Contrato de factoring, aquisição de créditos e a questão dos juros
A operação de factoring é uma atividade empresarial, não bancária, que em grande medida consiste em oferecer, aos empresários faturizados, fonte de recursos, mediante a negociação de créditos futuros, além de possível prestação de serviço.
terça-feira, 11 de outubro de 2022
Atualizado às 08:35
I. Introdução
A atuação das empresas nos diversos mercados é regida pela liberdade constitucional das convenções, segundo a qual, de forma simples, é lícito fazer tudo aquilo que não seja expressamente proibido por lei. Esse foi o contexto dentro do qual nasceu o contrato de factoring no direito brasileiro há muitas décadas, com o fim de atender determinadas necessidades do empresário, somando-se a tantas outras operações das quais ele se utiliza.
Nessa ótica, o contrato de factoring representa negócio empresarial, não bancário, pelo qual uma parte (normalmente sociedade empresária, e daqui por diante denominada ¨faturizadora¨) se dedica a adquirir créditos de seus clientes, podendo ainda prestar serviços de assessoria financeira. Essa definição, inclusive, foi utilizada na legislação tributária, nos seguintes termos: "prestação cumulativa e contínua de serviços de assessoria creditícia, mercadológica, gestão de crédito, seleção de riscos, administração de contas a pagar e a receber, compra de direitos creditórios resultantes de vendas mercantis a prazo ou de prestação de serviços (factoring)" (vide a lei 9.249/95, em seu art. 15, § 1º, III, d).
Apesar da menção em norma tributária, inexiste uma legislação que discipline o contrato de factoring, razão pela qual é considerado legalmente atípico (nos termos do art. 425 do Código Civil). No entanto, embora legalmente atípico, pode-se considerá-lo "socialmente típico", ou seja, existem regras socialmente aceitas para tal contrato, que derivam das práticas comerciais, e são aplicadas pela jurisprudência. Talvez a maior evidência desse aspecto seja o amplo reconhecimento, pela doutrina1 e jurisprudência, da impossibilidade da faturizadora regressar contra seus clientes na hipótese de inadimplência do terceiro devedor do crédito (vide, nesse sentido, entre outros, o REsp 949.360/RN, em que se definiu que "o risco assumido pelo faturizador é inerente à operação do factoring, não podendo o faturizado ser demandado para responder regressivamente, salvo se tiver dado causa ao inadimplemento dos contratos cedidos").
Ainda sobre a classificação do contrato de factoring, lembre-se de que especialmente no direito comercial são comumente criados contratos novos resultantes da conjugação de elementos de outros contratos - legislados ou não - que se classificam como de natureza mista, sempre como fruto do exercício constitucional da liberdade de iniciativa. É nesse contexto que fica integrado o factoring, no qual se denotam elementos da compra e venda, da prestação de serviços específicos como a gestão de crédito, de alguma forma de financiamento, de assunção de risco etc. Da fusão complexa desses elementos nasceu essa nova modalidade contratual.
II. A atividade de factoring, as operações bancárias, o deságio no valor do título negociado e os juros
Note-se que a definição conceitual, e também a tributária, acima indicadas, não incluem, dentre as funções costumeiras do factoring, o empréstimo de dinheiro, de modo que não se considera como atividade comum da faturizadora tal tipo de operação. Ademais, na atual realidade brasileira, a faturizadora não é sequer considerada instituição financeira, e por consequência, não se submete à regulação específica do setor. Mas, também, não pode praticar atividades privativas de instituição financeira.
Por atividade privativa de instituição financeira se considera, nos termos do art. 17 da lei 4.595/64: consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros.
Como se percebe, o factoring não se enquadra em qualquer dos casos do dispositivo acima citado, sendo notório que o Banco Central do Brasil não o toma como operação financeira, não enquadrando as sociedades faturizadoras como instituições financeiras e, consequentemente, ficando elas fora de sua atuação. Em um passado distante houve discussões sobre esse assunto, as quais estão inteiramente superadas.
Mas o fato é que, na realidade atual, a operação de factoring é uma atividade empresarial, não bancária, que em grande medida consiste em oferecer, aos empresários faturizados, fonte de recursos, mediante a negociação de créditos futuros, além de possível prestação de serviço complementar. Mas, por certo, o aspecto que se destaca do contrato é a aquisição dos créditos pela faturizadora2.
Assim, trata-se de negócio que envolve transferência de recebíveis, e não empréstimo de dinheiro. Portanto, para que a operação tenha lógica econômica, é necessário que a faturizadora tenha uma margem de ganho, que corresponde, nesse caso, a um deságio aplicado ao valor do título negociado, que compreende o lucro e o risco assumido no negócio (dado que, relembre-se, a faturizadora assume o risco de inadimplência). Mas não se pode confundir o deságio com taxa de juros. A natureza é distinta. Para se falar em juros, teríamos que reconhecer, em realidade, outra operação, à semelhança do que realizam os bancos com a operação de desconto, em que cobram, efetivamente, juros3. Mas, como dito, a faturizadora não é banco, e, portanto, não realiza contrato de desconto bancário. O contrato de factoring, assim, não representa empréstimo de dinheiro, e logo não é adequada a menção à taxa de juros4, devendo ser reconhecida a natureza distinta da referida remuneração (decorrente do deságio aplicado sobre o valor do título negociado).
No entanto, ao mesmo tempo, interessante julgado recente do STJ (REsp 1.987.016/RS) reconheceu que, a par de suas atividades principais, pode a faturizadora, tal como as pessoas em geral, celebrar contratos de mútuo, ainda que tal tipo de negócio não integre o rol de operações características do factoring5. Nada impede que uma faturizadora faça uma operação de mútuo com o faturizado, complementarmente ao contrato de factoring entre eles celebrado. Mas essas operações não poderão se caracterizar como prática contínua, sob pena de se passar a considerar a faturizadora como instituição financeira de fato, a teor do parágrafo único do referido art. 176 da lei 4.595. Mas, elemento importante da decisão, foi reconhecer que, quando a faturizadora celebrar contrato de mútuo de dinheiro, o fará como qualquer outro particular, e, portanto, se submeterá às regras do Código Civil aplicáveis a tal contrato, previstas entre os arts. 586 e 592. E, em especial, atestou que a faturizadora também se submeterá à limitação de taxa de juros prevista no art. 591 do Código Civil, não podendo tal entidade se valer das regras aplicáveis aos bancos pela lei 4.595/64, e por consequência não podendo também utilizar das taxas de juros bancárias.
III. Conclusão
Assim, em conclusão, parece-nos que, para atribuir lógica econômica à operação de factoring, e diante do recente posicionamento jurisprudencial, é relevante distinguir as operações regulares de aquisição de créditos mediante deságio, que representam a atividade mais comum no contexto do factoring, de eventuais empréstimos de dinheiro, que fogem ao objeto comum na concepção do contrato, e são tratados pela jurisprudência como negócios entre particulares, sem qualquer conotação bancária e não sujeitos a regramento especial.
1 Como observado por Vera Helena de Mello Franco: ¨O empresário que adquire os créditos - o faturizador (factor) - se responsabiliza por sua cobrança, sem direito de regresso contra o cedente, recebendo uma comissão por isso. Em síntese, é uma operação que consubstancia, basicamente, uma cessão de crédito em que se transferem os riscos do recebimento para o cessionário¨, conforme FRANCO, Vera Helena de Mello. Contratos: Direito Civil e Empresarial. São Paulo: Editora RT, 2009, p. 160.
2 Nesse sentido: ¨De fato, a parte mais conhecida da operação é a compra de créditos, na medida em que a operadora de factoring realiza uma atividade de fomento da atividade do agente econômico (faturizado), até por isso, fale-se em fomento mercantil¨, conforme TOMAZETTE, Marlon. Contratos empresariais. São Paulo: Editora Juspodivm, 2022, p. 736.
3 Inclusive, admitir a ideia que de a transferência de títulos no factoring envolveria juros demandaria admitir ser operação creditícia, o que poderia gerar impactos diversos, inclusive quanto à limitação da taxa de juros, como se verá a seguir.
4 Nesse sentido, quanto à atividade principal de aquisição de créditos: ¨A empresa de factoring não realiza empréstimos, não cobrando, desse modo, juros. (...) Trata-se, de fato, de atividade empresarial atípica e complexa, porque engloba prestação de serviços e aquisição de direitos creditórios¨, conforme RESTIFFE, Paulo Sérgio. Manual do novo direito comercial. São Paulo: Dialética, 2006, p. 333. Nessa mesma linha, ponderamos: ¨deve ser ressaltado que o faturizador, atuando regularmente, não realiza empréstimo de dinheiro a juros, mas procede à compra, mediante deságio, de créditos integrantes do faturamento de seu cliente, além de poder oferecer serviços de assessoria financeira¨ (conforme GAGGINI, Fernando Schwarz. Manual dos contratos empresariais. Indaiatuba: Editora Foco, 2022, p. 160).
5 Nesse sentido, o Informativo de Jurisprudência 750 do STJ, de 26/9/22, ao tratar sobre o referido REsp 1.987.016/RS, observou que o empréstimo não é operação tradicionalmente vinculada à ideia de factoring, nos seguintes termos: ¨em que pese não seja usual, não é vedado à sociedade empresária de factoring celebrar contrato de mútuo feneratício com outro particular, devendo apenas serem observadas as regras dessa espécie contratual aplicáveis a particulares não integrantes do Sistema Financeiro Nacional, especialmente quanto aos juros devidos e à capitalização¨.
6 Parágrafo único. Para os efeitos desta lei e da legislação em vigor, equiparam-se às instituições financeiras as pessoas físicas que exerçam qualquer das atividades referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual.
Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.