MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Segredo e know-how

Segredo e know-how

O dito know-how, savoir-faire e suas variações idiomáticas, deflagra um bem jurídico(-econômico) a revestir a informação - de caráter técnico-comercial (trade) - de um valor negocial.

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Atualizado em 20 de julho de 2023 12:51

[Segredo e confidência]

O ato de segredo - manietado à revelação, crença e fé1  - e o exercício da confidência florescem mistérios2 e sacramentos. Em tempo, "há coisas verdadeiras que não se vê... Não é ficção o que não se vê ou o que não se pode apreender pela ciência, mas sim o que não é, o falso."3

Observa-se na teologia católica apostólica-romana que a verdade é conhecida pelo homem (rectius, pela pessoa humana) por intermédio da graça, a qual envereda segredos divinos:

"O conhecimento da verdade é duplo: aquele que vem da natureza e outro que vem da graça. O conhecimento que vem da graça é igualmente duplo: o primeiro é puramente especulativo, como quando os segredos Divinos são transmitidos a um indivíduo; o outro é eficaz e produz amor a Deus; cujo conhecimento apropriadamente pertence ao dom da sabedoria."4

Também a confidência, à figura divina, em oração e reza in secreto, "em vez de rezar aos gritos" , é forma de testemunho de fé:

"Todavia, perguntemo-nos que proveito tem isso, por qual motivo devemos antes rezar em segredo em vez de rezar aos gritos. Ouve. Tomemos um exemplo do costume dos homens. Se pedes a alguém que logo ouve, não crês seja necessário gritar, mas pedes em voz baixa. Se pedes a um surdo, não começas a gritar, para que ele te possa ouvir? Portanto, aquele que grita, pensa que Deus só pode ouvi-lo se gritar, e ao pedir a ele, rebaixa o seu poder. Contudo, aquele que reza em silêncio, testemunha sua fé e reconhece que Deus perscruta o coração e os rins, e que ele ouve a tua oração, antes que ela saia de tua boca."6

[Segredo de indústria/empresa/comércio, know-how e informação]

O valor social e econômico (a influir no direito) de um segredo cuja informação seja lícita metamorfoseou-se com o transcurso do tempo . Já na seara comercialista, Thomas Hoeren noticia que "os casos de sigilo [Geheimhaltung] economicamente motivados [wirtschaftlich motivierter] podem ser datados desde tempos pré-cristãos. Como exemplo de espionagem econômica precoce [frühen Wirtschaftsspionage], os fenícios, em particular, teriam roubado um processo secreto de fabrico de vidro dos egípcios."8

Refletindo sobre o sistema privativista, Ugo Ruffolo leciona percucientemente sobre a significação do instituto do segredo para o diritto privato, com a convivência das noções penalistas usuais:

"O segredo, uma questão fascinante e complexa, representa não uma figura, mas um problema para o civilista. Problema que por vezes encontra soluções heterogêneas, implica a utilização de figuras e institutos díspares, e para o qual nem sempre é fácil traçar certos limites no que diz respeito aos campos que lhe são adjacentes. De fato, uma noção unitária de segredo não é fornecida por lei, nem é fácil de construir; enquanto que no âmbito da interpretação sistemática, a noção civil do segredo oscila entre a sua configuração como uma espécie de bem intangível sujeito ao diritto assoluto (nem sempre distinguindo-se claramente entre o direito ao segredo e os direitos sobre os suportes materiais que lhe dizem respeito), e a do mesmo como objeto de um dever legal de não divulgação ou não utilização."9

O autor prossegue debatendo fundamentos para uma "tentativa de construção unitária" à referida significação do instituto:

"Embora uma análise etimológica se revele particularmente útil, vale a pena partir do significado que o termo segredo assume na linguagem cotidiana, onde, usado como substantivo ou adjetivo, se refere principalmente a uma situação particular, na qual uma determinada informação é conhecida apenas por uma única pessoa (ou um pequeno círculo de pessoas) interessada em excluir outros desse conhecimento (interessada, ou seja, em manter essa dada situação de fato). E é precisamente a existência deste pressuposto factual que é considerado como o primeiro dos elementos necessários, embora não suficiente em si mesmo, para a configurabilidade de um segredo juridicamente relevante. A não-notoriedade da informação é assim geralmente tomada como o limite lógico-natural do segredo, embora alguns vejam nela um elemento de avaliação jurídica desfavorável do interesse pelo silêncio de outros."

