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Dolo e má-fé na tipologia dos atos de improbidade administrativa da lei 8.249/92

A lei 14.230/21 trouxe mudanças relevantes que já eram defendidas pelos doutrinadores há vários anos no que se refere à tipificação essencialmente dolosa dos atos de improbidade administrativa.

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Atualizado às 14:43

Um tema sempre instigante à minha pessoa, como advogado operador do direito penal, é a defesa técnica no âmbito de uma ação civil de improbidade administrativa.

Em que pese não estarmos na seara criminal stricto sensu, penso que é incontroverso o peso das imputações e as respectivas consequências para aqueles que forem culpáveis e condenados ao final do processo.

A lei 14.230/21 trouxe mudanças relevantes que já eram defendidas pelos doutrinadores há vários anos no que se refere à tipificação essencialmente dolosa dos atos de improbidade administrativa. Senão vejamos:

Art. 1º "O sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa tutelará a probidade na organização do Estado e no exercício de suas funções, como forma de assegurar a integridade do patrimônio público e social, nos termos desta Lei".     

§ 1º "Consideram-se atos de improbidade administrativa as condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, ressalvados tipos previstos em leis especiais".      

§ 2º "Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente".       

§ 3º "O mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa".   

Artigo 10 § "A mera perda patrimonial decorrente da atividade econômica não acarretará improbidade administrativa, salvo se comprovado ato doloso praticado com essa finalidade".     

Artigo 11 § 1º "Nos termos da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, promulgada pelo Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006, somente haverá improbidade administrativa, na aplicação deste artigo, quando for comprovado na conduta funcional do agente público o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade". 

Artigo 11 § 4º "Os atos de improbidade de que trata este artigo exigem lesividade relevante ao bem jurídico tutelado para serem passíveis de sancionamento e independem do reconhecimento da produção de danos ao erário e de enriquecimento ilícito dos agentes públicos".     

O que podemos constatar de forma incontroversa é que o mero vínculo objetivo entre a conduta do agente e o suposto resultado ilícito não é passível de configurar o ato de improbidade. A má-fé não se presume, fazendo-se mister consignar a distinção abissal entre a situação jurídica do particular, do cidadão, do particular e a do agente público. 

Não se pode, então, imputar má-fé ao particular que contrata com a administração em função de ter obtido uma boa e lucrativa negociação, pois é um negócio de natureza privada, contratual, não estando vinculado o particular ao interesse público que limita o agir da administrador.

O particular pode fazer tudo aquilo que desejar e que a lei não proibir expressamente, diversamente do agente público que tem sua atuação nos exatos limites da norma imposta e dos princípios norteadores da Administração Pública.

Imperioso consignar que, data vênia, assim como a Administração Pública possui as suas prerrogativas contratuais, possui também limitações à tão consagrada liberdade para contratar. Limites estes que não afetam a esfera da liberdade contratual do particular nos contratos de natureza privada.

Tomemos como exemplo um contrato de aluguel firmado entre uma pessoa física e uma prefeitura: poderá ser instrumento do tipo firmado pela Administração sob as regras do direito privado, não sendo caracterizado como um contrato administrativo stricto sensu.

A doutrina não diverge sobre a ocorrência de uma "fusão de faculdades heterogêneas" - o poder público (da administração) e o poder dispositivo (do particular) - somente no que se refere ao agente público, pois ao particular é garantida a liberdade contratual. Nos contratos assim disciplinados, somente o administrador público está submetido aos procedimentos de prestar esclarecimentos sobre os motivos de interesse público que decorreram na formalização do contrato.

Neste sentido, faz-se mister consignar que dito entendimento já estava sedimentado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça é de que "para que seja reconhecida a tipificação  da  conduta do réu como incurso nas previsões da Lei de Improbidade  Administrativa, é necessária a demonstração do elemento subjetivo,  consubstanciado  pelo  dolo  para os tipos previstos nos artigos 9º e 11 e, ao menos, pela culpa, nas hipóteses do artigo 10". -  AgInt no AREsp 923004 / MT.

Ao se pensar em imputar um ato de improbidade àquele que celebrou contrato privado com a Administração Pública, deve-se observar, na análise de sua conduta como contratante, a boa-fé objetiva sob os vetores que conduzem tal tipo de negócio jurídico, dentre os quais: a liberdade para contratar, a liberdade para obter vantagem econômica, a vedação de manipulação dolosa que induza a outra parte em erro.

Ora, se o Estado-Acusador não for capaz de consignar nos autos elementos que identifiquem de forma cabal a prática de um ato objetivamente relevante em seu conteúdo subjetivo, não é possível ascender ao "degrau superior" em uma escala de restrição aos direitos do particular, culminando com a aplicação da Lei 8.249/92. Neste sentido, trazemos decisão pedagógica proferida pelo STJ.

"Assim, para a correta fundamentação da condenação por improbidade administrativa, é imprescindível, além da subsunção do fato à norma, para  que se  caracterize a presença do elemento subjetivo. A razão para  tanto é que a Lei de Improbidade Administrativa não visa punir o  inábil,  mas  sim  o  desonesto, o corrupto, aquele desprovido de lealdade e boa-fé". -  AgInt no AREsp 923004 / MT AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL 2016/0134687-0  Ministro HERMAN BENJAMIN.

O silogismo muitas vezes utilizado pela parte que acusa para fazer a grave imputação da prática de atos ímprobos a um indivíduo transcende em muito os razoáveis limites da segurança jurídica.

Sob o ângulo da profundidade cognitiva, para o reconhecimento da ocorrência, ou não, de prática do ato de improbidade bem como de um elemento subjetivo - ainda que genérico -, com todas as vênias necessárias, deve haver elementos comprobatórios robustos o suficiente para legitimar o prosseguimento da ação civil.

Em outras palavras, a ação civil de improbidade administrativa demanda elementos robustos para a sua propositura, não podendo ser iniciada em decorrência de meras conjecturas dos representantes dos interesses do Estado.

A funcionalidade jurídica da má-fé varia ao sabor do intérprete de ocasião, o que em muito dificulta a ação do operador do direito ao aferir se uma determinada situação fática, consubstancia, ou não, um ato de improbidade administrativa.

Nosso Código Civil traz inúmeras referências à má-fé, colocando-a em posição de indiscutível relevância na análise dos efeitos dos atos jurídicos, em especial nas relações obrigacionais e contratuais.

Com todas as vênias, o entendimento predominante na doutrina e jurisprudência é ela é normalmente associada à presença de circunstâncias fáticas e jurídicas que exigiriam a adoção de comportamento diverso. Ao contrário, a boa-fé consubstancia-se no dever de lealdade, na ausência de manipulação ou de omissão de informações que possam influir sobre a formação da vontade da outra parte.

A imposição ao réu de fazer prova de sua inocência, prova que atuou com boa-fé, é a consagração do absurdo inconstitucional de presunção da culpa, inaceitável Estado Democrático de Direito. 

O processo com escopo sancionador, seja na seara civil ou na seara penal, é sempre limitado pelas garantias constitucionais, sendo  dominado pelo princípio da presunção de inocência, da não culpabilidade, impondo à atividade probatória o dever de verificação da existência dos fatos imputados, e não à investigação sobre as escusas apresentadas pelo acusado.

E para essa aferição da presença da culpabilidade, devemos também considerar outros dados de realidade. Afinal, écediço, até mesmo um traço histórico, que o cidadão brasileiro comum tem medo, e com razão, de contratar com o Estado todo-poderoso, ciente das dificuldades administrativas e processuais que terá, em caso de inadimplência, para fazer valer seus direitos.

Essa realidade social, a realidade da relação entre o cidadão e o Estado brasileiro não pode ser negligenciada pelo operador, em especial pelo aplicador do direito.

Como bem exposto no magistério de Alice Gonzalez Borges, "o povo receia muito "brigar com o Estado", com aquela arraigada convicção íntima de que, nessa briga, sempre levará a pior a parte mais fraca".

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1 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA COMO LOCATÁRIA' ; ALICE GONZALEZBORGES" página 77.

Antonio Valença da Silva

Antonio Valença da Silva

Servidor federal aposentado do Ministério da Justiça. Advogado atuante na seara do direito empresarial e direito penal econômico.

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