Acesso a medicamentos: O que a Netflix tem a nos ensinar
A patente é uma retribuição ao criador, após desprender conhecimento e tempo. Entretanto, sempre será alvo de discursão quando envolver medicamentos, pois está estritamente ligado a um direito fundamental: a vida.
terça-feira, 13 de setembro de 2022
Atualizado às 08:20
Recentemente estreou na Netflix o filme "Continência ao amor". O filme, que já é um sucesso de audiência e viralizou nas redes sociais recebendo boas críticas dos telespectadores, é sobre a vida de uma mulher portadora de diabetes. A trama aborda a dificuldade financeira que acomete os cidadãos norte-americanos que precisam comprar insulina - remédio para auxiliar no tratamento de diabetes.
A protagonista, que mal consegue se sustentar em razão dos altos valores dos remédios, encontra, então, uma saída: casar-se com um soldado norte americano. Isso porque, nos Estados Unidos, os integrantes do exército têm, além de outros benefícios, o direito de receber gratuitamente os remédios. Contudo, a prática do casamento "falso" - que objetiva unicamente receber os benefícios oferecidos - é previsto como crime pelo Código Militar americano.
Dito isso, surgem duas indagações: o que o filme Continência ao Amor tem a ver com as patentes; por que no Brasil a insulina é oferecida gratuitamente e nos Estados Unidos custa entre duzentos e quatrocentos dólares. O presente artigo abordará sobre o conceito de patentes e como elas afetam os preços dos medicamentos.
De início, há de se explicitar o conceito de patente. O deferimento de registro de uma patente é um título conferido pelo Estado a um inventor que desprendeu esforços para criar algo inovador ou melhorar algo já existente, que possua aplicação industrial.
Art. 8º É patenteável a invenção que atenda aos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial.
Art. 9º É patenteável como modelo de utilidade o objeto de uso prático, ou parte deste, suscetível de aplicação industrial, que apresente nova forma ou disposição, envolvendo ato inventivo, que resulte em melhoria funcional no seu uso ou em sua fabricação.
Assim, ao deter uma patente o proprietário possui o direito de exercer de forma exclusiva a utilização da invenção pelo período de 20 anos se for uma patente de inovação, e por 15 anos se for uma patente de modelo de utilidade.
Partindo dessa lógica, é possível notar a razão pela qual inúmeros medicamentos, essenciais para proporcionar uma melhora significante na qualidade de vida de quem utiliza, possuem preços considerados exorbitantes, por pertencerem a uma indústria que detém o monopólio da fórmula.
Nesse contexto, surgem diversos debates sobre a possibilidade da quebra da patente. Em linhas gerais, conforme a lei 9279/96, in verbis, o Governo Federal, em caso de necessidade social ou segurança Nacional pode solicitar que o proprietário da patente perca a exclusividade sobre a fórmula e terceiros possam utilizar a invenção.
Art. 71. Nos casos de emergência nacional ou internacional ou de interesse público declarados em lei ou em ato do Poder Executivo federal, ou de reconhecimento de estado de calamidade pública de âmbito nacional pelo Congresso Nacional, poderá ser concedida licença compulsória, de ofício, temporária e não exclusiva, para a exploração da patente ou do pedido de patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular, desde que seu titular ou seu licenciado não atenda a essa necessidade.
Para entender o caso específico da insulina, é preciso adentrar na história das pesquisas médicas sobre a diabete. Inicialmente, os pesquisadores não haviam descoberto ainda o que era a diabete, o que se tinha era apenas o diagnóstico de pessoas com urina doce, que posteriormente descobriu-se ser por causa do açúcar.
No final do século XIX, médicos alemães descobriram que a diabete era relacionada ao pâncreas. Para realizar o estudo, os médicos retiraram o pâncreas de um cachorro, e constataram que a urina ficou doce, descobrindo, assim, que o pâncreas é importante para regular a concentração de açúcar no nosso corpo.
No ano de 1921, os médicos Charles Best e Frederick Banting descobriram que o extrato de pâncreas podia remover a diabete dos cães operados e remover a concentração de açúcar no sangue. Os médicos constataram que determinada área do pâncreas produzia um hormônio que era responsável pela melhora, e o denominaram de insulina.
À época, muitas pessoas morriam de diabete, pois não havia tratamento adequado para essa enfermidade. O que era feito na tentativa de cura eram tratamentos como a sangria e o ópio, os quais obviamente não surtiam efeito algum. Diante desse cenário, era evidente a necessidade e urgência de tratamento com insulina em humanos.
O primeiro tratamento com insulina em humanos foi um sucesso. A criança que recebeu o tratamento apresentou melhora na glicemia instantaneamente, e sobreviveu por muitos anos. Começou-se então a se usar o pâncreas de porcos para a produção em massa da insulina, melhorando substancialmente o tratamento para diabetes, o que rendeu o prêmio Nobel de medicina para os criadores.