O dito know-how, savoir-faire e suas variações idiomáticas10, deflagra um bem jurídico(-econômico) a revestir a informação - de caráter técnico-comercial (trade) - de um valor negocial. Se secreto (secret; e o segredo bem pode ser entendido como adjetivo condicionante da informação), exclusivo, tende a ser avaliado em expressivas quantias de pecúnia. Num contexto11 em que "as concentrações industriais e o agrupamento de capitais constituem necessidade imperiosa"12, e em que, historicamente, também se afirma que "o princípio orientador do desenvolvimento das relações mercantis, como de todas as relações humanas, é o da boa-fé"13, o segredo e o know-how assumem um alentado papel.

Nesta toada, "a apropriação indébita [misappropriation] de um segredo comercial não pode ser nada menos do que a destruição do segredo e, portanto, a destruição do valor."14

Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery Júnior, referenciando Jean-Jacques Burst, apontam que "nem todo know-how constitui segredo de empresa ou segredo industrial, mas todo segredo de negócio (de empresa) guarda, sem dúvida, uma fatia de know-how. Ambos - segredo do negócio e segredo industrial - são espécies do gênero know-how."15

Também há a incidência e aplicação das normas de direito internacional, a exemplo do tratado-contrato  TRIPS, para o balizamento da dogmática do trade secret/know-how:15

"A noção de informação não divulgada [undisclosed information] é entendida de forma ampla, como qualquer informação desenvolvida, ou aprendida por acidente, composta de fatos isolados ou conjuntos complexos de dados; também o conhecimento negativo é coberto pela definição. Além disso, [...], as ideias podem ser protegidas como informações não divulgadas. Sendo o TRIPS um acordo relacionado ao comércio, a proteção nele resguardada diz respeito, em primeiro lugar, às informações relacionadas à atividade comercial, seja de natureza técnica, comercial, administrativa ou financeira. No entanto, não se restringe a um contexto puramente empresarial. As informações também podem estar relacionadas às atividades de organizações sem fins lucrativos ou de caridade. É protegida desde que esteja relacionado a qualquer tipo de competição econômica."17

Para a empresa18- o agente econômico pessoa jurídica - cujo patrimônio "é um meio para o desenvolvimento da atividade do ente"19, sendo os bens econômicos "instrumentos [...] para a consecução dos fins para os quais tendem"20 , o "mistério" acerca de informações técnicas-tecnológicas e a "confidência" a players competentes (com o equilíbrio dos mecanismos propagados pela inovação aberta, se assim for de interesse), proporcionam um amparo bastante interessante.

----------------------- 

1 "Fé (fides), etimologicamente, é confiança em alguém, fidelidade, lealdade, crença, convicção, autoridade, crédito. Em lógica, fé é adesão intelectual à assertiva alheia." (Amadei. A fé pública nas notas e nos registros. In: Yoshida/Figueiredo/Amadei. Direito notarial e registral avançado. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2014. ebook.) 

2 "[...], a luz dos mistérios penetra melhor naqueles que nada esperam do que se alguma explicação os tivesse precedido." (Santo Ambrósio de Milão. Sobre os mistérios (Coleção Patrística). São Paulo: Editora Paulus, 2014. ebook. Tradução por Célia Fernandes da Silva)

3 Amadei. op. cit; "Portanto, não creias somente nos olhos do teu corpo: vê-se mais o que não se vê, porque este é temporal, aquele é eterno. Vê-se mais aquilo que não é captado pelos olhos, mas que o espírito e a mente discernirem." (Santo Ambrósio de Milão. op. cit.)

4 Santo Tomás de Aquino. Suma Teológica. Prima pars, q. 64 a. 1 co. (De poena daemonum). ebook. Tradução por Isabelly Roquim.

5 Santo Ambrósio de Milão. Sobre os sacramentos - VI Livro (Coleção Patrística). São Paulo: Editora Paulus, 2014. ebook. Tradução por Célia Fernandes da Silva.

