A saúde suplementar no Brasil está doente? Rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar: perguntas que incomodam
O debate sobre o rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS precisa ser ampliado para que não fiquem de fora as perguntas essenciais.
terça-feira, 27 de setembro de 2022
Atualizado em 28 de setembro de 2022 08:24
Publicada a lei 14.454, o rol de procedimentos e eventos em saúde foi tornado exemplificativo com algumas condições essenciais a serem praticadas, como a comprovação por evidências científicas das novas inserções. Quem vai pagar por esses novos procedimentos e eventos em saúde? Os contratantes de planos e seguros saúde, com toda certeza, porque essa é a única forma de sustentação de que dispõem as operadoras.
Sim, aumentam os procedimentos e eventos em saúde disponíveis para os beneficiários de planos de saúde, aumentam igualmente as mensalidades que sustentam os fundos mutuais onde estão os recursos para custeio.
Fundos mutuais se organizam a partir de riscos predeterminados. Sem a predeterminação não há uma alternativa que não seja a cobrança posterior à utilização, o que representa insegurança para a sustentabilidade do sistema e para o planejamento financeiro dos contratantes.
Seguradoras, medicinas de grupo, cooperativas ou autogestões, todas as modalidades de prestação de serviços em saúde suplementar se organizam a partir de princípios estruturais e técnicos. O mutualismo é, com toda certeza, o mais importante deles embora o pacto intergeracional também tenha relevância.
Mutualismo significa que todos pagam para que alguns utilizem. Em palavras mais técnicas significa a formação de um fundo a partir de cálculos atuariais e estatísticos que solucionam a equação que envolve risco, frequência de ocorrência e probabilidades de ocorrência no futuro.
Para conhecer o risco e a frequência são utilizados conhecimentos de estatística; e, para calcular a frequência no futuro são utilizados cálculos de probabilidades. Mas, para pesquisar estatísticas e calcular probabilidades é fundamental que os riscos sejam predeterminados.
O rol da ANS cumpre essa função essencial: predetermina os riscos. Na atualidade ele contém mais de 3.000 itens, ou seja, em linguajar técnico são mais de 3.000 mil riscos predeterminados para os quais é possível calcular probabilidades a partir do estudo de estatísticas.
Os médicos podem prescrever procedimentos e eventos em saúde diferentes daqueles elencados no rol? Podem, sem dúvida, têm liberdade para isso.
Os planos e seguros saúde devem custear esses procedimentos e eventos em saúde que estão fora do rol? Podem até pagar, mas como não foram previstos no cálculo não há recursos para isso e, consequentemente, os fundos se esgotarão mais rapidamente.
Como os fundos são repostos? Com o valor das mensalidades pagas pelos contratantes. Em rápida conclusão: sem predeterminação de riscos os valores de mensalidades terão que ser atualizados em percentuais maiores, o que não é benéfico para os contratantes. E os investidores e acionistas terão uma menor remuneração do capital, desestimulando novas entradas de operadoras no mercado.
Um rol meramente exemplificativo significará maior sinistralidade, ou seja, maior quantidade de riscos materializados que deverão ser custeados pelos fundos.
Há quem defenda a ideia de que a sinistralidade é um risco do negócio da operadora. Não é! Sinistralidade é o risco que o contratante compartilha com os demais participantes do fundo mutual e que é custeado por todos os participantes, igualmente contratantes.
E qual o risco das operadoras de saúde? Garantir que o fundo mutual tenha sempre recursos para custear os valores necessários para as despesas assistenciais, por meio de formação e gestão adequadas do fundo.
Fundos bem formados são aqueles que atendem às regras de cálculos atuariais e estatísticos. Fundos bem administrados são aqueles que pagam o que estava previsto e não qualquer procedimento ou evento em saúde. E, ainda, fundos bem administrados são aqueles que não pagam nenhum centavo decorrente de fraude, porque ela é sempre um enorme prejuízo para o beneficiário da saúde suplementar.
Mas e o lucro das operadoras?
A Constituição Federal determina que são valores sociais o trabalho e a livre iniciativa; também determina que são princípios da ordem econômica a livre iniciativa e a livre concorrência. Lucro é permitido.
Existem lucros abusivos? É preciso definir o que sejam lucros abusivos. E definir a partir dos rigores da boa técnica e não de comparações aleatórias.
A Constituição Federal também determina que o Estado é o responsável pela saúde para todos, porém mediante políticas sociais e não em caráter individualizado.
O sistema de saúde não prevê tudo para todos de forma ilimitada nem para a saúde pública e nem para a saúde suplementar. Existem parâmetros a partir das evidências científicas que precisam ser respeitados, sob pena do cidadão brasileiro receber tratamento inadequado, não autorizado, sem comprovação de eficiência e eficácia para um desfecho clínico adequado.
A avaliação de tecnologia em saúde é a baliza das evidências científicas e da segurança. É isso que, fundamentalmente, fazem a CONITEC, a ANVISA, a ANS e muitos outros órgãos e institutos em todo o mundo. Há uma rede de entidades que avaliam tecnologia em saúde para garantir segurança e racionalidade na utilização de recursos para a saúde.
Decisão e consequência! Retórica e realidade!
A proteção da dignidade da pessoa humana se concretiza nos termos da Constituição Federal com bons serviços de saúde pública e suplementar. Para isso é preciso que existem evidências científicas atestadas por órgãos idôneos e institucionais e, que existam recursos adequados para atender a todos os que necessitam e não apenas àqueles que vão ao judiciário para requerer.
Esse é o papel fundamental do rol de procedimentos e eventos em saúde: garantir qualidade na prestação dos serviços de saúde porque ancorados em evidências científicas idôneas e, garantir que todos os contratantes possam utilizar.
E qual o resultado positivo imediato dessa nova legislação? Sem dúvida, o melhor resultado imediato será para os fornecedores de insumos para o setor de saúde. As indústrias farmacêuticas, de dispositivos médicos implantáveis, de equipamentos para exames de imagem, entre outros fornecedores terão expressivo aumento de ganho. Quanto aos contratantes, não se sabe ainda se será possível fazer a mesma afirmação em razão do esperado aumento do valor das mensalidades.
Uma última pergunta que incomoda, mas precisa ser feita: o Sistema Único de Saúde está preparado para receber a demanda de beneficiários de planos de saúde que não poderão mais custear seus planos e voltarão a utilizar integralmente a saúde pública?
Esperamos que sim, tanto quanto esperamos que a sociedade brasileira compreenda com urgência que não podemos seguir sendo um país que preserva direitos, despreza deveres e nega consequências. A diferença do remédio e do veneno é a dosagem.
Angelica Carlini
Advogada. Pós Doutorado em Direito Constitucional. Doutora em Direito Político e Econômico. Doutora em Educação. Mestre em Direito Civil. Mestre em História Contemporânea. Pós-Graduada em Direito Digital. Graduada em Direito. Docente do Programa de Mestrado e Doutorado em Administração da Universidade Paulista - UNIP. Coordenadora e professora na área de Direito da Escola de Negócios e Seguros - ENS.