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Uma breve trajetória da interlocução entre o Direito Penal tributário e a seara fiscal administrativa

A trajetória de interpretação e aplicação dos principais institutos jurídicos da lei 8.137 de 1990 revela uma interlocução cada vez mais sólida entre o Direito Penal tributário e o interesse arrecadatório do Estado.

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Atualizado em 31 de agosto de 2022 14:15

Especialmente nos últimos trinta anos, reflexões e questionamentos que emanam de uma instabilidade econômica que não aflige só nossas casas, mas também aparatos governamentais ao longo de todo o globo, tem aflorado no Direito Penal tributário. A trajetória da interpretação e aplicação dos principais institutos jurídicos da lei 8.137/90, diploma criminalizador de condutas que atentam contra a ordem tributária, revela as influências de fatores econômicos no campo legislativo penal e, por vias de consequência, uma interlocução cada vez mais sólida entre o Direito Penal tributário e o interesse arrecadatório do Estado.

Apesar da notável vinculação jurídica que mantém entre si, o processo administrativo fiscal e o processo penal possuem naturezas completamente distintas. O procedimento fiscal versa sobre um crédito tributário devido aos cofres públicos, enquanto, noutro giro, um processo judicial pela prática de crimes contra a ordem tributária pressupõe a supressão ou redução do pagamento do tributo mediante condutas de natureza fraudulenta, previstas no art. 1º da aludida lei.

A lei 8.137 primeiro expressou a função arrecadatória dos crimes tributários quando previu, em seu revogado art. 14, a perda do direito de punir do Estado, chamada extinção da punibilidade do agente, em caso de "pagamento de tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia". Aos olhos de muitos penalistas, a utilização do processo penal como forma de garantir o adimplemento integral do débito fiscal contempla uma velha tendência brasileira de se manusear da seara penal para solucionar problemáticas que não fariam jus a sua natureza de ultima ratio.

Na ótica da dogmática mais tradicional, o Direito Penal, enquanto instrumento de tutela dos bens jurídicos mais caros à sociedade, não deveria se servir de seu viés punitivo para influenciar o pagamento de tributos. Contudo, na contramão desse entendimento, em 1995, o art. 34 da lei 9.249 renovou a vigência da extinção da punibilidade pelo pagamento integral do débito tributário. A partir daí, a discussão em torno da razoabilidade do processo penal enquanto forma de promover, acima de qualquer imposição de pena, a arrecadação financeira aos cofres públicos, sedimentou-se no cenário jurídico brasileiro.

Apesar da demora no posicionamento dos tribunais brasileiros, fenômenos de ordem econômica, política e social, como crises econômicas mundiais, foram imprescindíveis a uma nova formatação internacional do tratamento jurídico da questão. O maior exemplo é a crise mundial de 2008, pior crise econômica vivenciada pelos países ocidentais desde a Grande Depressão. O impacto negativo da crise alimentou um movimento internacional de criação de mecanismos legais para regularização de débitos e de bens mantidos por cidadãos no exterior como forma de preservar o poder econômico das populações.

Além do mais, foi criada a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), organização internacional cujos países membros visam promover o progresso econômico por meio de políticas fiscais que se baseiam em informações coletadas através do compartilhamento de dados fiscais e bancários entre nações.

Ao seguir as novas tendências mundiais de maior facilitação à regularidade fiscal da população, o Brasil, de modo idêntico a outros países, passou a incorrer em fenômeno praticamente inevitável de uma interdependência cada vez maior entre o procedimento administrativo e o processo penal. O necessário esgotamento da seara administrativa como condição para a promoção de ação penal por crime tributário passou a fazer parte da realidade jurídica brasileira, o que, não obstante o descontentamento de alguns juristas, deixou escrachado o viés arrecadatório do Direito Penal econômico em seus moldes atuais.

Pode-se alocar como marco definitivo da interdependência entre as instâncias o julgamento do Habeas Corpus 81.611-D pelo Supremo Tribunal Federal, leading case que levou à criação da Súmula Vinculante 24, que sedimentou o lançamento definitivo do débito tributário em seara administrativa como condição à existência do crime contra a ordem tributária. Em outras palavras, se existe dúvida da exigibilidade de um débito tributário, não há falar em crime, quiçá em ação penal.

Na mesma senda, em março desse ano, o STF fixou entendimento de que a própria apuração do crime de natureza tributária se submete ao esgotamento do procedimento fiscal. Ao julgar improcedente a ADIN 4.980, que se insurgiu contra o art. 83 da lei 9430/90, o STF entendeu como uma opção do legislador que, apenas após a exigência fiscal do debito tributário, a representação fiscal para fins penais, documento produzido pela Receita Federal que enseja a apuração de crimes tributários, fosse encaminhada ao Ministério Público para fins de investigação.

A própria extinção de punibilidade pelo pagamento integral do tributo, instituto que primeiro provocou as reflexões em contemplo e, em 1995, era aplicável apenas antes do recebimento da denúncia, ampliou consideravelmente seu grau de alcance ao longo dos anos subsequentes. Em 2003, sobreveio a lei 10.684, que se fez silenciosa ante a previsão de qualquer marco limite para a extinção da punibilidade pelo adimplemento integral do debito fiscal. Assim, ao julgar o Habeas Corpus 81.929, o STF entendeu pela perda do direito punitivo do Estado quando do adimplemento tributário mesmo depois do recebimento da denúncia. Posteriormente, o pagamento integral do debito como fundamento da extinção da punibilidade passou a ser admitido até mesmo após o trânsito em julgado da ação penal e em fase de execução fiscal.

Em 2013, no julgamento do AP 516-DF-ED pelo STF, o ministro Dias Toffoli consignou que, novamente diante de uma opção do legislador, o instituto assume caráter de política criminal ao priorizar a arrecadação financeira em detrimento da execução de pena em face de tantos brasileiros que cometem crimes contra a ordem tributária, em especial a sonegação de tributos.

Independente dos vieses de análise, ao se oportunizar cada vez mais o retorno de tributos sonegados e/ou apropriados aos cofres estatais por meio da interlocução com o procedimento fiscal, o Direito Penal tributário passa a ostentar notáveis particularidades e distinções diante dos demais crimes tipificados à luz da dogmática clássica.

Em última instância, esse novo formato do tipo penal tributário, reconhecido pela técnica como norma penal em branco, isto é, que depende da complementação de normas oriundas de outras esferas para existir, caracteriza um Direito Penal que serve aos interesses econômicos e financeiros e, portanto, que busca, cada vez mais, fomentar políticas públicas arrecadatórias.

Esse novo formato sobreposição entre o Direito Penal e o Direito administrativo/tributário representa, em última análise, a resposta do campo jurídico às mudanças econômicas inerentes a um mundo globalizado que, por sua vez, tanto afligem nossa sociedade nos últimos anos.

Maria Emilia Cardella Amaral

Maria Emilia Cardella Amaral

Advogada no escritório Cardella Advogados e especialista em crimes econômicos. É pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal.

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