6 Santo Ambrósio de Milão. op. cit.

7 "Que é tempo? Essa pergunta fundamental desafia o gênio dos filósofos desde o nascimento da ancilla scientiarum e, ainda hoje, está longe de ser respondida. Não há uma acepção única do termo, sendo mesmo de se perceber que sua conceituação depende fundamentalmente da postura filosófica do conceituador." (Simão. Prescrição & decadência. São Paulo: edição do autor, 2020. ebook.)

8 Hoeren/Münker (eds.). GeschGehG. Berlim, Boston: De Gruyter. 2021. ebook. [Abschnitt 1 - Allgemeines; Vorbemerkungen zu §§ 1 bis 2; A. Einleitung] [tradução livre]

9 Ruffolo. Segreto (diritto privato). In: Organizador. Enciclopedia del diritto. Milão: Giuffrè Francis Lefebvre, 1989. p. 1015 [Volume XLI] [tradução livre]

10 "É, aliás, essa estreita relação existente entre as palavras e as coisas que podia deixar M. Heidegger dizer: 'O mais perigoso de todos os bens, a linguagem, foi dado ao homem [...] para que ele comprove o que ele é.'" (Maffesoli. A ordem das coisas. Rio de Janeiro: GEN Forense Universitária, 2016. p. 133). Interessante também é a observação do advogado italiano Alberto Camusso: "A expressão 'know-how', que sem dúvida pode-se considerar consagrada há algumas décadas na prática do direito industrial e comercial internacional, ainda hoje não apresenta uma tradução literal em italiano, embora há muito tempo tenha encontrado a plena cidadania jurídica em nosso sistema jurídico graças à intervenção do legislador comunitário. [nota de rodapé do texto: Em verdade, a tradução literal de "saper (come) fare" é praticamente inutilizada, pelo menos no contexto jurídico, e a razão disso não é compreendida: ela explica melhor a natureza do fenômeno do que outras expressões mais complexas.]" (Bona/Camusso/Oliva/Vercelli. La tutela del know-how. Milão: Giuffrè Francis Lefebvre, 2012. p. 8 [tradução livre])

11 "Consideráveis desenvolvimentos tem tido o direito comercial na última centúria. [...]. O direito comercial disciplina atos de comércio e comerciantes, dissemos. Mas os conceitos de comércio em sentido jurídico e de atos jurídico-comerciais não coincidem com os correspondentes conceitos económicos." (Coutinho de Abreu. Curso de direito comercial. Coimbra: Almedina, 2019. p. 29, 32 [Volume I])

12 Carvalho de Mendonça. Tratado de direito comercial brasileiro. Campinas: Bookseller, 2000. p. 350. [Volume I]

13  Ferreira. Tratado de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1962. p. 239 [Volume VII]. Inclusive, Teresa Ocaño aponta, dentre uma crítica às "justificações problemáticas subjacentes à proteção por trade secrets", os "argumentos deontológicos": "Uma das teorias mais amplamente aceitas subjacentes à legislação sobre segredos comerciais é que ela é necessária para manter 'o padrão de ética comercial'. Este argumento decorre de um princípio moral geral segundo o qual 'colher sem semear' é injusto." (Ocaño. The notion of secrecy. Baden-Baden: Nomos, 2019. p. 33 [tradução livre])

14  Parr. Intellectual property. Nova Jérsei: John Wiley & Sons, 2018. ebook. [tradução livre]

15 Nery/Nery Júnior. Instituições de direito civil. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2019. ebook. [Volume II].

16 A respeito do entendimento jurisprudencial sobre TRIPS enquanto tratado-contrato (fora da questão do trade secret), vale a pena conferir a sustentação oral do patrono da ABIFINA, na condição de amicus curiae, no julgamento do REsp 1869959. (Segunda Seção - STJ - 23/02/2022, Youtube, 2020. 4:40:57-4:41:55)

17 Kolasa. Trade secrets and employee mobility. Cambridge: Cambridge University Press, 2018. p. 38 [tradução livre]

18  E os laboratórios de pesquisa, as universidades etc., que apresentam configurações patrimoniais evidentemente distintas das de uma empresa.

19 Ferrara. Teoría de las personas jurídicas. Granada: Comares, 2006. p. 300. Tradução do italiano para o espanhol por Eduardo Maury; tradução livre para o português.

20 Ferrara. op. cit. loc. cit.

Otávio Henrique Baumgarten Arrabal

Otávio Henrique Baumgarten Arrabal

Advogado. Bacharel em Direito pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB).

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca