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A pandemia do coronavírus deixa algum legado para a jurisprudência da Suprema Corte brasileira?

A pandemia imprimiu uma espécie de evolução à fórceps sobre o assunto.

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Atualizado às 13:21

Desde que o mundo se tornou palco da pandemia do coronavírus, diversos foram os paradigmas rompidos nas mais diferentes áreas. As perdas significativas de vidas humanas, a desaceleração de atividades econômicas e as crises sanitária e humanitária provocaram mudanças na vida cotidiana, no mundo do trabalho e nas relações comerciais entre pessoas e entre Estados.

No Brasil, o cenário da pandemia foi um dos mais críticos do mundo, com números expressivos de mortos e infectados e com ocupação de leitos de UTI no limite da capacidade do sistema de saúde. Houve uma queda histórica do PIB brasileiro e o aumento da linha da pobreza se tornou ainda mais visível. O agravamento da crise econômica colocou em xeque as desigualdades estruturais existentes e causou impacto desproporcional sobre as pessoas em situação de vulnerabilidade. Muitos ricos ficaram mais ricos e os mais pobres, invariavelmente, empobreceram mais.

O país, que me parece ser o melhor exemplo de políticas públicas eficazes, viu-se na emergência não apenas de conter a propagação do vírus, mas também de minimizar os efeitos do desemprego e da miséria. Invariavelmente, muitos dos conflitos decorrentes desse contexto chegaram ao Poder Judiciário com uma velocidade tão avassaladora quanto a do vírus.

O Poder Judiciário foi chamado a resolver litígios ligados à competência dos entes federativos, à atuação do Poder Legislativo na apuração da responsabilidade dos gestores, à constitucionalidade de normas restritivas da liberdade de locomoção, à utilização de leitos de UTI e à proteção de populações vulneráveis, entre outros.

No Supremo Tribunal Federal, destaco dois debates como mais significativos: as políticas públicas e o pacto federativo.

O tema da ineficácia da prestação de políticas públicas exigiu a atuação do STF sobretudo no que diz respeito ao plano de imunização e à adoção de medidas preventivas relacionadas à restrição de direitos.

Foram muitos os atos restritivos de atividades econômicas e da circulação de pessoas editados pelos Governadores e Prefeitos que acabaram sendo referendados pela Suprema Corte em nome da contenção da pandemia.

O tema das vacinas também entrou na pauta. A ACO 3.518, que versou sobre a distribuição das doses pelo Governo Federal, serviu para que o Supremo enfatizasse que eventuais alterações da política nacional de distribuição dos imunizantes deveriam ser tempestivamente informadas aos Estados.

Na ADIn 6.586, o STF decidiu pela legitimidade da vacinação obrigatória, desde que respeitada a dignidade das pessoas, e ressaltou a competência do Ministério da Saúde para coordenar o Programa Nacional de Imunização, de forma a não excluir a competência dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para estabelecer medidas profiláticas e terapêuticas.

O Supremo Tribunal Federal também se manifestou sobre a necessidade de detalhamento do Plano Nacional de Imunização (ADPF 754) e determinou a divulgação da ordem de preferência entre os grupos prioritários com base em critérios técnico-científicos.

Sobre o tema das políticas públicas, é bem verdade que a Corte manteve uma postura proativa já consolidada. No entanto, no debate sobre o tema do pacto federativo, me pareceu que a mudança jurisprudencial foi bem mais evidente.

Isso porque a antiga tradição dos precedentes sobre a matéria trazia um enfoque para a centralização da federação, fruto da herança histórica brasileira. Ainda que a Constituição de 1988 tenha reforçado a divisão de competências entre os entes e a necessidade de respeito às regras da federação, o avanço rumo a uma descentralização efetiva aconteceu muito mais lentamente na prática do que no papel.

A pandemia imprimiu uma espécie de evolução à fórceps sobre o assunto. Um dos primeiros divisores de águas na jurisprudência do STF sobre a matéria foi a decisão proferida na ADI 6.341, que ressaltou a possibilidade de os entes federativos adotarem medidas restritivas, mesmo que mais ortodoxas do que as adotadas pela União.

O tema também veio à tona no julgamento da ADIn 6.343, sobre regras para que Estados e Municípios adotassem medidas de restrição à locomoção. O Supremo reiterou o preceito de que a distribuição de competências é alicerce do federalismo e do Estado Democrático de Direito, cuja base deve ser a cooperação entre os três poderes.

Por isso, não competiria ao Poder Executivo federal afastar decisões que tivessem adotado medidas restritivas, como imposição de distanciamento ou isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e de circulação de pessoas.

Foi assim que os impasses políticos que culminaram nessas decisões acabaram por impulsionar um certo aprimoramento do tema, em especial sobre a ampliação das competências dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

É claro que essa mudança já se fazia sentir antes da crise instaurada pela pandemia. Basta ver, por exemplo, o desfecho dado em 2015 na ADIn 4.060, sobre a possibilidade de os Estados estabelecerem o número mínimo e máximo de alunos em sala de aula, em respeito às especificidades locais. O STF também já era sensível às discussões envolvendo o pacto federativo em matéria de guerra fiscal e a dívida dos Estados com a União.

De lá para cá, não custa lembrar que a Corte Constitucional oscilou entre posturas conservadoras e progressistas, ora minimizando, ora enfatizando a importância do papel dos entes federativos na moldura constitucional. Mas é especialmente a partir de 2020 que o Supremo bate o martelo sobre a necessidade de descentralização. Como dizia o ministro Marco Aurélio, "a crise é aguda" e mereceu soluções cirúrgicas.

Ainda que meu prognóstico seja otimista, é prematuro afirmar que a preservação das competências dos Estados e Municípios será um leitmotiv das futuras decisões da Suprema Corte brasileira, que muitas vezes oscila ao sabor de argumentos consequencialistas. Em outras palavras, o Supremo Tribunal Federal sabe muito bem como ser imprevisível.

Basta ver a decisão proferida no RE 714.139, em que o STF reduziu a alíquota do ICMS, invadindo a competência legislativa dos Estados e do Distrito Federal.

De todo modo, tenho que a mudança jurisprudencial poderá servir de precedente para outras controvérsias. Afinal de contas, a Corte já suspendeu decisões que não respeitavam seu entendimento, em casos emblemáticos versando sobre contenção do transporte fluvial, restrição de celebração de cultos religiosos, abertura do comércio e outros serviços.

Quanto às decisões acerca da imposição de políticas públicas, o Supremo parece estar mais ativista do que nunca, o que, de um lado, atende a situações emergenciais e necessárias e, de outro, fortalece a cultura de que o Poder Judiciário pode agir como legislador positivo.

O balanço, no entanto, tende a ser positivo: o Supremo Tribunal Federal tem sido historicamente instado a se pronunciar sobre temas que tocam direitos fundamentais e procura dar uma resposta célere a esses chamados, concordemos com seu conteúdo ou não. E, justamente em virtude da natureza polêmica de algumas decisões, formou-se no Brasil uma polarização entre aqueles que defendem a atuação da Corte e aqueles que a repugnam, o que sói acontecer em um país politicamente dividido.

A meu juízo, qualquer que seja a posição que se adote, não se pode, porém, perder de vista que a missão conferida ao STF é uma das mais nobres que a Constituição Federal consagrou: a garantia aos direitos fundamentais, a estabilidade do Estado democrático de Direito e a solidez de suas instituições.

Fernanda Figueira Tonetto Braga

Fernanda Figueira Tonetto Braga

Pós-doutora em direito (UnB). Doutora em direito (Paris II Panthéon-Assas). Doutora e Mestre em direito (UFRGS). Mestre em Integração (UFSM). Procuradora do Estado nos Tribunais Superiores.

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