O voto como promotor da paz
Mesmo quando o diálogo cessa, no poder racional e/ou emocional de cada um, o voto continua a comunicar, irradiando a liberdade de pensamento, e dando asas iniciais aos anseios cívicos.
terça-feira, 6 de setembro de 2022
Atualizado às 08:30
O ato de votar é qualificado por muitas pessoas como inútil ante a pouca relação que pode ter com o resultado das eleições, ou com o compromisso com os eleitos, além de o atual formato de campanha eleitoral não favorecer o engajamento. A crescente abstenção nas eleições revela o desprezo de tantos cidadãos pelo voto1.
Diante desse cenário, a saúde da democracia requer um esforço social e institucional para a educação ao exercício do sufrágio. Foram necessárias longas lutas para alcançar sua universalidade, para logo em seguida relegá-lo à indiferença.
Outro dia, já escrevi sobre como o desinteresse político pode levar à sensação de não pertencimento, fragilizando a solidariedade2. Agora, gostaria de destacar outro aspecto do voto, na tentativa de refletir sobre sua importância. Muitas vertentes são exploráveis e uma delas se relaciona a seu poder de emancipação e pacificação.
Os estudos sobre a democracia deliberativa têm crescido ao mesmo tempo em que a intolerância ascende em debates públicos, e se constata que a política é uma realidade tingida de emoção3. A democracia deliberativa conclama por mais espaços de reflexão sobre a política, arquitetados pela razão discursiva, e pela troca de ideias entre os que serão afetados por uma decisão.4
Todavia, em diversos ambientes, as discussões políticas tanto envolvem manipulações e má-fé no uso da razão, como também, às vezes, a razão é abandonada. Além disso, é necessário respeitar o desejo dos envolvidos de não quererem negociar certos aspectos de seu pensamento. Há momentos do debate em que cada um, mesmo depois de trocas de ideias, chega a sua opção sobre que causas apoiar. Tentar ultrapassar esse limite, permanecendo na exposição de pontos de vista, tanto pode ser uma perda de tempo argumentativa, como uma agressão à individualidade intelectual do outro.
Essa percepção do caráter emotivo da política não necessariamente invalida a teoria da democracia deliberativa. As instituições devem se fortalecer no caminho do diálogo racional e justificado, mas dentro de uma visão plena das complexidades e paradoxos humanos. Razão e emoção convivem no indivíduo e na política. Reconhecer os limites da razão é também importante para valorizá-la e saber como melhor empregá-la. O silêncio, muitas vezes, é o melhor caminho para realizar a tolerância, respeitando as ideias alheias e, ao mesmo tempo, fazendo valer o próprio pensamento.
A forma mais vibrante de viver esse silêncio é através do voto. Nesse momento de sigilo, diante da tela e do teclado da urna, apesar de todos os debates, apesar de todas as promessas, o cidadão é soberano para fazer valer a sua vontade. O voto é o divisor da individualidade na arena pública, em sua dupla função de realização da intimidade e da sociabilidade, e se concretiza como voz ao mesmo tempo audível, computável, mas silenciosa de cada um nas urnas. Não precisa de convencimento ou de justificativa para se fazer valer. Mesmo quando o diálogo cessa, no poder racional e/ou emocional de cada um, o voto continua a comunicar, irradiando a liberdade de pensamento, e dando asas iniciais aos anseios cívicos. Com isso, vivenciando o momento do dia da eleição, não apenas o eleitor se fortalece no seu poder, como se educa para a cultura da tolerância.
1 https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/11/30/especialistas-analisam-abstencao-recorde-nas-eleicoes-de-2020
2 https://www.migalhas.com.br/depeso/368661/algumas-reflexoes-sobre-apatia-e-engajamento-civico
3 MOUFFE, Chantal. Por um modelo agonístico de democracia. Rev. Sociol. Polít. Curitiba, v. 25, 2006, p.165-175.
4 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia. Entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 1.
Raquel Cavalcanti Ramos Machado
Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil.