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A dificuldade no acesso à moradia em face da mercantilização imobiliária

Verifica-se, de tal forma, a mercantilização da moradia e a exclusão social ocasionada pela crise da habitação no Brasil se retroalimentam. Em que pese sua expressa constitucionalização como direito social, o Estado termina por não assumir um papel verdadeiramente ativo em sua concretização.

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Atualizado em 12 de setembro de 2022 09:06

A origem do problema da moradia no Brasil se encontra, precipuamente, no êxodo rural. Na Europa, este foi ocasionado pelo processo que se seguiu às revoluções industriais. Na América Latina, entretanto, sucedeu à tardia industrialização dos países. Especificamente no Brasil, passou a ocorrer especialmente a partir do início do Século XX.

Imprescindível analisar a expansão territorial como processo de maneira a se poder entender como os pequenos posseiros buscavam limitar a expansão territorial dos fazendeiros, negando que eram senhores e possuidores das terras por eles ocupadas. Para o fazendeiro do Século XIX não bastava afirmar que era dono da terra por ele invadida, mas que outros o reconhecessem como tal.1

Os pequenos posseiros haviam sido os primeiros a derrubar matas virgens e plantar gêneros alimentícios, fatores que alegavam nos processos de embargo nos quais eram réus, de maneira que procuraram limitar a expansão territorial do fazendeiro, somente o reconhecendo como senhor de terras de área específica, cuja ocupação era por aqueles reconhecida.2

Tornando-se réus de um processo e verem suas casas e cultivos serem queimados por força do auto de embargo, percebiam concretamente que o mero apossamento não lhes garantia o domínio ou a manutenção na área ocupada, passando a ter ao menos duas alternativas, aceitar a condição de agregados do fazendeiro ou insistir no seu reconhecimento como posseiros.3

Caso optassem por esta estratégia, não estariam dispostos a deixar a terra de forma tranquila, porém, em que pese o processo de embargo permitir, no Século XIX, a queima da colheita do posseiro e a destruição de suas benfeitorias, não era raro que os pequenos posseiros insistissem em permanecer cultivando terras em litígio, argumentando que eram suas por serem os primeiros ocupantes.4

Deveras, a crise da propriedade rural, seguida pelas grilagens, invasões, embargos, desapropriações, dentre outras questões confira um fator relevante para o início do êxodo rural, entretanto, não a única, tendo em vista, especialmente, a superveniência da industrialização brasileira, ainda tímida no decorrer da segunda metade do Século XIX.

No respectivo período entre os anos de 1873 a 1874, transitava-se da manufatura e da pequena empresa para a grande indústria, bem como para um tempo de falta de habitações. De um lado, massas de operários foram repentinamente atraídas para as grandes cidades, num verdadeiro êxodo rural, que se desenvolveram em centros industriais, cujo traçado antigo já não correspondia às condições da nova grande indústria e do tráfego correspondente.5

As ruas foram alargadas e novas ruas foram abertas para se fazer passar por elas o caminho-de-ferro, ao mesmo momento em que os operários afluíram em grande número, fazendo surgir as habitações operárias, o pequeno comércio e os pequenos ofícios dependentes da clientela operaria, notadamente em Londres, Paris, Berlim, Viena, cidades nas quais a falta de habitações foi aguda.6

Tendo ocorrido na Europa, algo similar se deu com a industrialização ocorrida no Brasil, especialmente no decorrer do Século XX. Além disso, entretanto, é necessário observar as consequências anteriores da abolição da escravatura no que se relaciona ao êxodo rural em direção às cidades, contexto decisivo para a crise da habitação nacional.

Ocorrendo a abolição da escravatura, oficializada pela lei Áurea, de 1888, e com o impedimento de os escravos se tornarem camponeses, quase dois milhões de adultos saíram das fazendas e senzalas, abandonando o trabalho agrícola, dirigindo-se para as cidades em busca de alguma alternativa de sobrevivência, vendendo "livremente" sua força de trabalho.7

Como ex-escravos, pobres, despossuídos de qualquer bem, restava-lhes a única alternativa de buscar sobreviver nas cidades portuárias, nas quais havia trabalho que exigia apenas força física para carregar e descarregar navios atracados em seus portos. Além disso, foram impedidos de se apossar de terrenos e construir suas moradias. Os melhores terrenos das cidades já eram propriedade de sesmeiros, capitalistas e comerciantes.8

Em decorrência de tais fatores é que os trabalhadores negros foram à busca dos restos do território urbano, ou seja, dos piores terrenos, das regiões íngremes, dos morros e dos manguezais, que, por sua vez, não interessavam aos capitalistas, fazendo surgir, então, as denominadas favelas. Dessa forma, a lei de terras também é a mãe das favelas brasileiras.9

Não se pode descurar também, que o retorno dos soldados da Guerra de Canudos ao Rio de Janeiro, na época Capital Federal, com a promessa de 'ganhar' uma residência, como foi inexitosa, trouxe à tona o surgimento da favela no Morro da Providência, demonstrando a falta de moradia à época, ainda que o Império tenha prometido o contrário.

A favela (comunidade) é um grupo de moradias construídas de forma desordenada, com materiais de baixo custo, sem zoneamento ou serviços de infraestrutura, em terrenos geralmente invadidos ou em áreas de preservação permanente. No Brasil, há favelas de todo o tipo, algumas com casas empilhadas sem ruas, outras com ruas bem traçadas e alta densidade de ocupação. Assim, seu elemento é o fato de ocuparem ilegalmente uma área urbana.10

As consequências do processo excludente de abolição da escravatura, seguido pelo êxodo rural, provocaram a extrema precarização da moradia no Brasil, resultando na superveniência das favelas e de outras moradias informais e ocupações ilegais, prejudicando não apenas a adequação da habitação como, também, a segurança jurídica da posse.

Há relação direta com a dignidade da pessoa humana e com vários direitos fundamentais que a corroboram, componentes do chamado mínimo existencial, no contexto do capitalismo, sendo que a habitação termina por se demonstrar e ser tratada como uma mercadoria como qualquer outra.

O mínimo existencial, sob uma perspectiva liberal, conforme Ricardo Lobo Torres, carece de um conteúdo específico, abrangendo, contudo, qualquer direito, "[...] ainda que originalmente não fundamental"11. Trata-se do caminho que leva à superação da tese do primado dos direitos sociais sobre os direitos da liberdade, "[...] e da confusão entre direitos fundamentais e direitos sociais".12

O autor, portanto, afirma que os direitos fundamentais, em que pese se encontrarem expressos no texto constitucional, não podem ser considerados, materialmente, como direitos fundamentais, nem mesmo comporem, isoladamente, o mínimo existencial, tendo em vista que este não tem um conteúdo jurídico pré-determinado.

Ingo Wolfgang Sarlet, sob uma perspectiva social, compreende que, se não houver respeito pela integridade física e moral do ser humano, asseguramento de condições mínimas para uma existência digna, limitação do poder, liberdade, autonomia igualdade em direitos e dignidade e reconhecimento mínimo dos direitos fundamentais, não haverá espaço para a dignidade humana.13

Em decorrência disso, a pessoa humana não passará de "[...] mero objeto de arbítrio e injustiças". Desse modo, "[...], também para o homem jurídico-constitucional a concepção do homem-objeto (ou homem-instrumento)", constitui a antítese da noção de dignidade da pessoa, que não pode se limitar ao sentido negativo, sob pena de se restringir demasiadamente seu âmbito de proteção.14

Notável, portanto, que o autor afirma que, assim como as garantias relacionadas à liberdade, os direitos sociais são direitos fundamentais, tendo em vista serem essenciais para assegurar condições básicas de determinação da dignidade da pessoa humana, compondo, dessa forma, o denominado mínimo existencial.

Neste viés, a produção privada de moradias para todas as classes econômicas e sociais é uma importante área de aplicação do capital. No mercado capitalista existe, ainda que parcialmente, a oferta de moradias para todos os gostos e os bolsos, situação interessante para o morador de renda baixa e incerta.15

O mercado de trabalho relega parte da população à pobreza, assim como o mercado imobiliário nega aos pobres a possibilidade de habitar o mesmo espaço em que moram aqueles que podem pagar, fazendo surgir uma demanda economicamente inviável, porém, socialmente inegável, contradição da qual surge a "habitação social", pois o mercado de trabalho e o mercado de locação imobiliária não se comunicam.16

Os vencimentos dos trabalhadores não permitem alugar uma moradia "legal", que ofereceria condições mínimas de habitabilidade. O capital privado produz moradias abaixo do padrão mínimo, porém, compatíveis com seu poder aquisitivo, fazendo com que o problema continue, porém, sendo-lhe dada a mesma solução, apesar do oferecimento de alternativas governamentais.17

Problemática complexa, envolvendo a transformação de um direito fundamental essencial à própria dignidade da pessoa humana em uma questão simplesmente comercial e mercadológica, assim como a omissão estatal no que se relaciona à sua concretização no plano dos fatos, tornando perene a informalidade e as ocupações ilegais.

