O seguro de transporte em exercício: notas sobre prescrição
Essas notas são especialmente informadas por princípios vetores como os da razoabilidade, proporcionalidade, isonomia, equidade, boa-fé objetiva e buscam sinceramente a conciliação legítima e moralmente ordenada de interesses.
terça-feira, 11 de outubro de 2022
Atualizado às 08:33
Considerando reiteradas consultas sobre prescrição no Direito dos Transportes;
Considerando a importância desse tema para o Direito dos Seguros, especialmente para o ressarcimento em regresso do seguro de transportes;
Considerando que juízos particulares não se confundem com os universais e a solução eficaz ao caso concreto não é veraz aos em geral;
Considerando a necessidade de preservar direitos e interesses regressivos contra transportadores sem prejudicar as relações entre segurados e seguradores;
Considerando o sincero desejo de harmonizar os legítimos interesses de todos os atores do contrato de seguro de transportes: seguradoras, corretores, segurados, estipulantes e beneficiários;
Considerando que algumas condutas e práticas não mais se ajustam aos princípios e objetivos do Direito Contemporâneo;
Resolvi escrever esta carta-aberta com informações que espero sejam úteis aos que trabalham com o Direito dos Seguros e o Direito dos Transportes, fazendo-o de modo simples, prático, objetivo e, espero, didático.
Em que pese a rouquidão de minha voz e a ausência de especial talento, amparo-me na experiência profissional cotidiana de não poucos anos para levar ao conhecimento dos colegas e profissionais dos seguros estas breves notas.
Que à minha presente ousadia sejam dados o benefício da generosidade e a graça da boa-vontade, pois são apenas neles que me fundo, esperançoso.
I. Dos modos, dos prazos prescricionais e do início de suas contagens
Prescrição é a perda do direito de ação pelo decurso do tempo. Abaixo, as prescrições relativas aos litígios contra os transportadores de cargas, segundo os modais:
Transporte marítimo (nacional e internacional): um ano, decreto 116/67. Início da contagem: data de descarga no porto de destino (e/ou data do sinistro, quando perfeitamente identificada ou identificável).
Transporte rodoviário (nacional e internacional): um ano, art. 18, lei 11.442/07. Início da contagem: data da entrega no lugar de destino (e/ou data do sinistro, quando perfeitamente identificada ou identificável).
Transporte aéreo nacional: dois anos, art. 317 da lei 7.565/86, Código Brasileiro de Aeronáutica. Início da contagem: data do desembarque no aeroporto de destino (e/ou data do sinistro, quando perfeitamente identificada ou identificável).
Transporte aéreo internacional: dois anos, art. 35 da Convenção de Montreal. Início da contagem: data do desembarque no aeroporto de destino (e/ou data do sinistro, quando perfeitamente identificada ou identificável).
Transporte ferroviário (nacional ou internacional): um ano, art. 9º do Decreto das Estradas de Ferro: 2.681/12. Início da contagem: descarga na estação ferroviária de destino (e/ou data do sinistro, quando perfeitamente identificada ou identificável).
Transporte multimodal: art. 22 da lei 9.611 de 19 de Fevereiro de 1998 (Lei do Transporte Multimodal). Um ano, se houver a entrega da carga no lugar de destino e noventa dias, se não houver essa entrega. [Importante: só se considera transporte multimodal aquele com instrumento contratual específico, constituindo-o. Trata-se do transporte juridicamente atribuído a único ator, que, expressa e formalmente, assume todos os modos e etapas da operação de transporte.
Demandas contra depositários (armazéns) e/ou operadores portuários são comuns no cenário dos ressarcimentos dos seguros de transportes, razão pela qual trato das suas prescrições nestas notas dedicadas aos transportadores.
Depósito (de cargas): três meses, art. 11, §1º, decreto 1.102/93. Início da contagem: data do recebimento da carga pelo depositário. Em casos extraordinários, pode-se adotar a data da ocorrência do sinistro, desde que absolutamente certa e comprovada.
Operação Portuária: um ano, segundo entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, Decreto 116/1967, por equiparação. Adota-se esse decreto porque a lei 12.815/13, que disciplina as operações portuárias, não tratou especificamente da prescrição por danos nas cargas durante movimentação e estadia. Início da contagem: a data da ocorrência (sinistro).
II. Casuísticas que exigem especial atenção
Muito importante:
Em direito material, contam-se os prazos desta forma: exclui-se o dia de começo e inclui-se o de final.
Exemplo: pretensão contra transportador marítimo, prazo ânuo, com fato gerador em 20 de agosto de 2022, a prescrição consumar-se-á em 19 de agosto de 2023.
Casuística 1:
Transporte exercido por agente de cargas (ou logístico): adota-se o prazo destinado ao modo de transporte utilizado. Se mais de um, aquele que for considerado o principal.