O intuito dos criadores, que desenvolveram um remédio capaz de salvar milhões de vidas, não era o lucro incessante, mas sim ajudar o maior número de pessoas. Dessa forma, não queriam licenciar a patente, para que fosse acessível a todos. Contudo, foram convencidos a realizar o patenteamento, para evitar que outras empresas o fizessem e se tornassem proprietárias dele.
Note que o registro de patente é importante para garantir que a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico sejam mantidos. Embora diversas farmacêuticas utilizem da prerrogativa da titularidade da criação e forneça alguns medicamentos de forma restritiva, o registro visa garantir que o inventor seja recompensado por sua criação.
Apesar do patenteamento realizado em Toronto ter sido há muito tempo, caso seja realizada alguma melhoria que altere o procedimento, fazendo com que, mesmo que se se expire o prazo referente à exclusividade da patente original, os modelos de utilidade provenientes da invenção poderão ser patenteados.
Contudo, tais melhorias e sucessivas renovações de patente não justificam, por si só, a diferença de preço existente entre o Brasil e o EUA. A resposta é outra: saúde pública universal. O Sistema único de Saúde oferece assistência integral à pessoa diabética. Tal benefício foi assegurado pela lei 11.347, sancionada em 2006, como se vê:
Art. 1º Os portadores de diabetes receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde - SUS, os medicamentos necessários para o tratamento de sua condição e os materiais necessários à sua aplicação e à monitoração da glicemia capilar.
Além dos medicamentos, o diabético brasileiro tem direito, ainda, a receber o aparelho medidor de insulina - quem assistiu ao filme percebeu a extrema importância de tal aparelho. A única condição para o recebimento dos benefícios é, conforme o § 3º, do art. 1º, estar inscrito em programa de educação especial para diabéticos.
Mais recentemente, em 2019, o tema voltou a ser objeto de lei, dessa vez, prevendo, além da assistência integral à pessoa diabética, a adoção da política nacional da prevenção da diabete. A lei 13.895/19 dispõe:
Art. 1º O Sistema Único de Saúde (SUS) adotará a Política Nacional de Prevenção do Diabetes e de Assistência Integral à Pessoa Diabética, em qualquer de suas formas, incluído o tratamento dos problemas de saúde com ele relacionados.
Além disso, o art. 2º, IV, prevê o "apoio ao desenvolvimento, científico e tecnológico voltado para o enfrentamento e o controle do diabetes, dos problemas com ele relacionados e seus determinantes [...]". Tal apoio certamente será determinante para novas descobertas e melhorias, fato que, consequentemente, afetará patentes relacionadas ao tema.
No mesmo sentido, o Brasil possui uma regulamentação sobre os medicamentos que precisam estar disponíveis a sociedade de forma gratuita. O objetivo é garantir o amplo acesso a saúde. Assim, existe a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais- RENAME- onde estão descritos os medicamentos que devem ser oferecidos como assistência social. O ministério da Saúde é o responsável por editar e ampliar a lista, tudo isso com auxílio técnico.
O Brasil deu início à elaboração de listas de medicamentos classificados como essenciais em 1964, por meio do Decreto n.º 53.612, de 26 de dezembro de 1964, que definiu a Relação Básica e Prioritária de Produtos Biológicos e Materiais para Uso Farmacêutico Humano e Veterinário. Em 1975, por meio da publicação da Portaria n.º 233 do Ministério da Previdência e Assistência Social, a lista foi oficializada como Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename).
(...)
O Ministério da Saúde estabelecerá mecanismos que permitam a contínua atualização da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), imprescindível instrumento de ação do SUS, na medida em que contempla um elenco de produtos necessários ao tratamento e controle da maioria das patologias prevalentes no País.
Nos Estados Unidos não há sistema universal de saúde, razão pela qual um produto patenteado fica à mercê da intenção de lucro dos seus donos. Diante da gravidade que causa a falta do medicamento, os clientes - diabéticos - não tem outra opção a não ser pagar o preço a eles ofertado, ou provavelmente falecer.
É importante ressaltar que o SUS não comtempla todos os novos medicamentos ou ferramentas para o enfrentamento da diabetes, mas sim os necessários. Assim, ainda há produtos caros que não são acessíveis a todos, inclusive com empresas detentoras das patentes desses medicamentos, podendo exercer a exclusividade no mercado.
No Brasil, o enredo do filme não seria possível, pois a protagonista não teria que gastar absolutamente nada para pagar seu tratamento. Embora existam inúmeras críticas ao SUS, ele beneficia diversas pessoas tornando o acesso a medicamentos mais amplo.
Desse modo, a patente é uma retribuição ao criador, após desprender conhecimento e tempo. Entretanto, sempre será alvo de discursão quando envolver medicamentos, pois está estritamente ligado a um direito fundamental: a vida.
Lorena Marques Magalhães
Advogada na Barreto Dolabella advogados, mestranda em propriedade intelectual e transferência de tecnologia na UNB
Rodrigo Couto Oliveira
Advogado. Pós-graduando em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho