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Parcelamento tributário e suspensão da pretensão punitiva: reflexos processuais

Em caso de oferecimento de denúncia por crime tributário já objeto de parcelamento que esteja sendo adimplido, haverá patente ausência de justa causa para a ação penal.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Atualizado às 08:36

Já faz quase duas décadas desde a edição da primeira lei federal pós-constituição que concedia efeitos penais ao pagamento ou parcelamento do tributo objeto de denúncia por crime fiscal: era a lei 9.249/95, que estipulava em seu art. 34 a extinção da punibilidade dos crimes definidos na lei 8.137/90 quando o agente promovia o pagamento da dívida antes do recebimento da denúncia.

De lá para cá, houve uma sucessão de leis regulando esta mesma matéria - 9.430/96, 9.964/00, 10.684/03, 11.941/09 e 12.382/11 - criando um verdadeiro labirinto por onde o operador deve se conduzir, seguindo a orientação de que os efeitos a serem gerados em eventual parcelamento dependem da data na qual ocorreu a adesão ao programa (STJ, HC 206.986/SC, Quinta Turma, Rel. Min. Jorge Mussi).

Para os efeitos deste artigo, vamos nos concentrar na última delas, a lei 12.382/11, que, dando nova redação ao art. 83 da lei 9.430, passou a definir, entre outras disposições, que:

"[...] é suspensa a pretensão punitiva do Estado referente aos crimes previstos no caput [crimes tributários], durante o período em que a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no parcelamento, desde que o pedido de parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal."

A principal inovação desta norma, sem dúvidas, é que o efeito de suspensão da pretensão punitiva estatal só ocorre se a efetiva entrada do contribuinte no programa de parcelamento tiver sucedido antes do recebimento da denúncia criminal, eliminando a normativa anterior, que permitia tal efeito a qualquer tempo, antes do trânsito em julgado da ação penal.

O que parece ter ficado menos claro é o efeito prático processual da suspensão da pretensão punitiva do Estado em momento anterior ao recebimento da denúncia, que parece ainda causar problemas ao aplicador da lei. Isto porque não é raro, passados mais de dez anos da edição desta norma, ainda encontrar casos em que o magistrado, ao receber a denúncia por crime tributário, verifica que o denunciado já está parcelando os débitos, e então suspende o andamento da ação penal.

Veja-se por exemplo o seguinte julgado:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. APROPRIAÇAO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA E SUPRESSAO DE CONTRIBUIÇAO SOCIAL. ART. 168-A, § 1º, I, E ART. 337-A, I, C/C ART. 69 E 71, TODOS DO CÓDIGO PENAL. PARCELAMENTO DO DÉBITO TRIBUTÁRIO. DECISAO QUE REJEITOU A DENÚNCIA. APLICAÇAO ANÁLOGA DA SÚMULA VINCULANTE 24. REFORMA QUE SE IMPÕE. HIPÓTESE DE SUSPENSAO DA PRETENSAO PUNITIVA E DO CURSO DA PRESCRIÇAO. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO PROVIDO.I. Constituído definitivamente o débito tributário, não há que se falar em atipicidade da conduta, por aplicação da Súmula Vinculante 24.II. O parcelamento do débito tributário, antes de fundamento à extinção da punibilidade ou atipicidade da conduta, é causa de suspensão da pretensão punitiva processo e do curso da prescrição, consoante o disposto no art. 83, § 3º, da lei 9.430/96, que se repete no art. 68, caput e parágrafo único, da lei 11.941/09.III. Assim, não há que se falar em rejeição da denúncia, mas sim na suspensão da pretensão punitiva e do curso da prescrição, enquanto perdurar em vigor o parcelamento da dívida a que se noticia a peça acusatória. IV. Recurso em sentido estrito provido, para reformar a decisão e, pelos fundamentos suso expendidos, suspender o curso da ação. (TRF-5, 0002613-89.2013.4.05.8300, Rel. Des. Federal Ivan Lira de Carvalho, DJ 9 de junho de 2015)

A respeitável decisão é a manifestação da seguinte ideia: é o pagamento integral do débito que tem o condão de extinguir a punibilidade do crime, enquanto o parcelamento "apenas" suspende a pretensão punitiva estatal. Logo, o parcelamento impede o prosseguimento da ação e a prolação de sentença, mas sua instauração permanece imaculada, pois só o pagamento do imposto poderia impedir seu início.

Com o devido respeito, este pensamento poderia até ser válido para os casos, possíveis antes da edição da lei 12.382/11 - em que o parcelamento do débito ocorria após o início da ação penal - mas não é mais aplicável perante a norma atual, que, diante de parcelamento realizado em data anterior, faz necessária a rejeição da denúncia pelo magistrado.

Isto por uma razão muito simples: se no momento do ajuizamento da inicial acusatória a pretensão punitiva estatal encontra-se suspensa - isto é, não gerando quaisquer efeitos - segue-se que o Estado não tem pretensão alguma a deduzir em juízo, e, portanto, não existe direito de ação penal.

Bem lembra Aury Lopes Jr. que a pretensão processual "é, no processo penal, uma declaração petitória de que existe o direito potestativo de acusar e que procede a aplicação do poder punitivo estatal."1 Ora, se concretamente falta ao Estado a possibilidade de exercer o poder punitivo, não se pode iniciar a ação penal, vez que não há nenhuma possibilidade de se submeter o acusado a alguma pena.