Casuística 2:
É possível adotar outro critério legal em substituição a esses prazos prescricionais?
A rigor, não. Existe tese em defesa do uso do prazo trienal do art. 206, §3º, V, do Código Civil, que trata da pretensão de reparação civil. Eu já fiz uso dela algumas vezes, com e sem sucesso. Considero-a boa, porém não a recomendo. A ortodoxia jurídica segue o princípio da especialidade para a solução de conflitos aparente de normas, que dispõe que regra especial prefere a geral. Por mais que existam ótimos argumentos em defesa do prazo trienal, melhor evitar riscos judiciais e cuidar atenciosamente dos prazos específicos para cada modo de transporte, os depósitos de cargas e as operações portuárias. Nenhuma máxima jurídica é maior do que a sabedoria popular e os ditados como "prudência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém" e "melhor prevenir do que remediar".
Casuística 3:
Tese da actio nata, data da sub-rogação: segundo essa tese, reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça, o direito de regresso da seguradora nasce com o pagamento da indenização. A sub-rogação é o ato-fato gerador do direito. Trata-se de tese por enquanto vencedora e com fortes argumentos e fundamentos. Apesar disso, não a recomendo como regra. Não é incomum o Superior Tribunal de Justiça mudar seus entendimentos e, no caso, nem se poderia cogitar algum mecanismo de calibragem como a teoria da modulação dos Precedentes, já que o entendimento não se confunde com Precedente. Por isso, melhor usar os critérios que seriam usados pelo dono da carga se não lhe amparasse cobertura securitária. A tese do nascimento do direito na data da sub-rogação há de ser encarada como "soldado de reserva" ou "argumento estratégico" e, portanto, usada somente em situações extraordinárias e verdadeiramente justificáveis.
III. Da Interrupção da Prescrição
No Brasil, a interrupção só pode ser exercida única vez e exclusivamente pela via judicial. O Código de Processo Civil de 2015 mudou a forma e o nome da medida judicial de interrupção do prazo prescricional, mas não seu conteúdo. Antes, falava-se em Protesto Interruptivo de Prescrição, hoje em Notificação Judicial.
A natureza jurídica da atual Notificação Judicial é rigorosamente a mesma do antigo Protesto Interruptivo de Prescrição: ato de jurisdição voluntária, sem contraditório, preservativo de direitos e ações.
A notificação judicial de interrupção pode ser requerida autonomamente ou em outra ação que não seja, obviamente, a de reparação de dano ou de ressarcimento em regresso.
Com a distribuição da medida judicial tem-se por interrompido o fluxo do prazo prescricional, embora o ato que efetivamente o interrompa seja o despacho inicial (exatamente aquele que determina a notificação do transportador ou depositário). A demora na efetivação da notificação não prejudica quem exerceu tempestivamente o direito. O jurisdicionado não pode ser prejudicado pela morosidade da Justiça.
Depois de interrompida a prescrição, haverá o fluxo de novo período, sendo que o termo inicial da contagem será não mais o do fato gerador de antes e, sim, o da distribuição da Notificação Judicial. Em verdade, o realmente inaugura a contagem é o do último ato processual da própria Notificação, sendo que por último ato processual há de ser entendido o emanado do juiz, não o de impulso oficial, de mero expediente. Mas, por excesso de cautela, recomendo fortemente a utilização da data de distribuição (critério objetivo e incontroverso). Aquele, embora previsto em lei, sempre cederá espaço para dúvidas; este, jamais.
Para ajuizar a Notificação Judicial e interromper a prescrição não se faz necessária a titularidade do direito, bastando a expectativa. Aquele que tiver expectativa de direito também tem legitimidade ativa.
Logo, o segurador da carga pode (e deve) interromper a prescrição mesmo sem a efetivação da sub-rogação e isso não implica ato de assunção de pagamento de indenização nem o compromete com o segurado. A preservação de expectativa de direito regressivo contra o transportador não se confunde com reconhecimento de direito de indenização do segurado. Situações jurídicas absolutamente distintas.
Não me cabe, aqui ou em qualquer oportunidade, de modo algum, até em nome das sempre desejáveis elegância e prudência, opinar sobre as relações entre as partes do contrato de seguro, porém posso em boa-fé dizer que talvez não seja adequado negar pagamento de indenização ao segurado por não interromper o fluxo do prazo prescricional contra o transportador (ou o depositário). E digo a palavra talvez com o cuidado com que o enxadrista movimenta seus bispos e sua rainha no tabuleiro, dado o caráter aberto deste texto. Fosse consulta privada, específica, muito provavelmente a ênfase pela não negativa seria hiperbólica.
Trata-se de questão bastante controversa e delicada, reconheço. Sei que cada seguradora tem sua política interna a respeito, cabendo-me apenas respeitá-la com inegável temor reverencial. Não posso, porém, deixar de considerar que, bem ou mal, com a comunicação do sinistro, o segurador sabe de antemão que poderá eventualmente buscar o ressarcimento em caso em caso de pagamento de indenização, cabendo-lhe, portanto, até mais do que o segurado, cuidado com a preservação dessa legítima expectativa de direito.
Essa ciência permite argumentar que, sabendo da possibilidade de busca de ressarcimento, tem o segurador, principal interessado, o dever de proteger seu futuro direito. De deveres e cuidados o segurado não se ver livre com a proteção securitária, mas não pode o contrato lhe ser um peso e fonte de encargos que não seja exatamente os da órbita de sua atuação contumaz, fundamental.
O ressarcimento faz parte da índole do negócio de seguro, ao passo que a reparação de danos não integra o escopo negocial do dono da carga, segurado. Por isso, ainda que lhe seja recomendável o esforço especial em alguns pontos, convém ao segurador atentar diretamente aos seus legítimos direitos, ainda que em formação. É sabido que o segurado tem que preservar o direito de regresso do segurador, mas nem sempre se sabe quais são os deveres que dele se podem razoavelmente esperar e exigir.
Parece-me ideal que o segurado interrompa a prescrição. Fazendo-o garantirá seu direito de ação contra o transportador em caso de não recebimento de indenização, que lhe poderá ser negada por diferentes motivos. Além disso, a interrupção evitará discussões com seu segurador. Vivemos, contudo, no mundo dos fatos, não no das ideias, no mundo do possível, não no ideal. Considerando tudo isso, acredito sinceramente que se o segurado não promover a interrupção não perderá seu direito (salvo em caso de prévia, formal, expressa orientação do segurador, claramente aquiescida pelo segurado, quanto ao dever de interrupção, observando-se o princípio da razoabilidade).
Na maior parte das vezes, o segurador tem mais expertise nesse campo do que o segurado, o que reforça a sugestão de não se negar a indenização apenas por causa disso, salvo em casos muito especiais e no quais houve orientação prévia e detalhada a respeito.
Tendo-se em conta que o segurador tem legitimidade ativa para notificar judicialmente o transportador (ou o depositário ou o operador portuário), mesmo antes da sub-rogação e a tese do actio nata (data da sub-rogação), parece-me difícil sustentar judicialmente a negativa de pagamento de indenização por causa da não interrupção da prescrição.
Interessante como a famosa dialética do Direito gera situações complexas e espinhosas: a tese do actio nata (data da sub-rogação) pesa em favor do segurado em relação a não se negar indenização pela não interrupção da prescrição contra o transportador. Se a Justiça diz que o direito do segurador nasce com a sub-rogação, como negar indenização ao segurado que não interrompeu prazo que ainda não começou a fluir relativamente ao segurador? Curiosa e paradoxalmente, o que se sugere é: reconhecer que a tese da actio nata (sub-rogação), que é em si boa para as seguradoras, não deve ser usada sem extrema necessidade, porém há de ser considerada primacialmente nas relações com os segurados. Em existindo, enfraquece-se ainda mais a negativa de indenização por falta de interrupção judicial da prescrição contra o transportador.
Em se tratando de prescrição, todo cuidado jamais será pouco e posições mais conservadoras, ortodoxas, são recomendáveis: melhor a seguradora chamar para si o controle da situação e preservar sua expectativa de direito do que correr riscos desnecessários. Usar os prazos corretamente, interromper as prescrições diretamente e não onerar sem efetiva necessidade e causa absoluta os segurados.
IV. Conclusão
Os prazos prescricionais específicos devem ser observados e preservados. Situações muito particulares podem e devem ser tratadas de forma diferenciada, mas não geram protocolos procedimentais. As notas aqui expostas e amplamente divulgadas são embasadas no ordenamento jurídico, expressão que abraça normas legais, princípios jurídicos, jurisprudência, doutrina e, até, máximas de experiência.
Essas notas são especialmente informadas por princípios vetores como os da razoabilidade, proporcionalidade, isonomia, equidade, boa-fé objetiva e buscam sinceramente a conciliação legítima e moralmente ordenada de interesses.
Nunca me olvido da condição de advogado de seguradores, o que muito me honra e da qual sou profundamente grato. Quando opino algo que talvez contrarie, ao menos aparentemente, os interesses de quem defendo, faço-o por três substanciais (e, espero, justos) motivos: 1) a perpétua busca da verdade (que nem sempre é agradável); 2) o perpétuo desejo de conciliar direitos e interesses (aspiração ao bem comum) e 3) controlar danos e incentivar cuidados, incrementando condutas (contingenciamento e prudência).
Agradeço a honrosa atenção e espero que o conteúdo desta carta-aberta possa ser realmente útil, aplicável diariamente aos que trabalham com os seguros de transportes.
Paulo Henrique Cremoneze
Advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes. Sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados. Mestre em Direito Internacional Privado. Especialista em Direito do Seguro.