O poder público se retira da operacionalização de serviços e cria instrumentos de parcerias junto ao setor privado. Quanto à habitação, o modelo de financiamento vigorante no período militar era centralizado no Banco Nacional de Habitação - BNH, que direcionava recursos para as camadas médias, que avaliava o nível de renda como critério de acesso ao crédito, embora existam críticas em se colocar as famílias nas periferias das cidades.18

Em decorrência disso, as pessoas cujas rendas não alcançavam três (3) salários-mínimos e os trabalhadores informais não tinham acesso a crédito de habitação, fazendo com que o mercado imobiliário favorecesse a especulação da terra urbana, a concentração de riqueza também, déficit habitacional da população de baixa renda e, ao mesmo tempo, unidades domiciliares urbanas desocupadas.19

Verifica-se, de tal forma, a mercantilização da moradia e a exclusão social ocasionada pela crise da habitação no Brasil se retroalimentam. Em que pese sua expressa constitucionalização como direito social, o Estado termina por não assumir um papel verdadeiramente ativo em sua concretização.

Neste fulcro é que entra a necessidade de efetivação de reais políticas públicas habitacionais, diminuindo a necessidade premente que grande parte de brasileiros possuem para o fim de obter a dignidade da pessoa humana, mínimo existencial, através da moradia, porque não interessa a ninguém a enormidade de pessoas que vivem em situação de rua ou em situação degradante, precipuamente em grandes cidades. Isso prejudica, de maneira clara, toda a sociedade brasileira.

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1 MOTTA, Márcia. Movimentos rurais nos Oitocentos: uma história em (re)construção. Estudos Sociedade e Agricultura, n. 16, p. 113-128, abr., 2001, p. 117.

2 Idem.

3 Ibidem.

4 Ibidem.

5 ENGELS, Friedrich. Para a questão da habitação. Lisboa: Avante, 1993. p. 12.

6 ENGELS, Friedrich. Op. Cit., p. 12.

7 LEHFELD, Neide Aparecida de Souza. Uma abordagem populacional para um problema estrutural: a habitação. Rio de Janeiro: Vozes, 1988. p. 7.

8 Ibidem, p. 7.

9 Ibidem, p. 7-44.

10 LEHFELD, Neide Aparecida de Souza. Op. Cit., p. 44.

11 TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de Direito Administrativo, v. 177, p. 29-49, jul.- set., 1989, p. 29. Apud: BARLETTA, Fabiana Rodrigues. O direito à saúde da pessoa idosa. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 135.

12 TORRES, Ricardo Lobo. A jusfundamentalidade dos direitos sociais. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, v. XII, p. 349-374, 2003, p. 370. Apud: BARLETTA, Fabiana Rodrigues. O direito à saúde da pessoa idosa. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 135.

13 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 61. Apud: BARLETTA, Fabiana Rodrigues. O direito à saúde da pessoa idosa. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 145.

14 Idem.

15 SINGER, Paul. Prefácio. In: BONDUKI, Nabil: Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria. 7. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2017. p. 9.

16 SINGER, Paul. Op. Cit. p. 9-10.

17 Ibidem, p. 10.

18 COSTA, Lucia Cortes da. Op. cit., p. 68.

19 Ibidem, p. 68-69.

Érika Silvana Saquetti Martins

Érika Silvana Saquetti Martins

Doutoranda Dto ITE. Mestre Dto. UNINTER. Mestranda Pol Públicas UFPR. Espec Dto e Proc Trabalho, Dto. Público e Notarial e Registral. Professora Pós Graduação latu sensu Direito Uninter. Advogada.

Robson Martins

VIP Robson Martins

Doutorando Direito UERJ. Mestre Direito UFRJ. Especialista em Direito Civil, Notarial e Registral. Professor universitário. Procurador da República. Promotor de Justiça PR 99/02. Técnico JFPR 93/99.

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