Da mesma forma é o pensamento de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, explicando que a suspensão da punibilidade afasta (...) a punibilidade concreta e, por evidente, não há ação, razão pela qual, se exercida a ação, deverá ser rejeitada." 2

Assim, quando ainda era possível obter a suspensão da pretensão punitiva por adesão a parcelamento após o recebimento da denúncia, o magistrado corretamente deveria suspender o curso da ação penal, visto que, quando da propositura, o Estado possuía o jus puniendi e, consequentemente, pretensão legítima à condenação e aplicação de lei penal, tratando-se o recebimento da denúncia de ato jurídico perfeito. Totalmente diferente da normativa atual que, limitando os efeitos penais do parcelamento tributário à sua adesão em data anterior ao recebimento da inicial, afasta de plano a justa causa para ação penal.

Logo, após a celebração do acordo de parcelamento entre o Fisco e o contribuinte, caso seja recebida denúncia, há nulidade desde o início da ação penal, vez que a suspensão da pretensão punitiva implica a impossibilidade de se realizarem quaisquer medidas de persecução penal contra o indivíduo, impedindo inclusive a investigação pré-processual, caso ainda não tenha sido instaurada.

Já é possível visualizar, aliás, este entendimento em julgados da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça:

HABEAS CORPUS.  DIREITO PENAL.  CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA.  LEI Nº 10.684/03. IPI. PARCELAMENTO DOS DÉBITOS TRIBUTÁRIOS. SUSPENSÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA DO ESTADO. INQUÉRITO POLICIAL. ALCANCE. ORDEM CONCEDIDA. 1. A adesão ao Programa de Recuperação Fiscal - REFIS, com o parcelamento de débitos oriundos da falta de recolhimento de  Imposto  sobre Produtos  Industrializados  - IPI,  suspende  a  punibilidade  do  crime  tipificado  no art. 2º da lei 8.137/90 (lei 10.684/03, art. 9º, caput). 2. A suspensão da pretensão punitiva do Estado, enquanto efeito da inclusão da pessoa jurídica ao regime de parcelamento -  REFIS,  atribuído  pelas  leis 9.964/00  e  10.684/03,  alcança  a  própria  fase  procedimental-administrativa da persecutio criminis, até porque produz também a suspensão do prazo prescricional. 3. Ordem concedida (STJ; HC 29.745-SP; Sexta turma; Rel. Min. Hamilton Carvalhido; DJ 19/4/05)

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ART. 1º, I E II, DA LEI 8.137/90. REFIS (LEI 9.964/00). PAES (LEI 10.864/03). AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL E SUSPENSÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL CRIMINAL DURANTE O PERÍODO DE INCLUSÃO NOS PROGRAMAS DE PARCELAMENTO. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. Os atos processuais praticados durante o período em que a sociedade esteve regularmente inserida no Paes e no Refis não são válidos, haja vista a suspensão da pretensão punitiva estatal. 2. Os arts. 15, § 1º, da lei 9.964/00 (Refis) e 9º, § 1º, da lei 10.864/03 (Paes) estabelecem a suspensão do prazo prescricional criminal durante o período de suspensão da pretensão punitiva estatal pela adesão aos programas de parcelamentos do crédito tributário. 3. O crime do art. 1º, I e II, da lei 8.137/90 prevê pena máxima de 5 anos de reclusão e o prazo prescricional é de 12 anos, conforme o art. 109, III, do Código Penal. 4. No caso, a constituição definitiva dos créditos tributários ocorreu em 20/11/00, 22/11/00, 1º/12/00. Desconsiderado o prazo em que esteve suspensa a prescrição criminal (7 anos, 11 meses e 20 dias), não houve o transcurso de 12 anos. 5. Agravo regimental não provido. (STJ; AgRg-AREsp 811.524; Proc. 2015/0284784-6; SP; Sexta Turma; Rel. Min. Rogério Schietti Cruz; DJE 15/12/17)

Desta forma, em caso de oferecimento de denúncia por crime tributário já objeto de parcelamento que esteja sendo adimplido, haverá patente ausência de justa causa para a ação penal, nos termos do art. 395, III, do Código de Processo Penal, devendo o magistrado promover sua rejeição. Caso contrário, deverá a parte manejar Habeas Corpus para trancar o processo, nos termos do art. 648, I, do Código de Processo Penal.

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1 LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 155.

2 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Da diferença entre ação e processo: nulidade do processo decorrente do recebimento de denúncia em caso de parcelamento do crédito nos crimes contra a ordem tributária; parecer. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 16, 73, p. 316-336, jul./ago.. 2008, p. 333-335. Disponível em: http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=68860. Acesso em: 20 jul. 2022.

Filipe Knaak Sodré

Filipe Knaak Sodré

Graduado em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e mestre em Ciências Criminológico-forenses pela Universidad de Ciencias Empresariales y Sociales de Buenos Aires, na Argentina, é presidente e cofundador do Instituto Capixaba de Criminologia e Estudos Penais (ICCEP) e autor do livro "O Direito Penal e a Vingança do Leopardo", publicado pela Núria Fabris Editora em 2011.

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