O desrespeito ao tema 1.076 do STJ pelos Tribunais Estaduais: fixação de honorários advocatícios por equidade
É lamentável e reprovável a continuidade das decisões contrárias à lei e ao entendimento firmado pela Corte Superior em sede de julgamento repetitivo.
quinta-feira, 8 de setembro de 2022
Atualizado às 13:19
Não obstante a definição do Tema 1.076 pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça em 16.3.22, na qual, sob a sistemática dos recursos repetitivos representativos de controvérsia, restou consignado não ser possível a fixação de honorários sucumbenciais por equidade nas causas em que os valores envolvidos (condenação, causa ou proveito econômico) são considerados elevados, há recalcitrância dos Tribunais locais em seguir a orientação vinculante do Tribunal cuja função constitucional é dar a última palavra sobre a interpretação da legislação federal.
Rememora-se que o CPC/15 é marcado pela profunda preocupação com a igualdade, coerência, isonomia, segurança jurídica e previsibilidade do sistema jurídico, o que motivou a valorização das decisões judiciais e a criação dos denominados precedentes vinculantes. Nesse diapasão, estabelece o art. 927 do CPC que os juízes e tribunais observarão "os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos" (inciso iii)
Outra matéria que sofreu alteração substancial no atual Diploma Processual é a relativa aos honorários sucumbenciais, certamente com vistas a coibir prática tão recorrente do Poder Judiciário em fixar honorários sucumbenciais em valores módicos e até mesmo aviltantes, sem qualquer justificativa.
Dentre as modificações e inovações no tocante aos honorários, destaca-se o fato de que o Código de Processo Civil prevê que eles somente podem ser fixados por equidade de forma subsidiária, quando não for possível o arbitramento pela regra geral ou quando inestimável ou irrisório o valor da causa.
Sobre o tema, leciona Rogerio Licastro Torres de Mello:
Há, de vez por todas, e concorde-se ou não com tal orientação, a tomada de posição acerca da regra elementar de fixação da honorária sucumbencial: os honorários de sucumbência devem ser fixados em percentuais (10% a 20%) sobre determinada expressão econômica da causa, sendo expressamente subsidiária a estipulação por equidade.1
De fato, "não é exagero dizer que o art. 85, com dezenove parágrafos, trouxe a solução para boa parte das polêmicas"2 envolvendo as verbas sucumbenciais. Além da definição de novo critério para cálculo dos honorários em causas envolvendo a Fazenda Pública e a criação dos honorários de sucumbência recursal, o CPC definiu como regra a fixação de honorários sobre o valor da condenação principal, do proveito econômico ou do valor atualizado da causa, somente se admitindo o arbitramento por equidade quando for "inestimável ou irrisório o proveito econômico ou, ainda, quando o valor da causa for muito baixo" (art. 85, §8º do CPC).
Apesar da clareza ímpar dos dispositivos que regulam os honorários sucumbências, não foram poucas as decisões que, seguindo entendimento firmado sob a égide do CPC/73, afastaram a aplicação da lei com base em equivocadas - e indevidas - interpretações do art. 85 do CPC segundo os 'princípios da razoabilidade e proporcionalidade' para arbitrar honorários por equidade quando a aplicação da regra (§2º do art. 85 do CPC) puder levar ao 'enriquecimento sem causa' do advogado do vencedor.
Muito embora o STJ já tivesse se manifestado no sentido de não ser possível a fixação por equidade em causas em que a condenação, o proveito econômico ou o valor da causa supostamente são excessivos (cita-se, a título exemplificativo, STJ. REsp 1.746.072/PR. Segunda Seção. Min. Rel. do Voto Vencedor RAU ARAÚJO. j. 13.2.19), as instâncias inferiores continuaram interpretando os dispositivos legais de maneira absolutamente contrária a mens legis, com o fim, ao que parece, de negar reconhecimento e remuneração ao advogado da parte que se logrou vencedora na ação judicial.
Exatamente por essa razão, isto é, a ideal interpretação sobre o novel regramento dos honorários sucumbenciais, é que os Recursos Especiais 1.850.512, 1.877.883, 1.906.623 e 1.906.618 foram afetados para julgamento repetitivo pela Corte Especial do STJ. Tratando-se de recurso submetido à sistemática dos recursos repetitivos, esperava-se que o entendimento que fosse fixado pela Corte Especial, independentemente do resultado, fosse seguido de maneira irrestrita pelas instâncias inferiores e pelo próprio Tribunal Superior.
Isso porque, como visto, o CPC/2015 preza pela segurança jurídica e uniformidade das decisões, estabelecendo que "os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente" (art. 926), devendo observar as decisões e entendimentos firmados conforme o rol do artigo 927.
Aliás, bom que se diga que não se considera fundamentada qualquer decisão que deixa de seguir precedente invocado pela parte "sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento" (art. 489, §1º, VI do CPC).
Firmada pela Corte Especial a tese de que, concorde-se ou não, os honorários sucumbenciais devem ser fixados de acordo com a regra dos §§2º e 3º do CPC, mesmo "quando os valores da condenação, da causa ou o proveito econômico da demanda forem elevados", tal interpretação deve ser seguida de modo obrigatório por todo o Poder Judiciário.
Merecem repúdio decisões das instâncias inferiores que continuam fixando honorários por equidade em casos que se entende que os honorários serão 'elevados' se arbitrados segundo a regra legal dos §§2º e 3º do art. 85. Não se pode tolerar o aviltamento dos honorários em nenhuma hipótese, merecendo ainda mais críticas o arbitramento por equidade em valores módicos quando os honorários, em consonância com texto expresso de lei e agora com a orientação firmada em sede de recurso repetitivo pelo STJ, obrigatoriamente, devem ser calculados sobre a condenação, o proveito econômico ou o valor da causa.
Em que pese a justa expectativa fosse de que não mais se veria fixação de honorários fora das hipóteses legais - pois, repita-se, a observância da tese firmada no Tema 1.076 é vinculante -, continuam proliferando decisões judiciais que, sem qualquer constrangimento, deixam de seguir o entendimento sedimentado pelo STJ no julgamento repetitivo.
Cita-se acórdão proferido recentemente pela 1ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o qual, em reexame necessário, modificou a base de cálculo dos honorários sucumbenciais adequadamente fixados na sentença para evitar situação que em seu entendimento "implicaria remuneração exorbitante".
O acórdão da lavra do Desembargador Marcos Pimentel Tamassia restou assim ementado:
APELAÇÃO E REMESSA NECESSÁRIA - Ação monitória ajuizada por empresa prestadora de serviços de limpeza ao Município de Diadema - Sentença de parcial procedência, descontando-se pequeno valor em relação ao montante da dívida reconhecida pela municipalidade - Prova escrita suficiente para demonstrar o crédito da autora - Atualização da condenação unicamente pela taxa Selic após a vigência da EC 113/21 - Honorários advocatícios, ademais, que devem ser reduzidos e fixados por apreciação equitativa (art. 85, §8º, CPC/2015) - Tese fixada no Tema 1076 do STJ que não prevalece diante de recente jurisprudência do STF (ACO 2988 ED, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 21/02/22, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-046DIVULG 10-03-22 PUBLIC 11-03-22) - Sentença reformada nesses dois últimos aspectos RECURSO VOLUNTÁRIO E REMESSA NECESSÁRIAPROVIDOS EM PARTE (Apelação 004024-90.2022.8.26.0161. 1ª Câm. Dir. Púb. Des. Rel. MARCOS PIMENTEL TAMASSIA. j. 29.8.22).
Em referido acórdão, a turma julgadora afirmou que "embora se reconheça a decisão proferida pelo STJ no recente julgamento do Tema 1.076", entende que "a fixação de honorários de acordo com os percentuais legais se revela, no caso concreto, desproporcional, de modo que comporta determinação por equidade, inclusive para que não haja enriquecimento sem causa às custas do erário".
