O STJ e a ilicitude do uso da marca de terceiros para tráfego pago
Recentemente, a quarta turma do STJ decidiu que comete crime de concorrência desleal aquele que utiliza marca de propriedade de terceiro como meio para atrair clientes por intermédio de anúncios nos buscadores da internet. O veredicto foi unânime. Entenda as nuances jurídicas por trás do caso.
segunda-feira, 19 de setembro de 2022
Atualizado às 11:14
Hodiernamente, o Google Ads é a principal ferramenta de anúncios pagos do mundo. E isso ocorre por um motivo: a plataforma é o principal canal de buscas online, dominando cerca de 94% dos acessos orgânicos da internet1.
De forma simples, o buscado funciona da seguinte forma: sempre que um usuário pesquisa no Google um determinado termo, o buscador irá mostrar páginas que contenham a palavra pesquisada, que serão exibidas de forma ordenada, utilizando como parâmetros métricas de ranqueamento, tais como SEO, número de acessos orgânicos e qualidade da página de hospedagem.
Entretanto, não é sempre que essa ordem é seguida, uma vez que a plataforma possibilita que os usuários quebrem essa ordem de exibição por meio da realização de anúncios pagos. Com tal ação, a minha página será exibido em locais e posições privilegiadas no buscador, e a sua posição, o Ad Rank, está relacionada com dois fatores primordiais: o preço máximo por cliques e o índice de qualidade da palavra-chave que deu azo ao aparecimento do anúncio.
Considerando que eu consigo, na gestão de um anúncio, escolher as palavras chaves vinculadas, visando redirecionar clientes que procuravam por concorrentes no Google, empresas iniciaram ações de indexação do anúncio de sua marca à de terceiros, buscando com isso alcançar usuários - de forma direta - que procuravam por outras empresas ou marcas específicas. Tal ação é lícita?
Recentemente, a quarta turma do Superior Tribunal de Justiça, responsável pelo julgamento de matérias de direito privado, decidiu que comete crime de concorrência desleal aquele que utiliza a marca registrada de propriedade de uma pessoa (natural ou jurídica) como palavra-chave para direcionar anúncios, como os feitos pelo Google Ads. A decisão deu-se no julgamento do REsp 1.937.989, de relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão.
No caso de referência, a pesquisa no buscador por "Braun Turismo e Viagens" exibia no topo da página o site "Voupara.com.", por conta das ações de publicidade pagas direcionadas do concorrente.
De acordo com o Relator do caso, a empresa responsável pelo site Voupra.com não só utilizou, sem permissão, a marca da empresa Braun Turismo e Viagens, como também praticou crime de concorrência desleal, ao empregar o termo "Braun" com o intuito de conseguir melhores posições buscador (art. 195, inciso III, da Lei 9.279/96). Passemos a analisar o caso.
A denominação que conhecemos como marca é definida pela Lei de Propriedade Industrial como um sinal distintivo visualmente perceptível.
Dentre as principais funcionalidades da marca está a possibilidade de distinção entre produtos ou serviços de outro idêntico, semelhante ou afim, de origem diversa. Isto é, a precípua finalidade da marca é singularizar um produto ou serviço, permitindo sua identificação pelo público alvo, sendo suficiente para garantir esta identificação.
É por isso que marcas com nomes semelhantes podem ser registradas desde que façam parte de classes distintas, tendo em vista a parca possibilidade de confusão ao consumidor.
Percebe-se que ao falar em sinal distintivo, a Lei abre margem para afirmar que não se trata da proteção de um nome (marca nominativa) apenas, mas pode ser de um símbolo característico (marca figurativa) ou até de ambos, de forma indistinta (marca mista).
No Brasil, a propriedade de uma marca é adquirida pelo registro válido, junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), a qual confere ao seu titular, dentre outros direitos, o uso exclusivo dessa marca em todo o território nacional. Dessa forma, aquele que possui a propriedade da marca pode, se quiser, até dispor desses direitos, dentre os quais podemos citar a cessão do registro e o licenciamento para uso por terceiro.
Salienta-se que esses direitos também podem ser extintos, pois, como exposto acima, tratam-se de direitos que decorrem, única e exclusivamente, do registro. O fim desses direitos pode ocorrer com a expiração do prazo de vigência do registro, que é de 10 anos, contado da concessão. Ainda, por intermédio de renúncia ou da caducidade do registro, que ocorre quando da interrupção do uso da marca pelo lapso de cinco anos.
No caso julgado pela Quarta Turma do STJ, a parte vencida utilizou-se do nome da marca registrada da parte vencedora como palavra-chave para melhor ranquear nas pesquisas empreendidas pelos usuários do Google.
Por essa ação, constata-se que a vencida feriu um dos direitos da vencedora, qual seja a exclusividade do uso da marca em todo o território nacional. Essa conduta ilícita é, inclusive, tipificada na Lei de Propriedade Industrial como crime contra o registro de marca. De acordo com a supracitada lei, comete crime contra o registro de marca aquele que reproduz, sem autorização do titular, no todo ou em parte, marca registrada, ou imita-a de modo que possa induzir confusão.
A reprodução de marca alheia causa um enorme prejuízo ao real proprietário da marca, principalmente, quando a pessoa que reproduz atua no mesmo ramo mercadológico.
No caso sob análise, ao utilizar do sinal da empresa vencedora, a empresa vencida teve como intuito desviar para si a clientela já conquistada pela empresa vencedora em sua atuação comercial.
Por isso, o Ministro Relator fundamentou que a vencida teria praticado crime de concorrência desleal, uma vez que o artifício de dispor o nome da marca da vencedora como palavra-chave, atraindo a clientela da Braun Turismo e Viagens, fez incorrer nos incisos I e II do art. 1952 da lei 9.279/96.
No Recurso Especial que deu azo a Decisão ora relatada, a vencida foi condenada ao pagamento de R$10.000,00 (dez mil reais) a título de danos morais, além do embargo ao uso nominativo da marca.
A condenação em indenização por danos extrapatrimoniais decorre do presumido prejuízo (in re ipsa) pelo uso indevido da marca registrada.
No REsp 1327773/MG, julgado pelo mesmo Relator, no ano de 2018, assentou-se a tese de que é presumido o dano moral suportado por quem tem sua marca utilizada de forma ilegal, pois há uma clara afronta à reputação e à credibilidade da empresa que detém a marca. Nas palavras do Ministro Luís Felipe Salomão, "(...) a reputação, a credibilidade e a imagem da empresa acabam atingidas perante todo o mercado (clientes, fornecedores, sócios, acionistas e comunidade em geral), além de haver o comprometimento do prestígio e da qualidade dos produtos ou serviços ofertados, caracterizando evidente menoscabo de seus direitos, bens e interesses extrapatrimoniais.".
O caso julgado pelo Colendo STJ está longe de ser um tema pouco visto nos tribunais pátrios. Resultados semelhantes já foram vistos na Decisão proferida pelo juiz Direito Diogo Barros Boechat, da 3ª vara Empresarial do RJ no processo de 0120484-07.2021.8.19.0001 ou pela 1ª câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo através do julgamento da ação 1033082-69.2018.8.26.0100.
A conclusão que se extrai é que a sociedade está sempre em mutação, de modo que as ações comerciais utilizadas, inclusive, para lesar a propriedade industrial, estão em constante mutação, sendo de suma importância que o direito acompanhe essa evolução para garantir proteção a essa propriedade que, apesar de pouco palpável, representa um dos maiores ativos de uma pessoa, seja física ou jurídica.
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1 Disponível em: https://norakramerdesigns.com/beyond-google-much-traffic-search-engines-really-drive. Acesso em 09 set. 2022.
2 Art. 195. Comete crime de concorrência desleal quem: [...]
III - emprega meio fraudulento, para desviar, em proveito próprio ou alheio, clientela de outrem [...];
V - usa, indevidamente, nome comercial, título de estabelecimento ou insígnia alheios ou vende, expõe ou oferece à venda ou tem em estoque produto com essas referências.
Ana Carolina de Morais Lopes
Diretora presidente da Ágora Consultoria Jurídica. Membro do Grupo de estudos e pesquisas em Direito digital e direitos culturais da UFERSA (Digicult). Graduanda em Direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA). Estagiária no Queiroz, Barbosa e Bezerra Advocacia.