravo de instrumento por um dos órgãos fracionários do tribunal, no qual, a despeito da ausência de citação do réu/agravado, o recurso tenha sido julgado favoravelmente ao recorrente. Por acaso, o recorrido toma ciência desse acórdão a tempo e suscita a nulidade por cerceamento do direito de defesa dentro do prazo para interposição dos embargos de declaração. O colegiado, por sua vez, conhece do vício; anula a decisão plural por entender que seria "necessária" a oitiva do agravado não citado e, ato contínuo, reabre o prazo para oferecimento das contrarrazões e redesigna nova sessão de julgamento para que ambas as partes possam proferir sustentação oral.
O agravante, antes vitorioso, inconformado com o desfecho dos embargos, opta por ajuizar reclamação ao Órgão Especial alegando a violação à súmula 76 do TJ/GO e, com base nesse argumento, pede o restabelecimento do acórdão que lhe foi favorável. Diante dessa celeuma, pergunta-se: seria juridicamente possível o julgamento de procedência dessa reclamação? Em tese, a resposta é afirmativa.
No entanto, a incoerência nesse desfecho com o ordenamento processual seria patente. A súmula 76 do TJ/GO, ao se tornar objeto de tutela pela reclamação, praticamente possibilitou que o instrumento possa ser utilizado como ferramenta de sanatória das nulidades processuais e, ainda, como meio de chancela à ofensa ao contraditório, em manifesto descompasso com a sua matiz constitucional.
Por tudo isso é que essas brevíssimas considerações conduzem o operador do direito a refletir criticamente sobre a recém aprovada súmula 76 do TJ/GO. Embora seja absolutamente louvável a iniciativa do tribunal goiano - que tem se destacado em nível nacional pelos elevados índices de produtividade e pela distinta qualidade da prestação jurisdicional que tem entregado à sociedade -, entende-se que a aprovação da orientação consolidada na súmula provoca menos benefícios do que aqueles que se pretendeu atingir com a sua aprovação, mormente em razão da ausência de ressalvas às situações nas quais o julgamento monocrático do agravo possa causar prejuízo à parte recorrida.
Portanto, à luz do ordenamento processual contemporâneo, iluminado pelas previsões da Constituição Federal, se afigura impositivo afastar o caráter generalista da súmula para introduzir ressalvas à sua aplicação. É dizer: deve ser compatibilizada sua aplicação com as diretrizes do art. 932, incisos III, IV e V do CPC, de modo a só considerar desnecessária a integração do agravado não citado se o julgamento monocrático do agravo de instrumento não lhe importar qualquer prejuízo. Do contrário, a aplicação indiscriminada da súmula a todo e qualquer agravo instrumental poderá redundar em violação contínua ao contraditório, à ampla defesa, à paridade de armas e ao devido processo legal.
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1 Disponível em: https://www.tjgo.jus.br/index.php/institucional/centro-de-comunicacao-social/20-destaque/25108-orgao-especial-vota-quatro-sumulas-durante-sessao-extraordinaria. Acesso em 10 de outubro de 2022.
2 Art. 1.019. Recebido o agravo de instrumento no tribunal e distribuído imediatamente, se não for o caso de aplicação do art. 932, incisos III e IV, o relator, no prazo de 5 (cinco) dias: [...] II - ordenará a intimação do agravado pessoalmente, por carta com aviso de recebimento, quando não tiver procurador constituído, ou pelo Diário da Justiça ou por carta com aviso de recebimento dirigida ao seu advogado, para que responda no prazo de 15 (quinze) dias, facultando-lhe juntar a documentação que entender necessária ao julgamento do recurso.
3 Art. 932. Incumbe ao relator: [...] III - não conhecer de recurso inadmissível, prejudicado ou que não tenha impugnado especificamente os fundamentos da decisão recorrida.
4 IV - negar provimento a recurso que for contrário a: a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal; b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência.
5 Art. 932. Incumbe ao relator: [...] V - depois de facultada a apresentação de contrarrazões, dar provimento ao recurso se a decisão recorrida for contrária a: a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal; b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência.
6 Art. 9º Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.
7 Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.
8 Art. 937. Na sessão de julgamento, depois da exposição da causa pelo relator, o presidente dará a palavra, sucessivamente, ao recorrente, ao recorrido e, nos casos de sua intervenção, ao membro do Ministério Público, pelo prazo improrrogável de 15 (quinze) minutos para cada um, a fim de sustentarem suas razões, nas seguintes hipóteses, nos termos da parte final do caput do art. 1.021 :[...] VIII - no agravo de instrumento interposto contra decisões interlocutórias que versem sobre tutelas provisórias de urgência ou da evidência.
9 Art. 7º É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.
10 RECLAMAÇÃO. AÇÃO ORDINÁRIA DE PROGRESSÃO FUNCIONAL. AUSÊNCIA DE CITAÇÃO VÁLIDA. INOCORRÊNCIA. GARANTIA DA AUTORIDADE DAS DECISÕES DO TRIBUNAL. ACÓRDÃO PROLATADO PELA 2ª CÂMARA CÍVEL DO TRIBUNAL. DIVERGÊNCIA DE PARTE DO ACÓRDÃO COM A SÚMULA 12 DO TJGO DEMONSTRADA. [...] II- A reclamação possui natureza jurídica de ação constitucional e é cabível para garantir a integridade do sistema judiciário, no sentido de preservar a competência do tribunal, garantir a autoridade das decisões do tribunal, garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade, ou garantir a observância de acórdão proferido em julgado de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência. A segunda hipótese taxada no artigo 988 do CPC/2015, qual seja,"garantir a autoridade das decisões do tribunal" (inciso II), identifica a vocação da reclamação na estabilização da jurisprudência interna de cada tribunal, na consecução do objetivo firmado no artigo 926 do CPC/2015, que determina que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. III- Consoante o enunciado da Súmula 12 do TJGO, proveniente do incidente de uniformização de jurisprudência nº 254561-42.2015.8.09.0000, Não é possível o pagamento das diferenças vencimentais resultantes da aplicação do texto original do art. 7º, § 2º, da Lei nº 7.997/2000, diante da publicação da Lei nº 8.188/2003, ambas do Município de Goiânia, eis que esta última revogou tacitamente aquela, pela incompatibilidade da matéria tratada. IV- Uma vez verificado que parte do acórdão proferido pelo órgão fracionário diverge do entendimento uniformizado da jurisprudência e respectiva súmula deste Tribunal de Justiça, cuja autoridade da decisão se visa garantir, deve ser julgada procedente a reclamação, para sua adequação. V- Nos termos do art. 85, §§ 2º e 8º, do CPC/2015, impõe-se a condenação da interessada ao pagamento dos honorários advocatícios sucumbenciais, em favor do procurador do reclamante. RECLAMAÇÃO PROCEDENTE. (TJGO, Reclamação 5460798-93.2017.8.09.0051, Rel. NELMA BRANCO FERREIRA PERILO, Órgão Especial, julgado em 14/06/2019, DJe de 14/06/2019)
11 Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para: [...] II - garantir a autoridade das decisões do tribunal
Augusto de Paiva Siqueira
Pós-graduando em Direito Processual Civil (UERJ). Especialista em Direito Público (UFG). Especialista em Direito do Consumidor (UFG). Graduado em Direito pela PUC-GO. Venceu em segundo lugar o 13º Prêmio Literário do CADE e o II Concurso de Monografias em Direito Administrativo da UFRJ.