Significa dizer que a Turma Julgadora não apenas deixou de seguir entendimento vinculante do STJ, sedimentado sob o julgamento na forma dos recursos repetitivos (arts. 1.036 e seguintes do CPC), mas 'confessou' deixar de fixar honorários de 'acordo com os percentuais legais'.
A "jurisprudência" do Supremo Tribunal Federal citada pelo acórdão não pode servir de fundamento para se afastar a aplicação do entendimento firmado no julgamento do REsp repetitivo pelo Superior Tribunal de Justiça. Primeiro porque se trata tão somente de uma decisão do STF e não de "jurisprudência" da referida corte como citado pelo acórdão. O acórdão citado foi proferido em embargos de declaração em ação cível originária, não possuindo força vinculante por não estar abarcada no rol do disposto no artigo 927 do CPC. Segundo e mais importante é que o julgamento do STF ocorreu em 18.2.22, isto é, antes do julgamento dos REsp repetitivos pelo STJ e da fixação do Tema 1.076, o que se deu em 16.3.22.
O Superior Tribunal de Justiça tem a missão constitucional de outorgar sentido à legislação infraconstitucional federal e reduzir equívocos na interpretação da letra fria da lei, sempre almejando extrair o sentido da norma protegida e consagrada pelo Poder Legislativo 6. Foi o Superior Tribunal de Justiça - como não poderia mesmo deixar de ser - o órgão que, analisando o tema, sedimentou o entendimento segundo o qual a única interpretação possível do art. 85, §§2º, 3º e 8º do CPC é de que a fixação de honorários por equidade não é permitida quando há valor envolvido supostamente considerado elevado. Nesses casos, nos termos do quanto decidido pelo STJ, é obrigatória a observância dos percentuais previstos nos §§2º e 3º do art. 85 do Diploma Processual, somente sendo possível arbitrar honorários por equidade quando não há valor envolvido ou quando for ele inestimável, irrisório ou muito baixo.
Não se pode tolerar fundamentações como a do acórdão do Tribunal de São Paulo referido que, para decidir contrariamente à lei e à tese firmada pela Corte Superior em julgamento sob a sistemática dos repetitivos, utiliza-se de acórdão isolado proferido pelo Supremo Tribunal Federal em momento anterior e no julgamento de embargos de declaração
É lamentável e reprovável a continuidade das decisões contrárias à lei e ao entendimento firmado pela Corte Superior em sede de julgamento repetitivo. O advogado é indispensável à administração da justiça, devendo ser objeto de incansável irresignação através de recursos especiais - cuja relevância deve ser presumida, com fundamento no disposto no art. 105, §3º, V da CF6 -, quando decisões desprestigiarem e negarem a importância do papel da advocacia e de suas verbas honorárias, leia-se, alimentares.
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1 MELLO, Licastro Torres de. Honorários advocatícios: sucumbenciais e por arbitramento. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.
2 CRAMER, Ronaldo. Comentários ao Código de Processo Civil - Volume 1 (arts. 1º a 317). Cassio Scarpinella Bueno [coordenador]. São Paulo: Saraiva, 2017.
3 Entende-se como valor envolvido o montante atribuído à causa, o valor da condenação ou o proveito econômico obtido pela parte vencedora.
4 REsp 1.812.301 e 1.822.171.
5 MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. 3ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
6 Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
§ 3º Haverá a relevância de que trata o § 2º deste artigo nos seguintes casos: (Incluído pela EC nº 125/22)
V - hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante o Superior Tribunal de Justiça (Incluído pela EC nº 125/22)
Flávia Pereira Ribeiro
Pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Doutora e mestre em Processo Civil pela PUC/SP. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP. Membro do IBDP, da ABEP, do CEAPRO e do IASP. Idealizadora da tese da "desjudicialização da execução civil" que é referência ao PL 6.204/2019/SN. Sócia do escritório Flávia Ribeiro Sociedade de Advogados.
César Augusto Costa
Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo; Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Pós-graduado em Direito Imobiliário na Universidade SECOVI/SP; Integrante do 2º grupo de estudos avançados em Processo Civil (GEAP) organizado pela Fundação Arcadas. Advogado no escritório Flávia Ribeiro Sociedade de Advogados.