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Indisciplina de usuários diante da medicina aeroespacial

A segurança é um elemento soberano, inegociável e inatacável e, por esta razão, passageiros, quando pacientes, serão sempre pacientes em primeiro lugar.

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Atualizado às 08:02

Passageiros e pacientes são palavras completamente opostas. Enquanto a primeira denota aquilo que flui, que se movimenta e que é transitivo; a segunda, em total dissonância, faz alusão àquilo que aguarda, que se mantém inerte e impassível.

A construção semântica de ambas as palavras poderia até mesmo guardar uma correlação poética com um passado clássico quando pacientes, que não tinham acesso a medicina avançada que se tem na atualidade, aguardavam pacientemente a oportunidade de viajarem pelas libertadoras águas do rio Estige, da mitologia grega.

Essa paciência, contudo, se um dia existiu, infelizmente não tem sido vista no dia a dia das companhias aéreas. Isso porque, certos pacientes, que deveriam respeitar as condições médicas prescritas e previstas nos regulamentos da aviação para poderem usufruir de seus direitos como passageiros com toda segurança e comodidade, deixam de fazê-lo.

Como é sabido, a resolução 280 da ANAC, em seu art. 10, prevê a faculdade de que as companhias aéreas solicitem, in verbis:

 "Formulário de Informações Médicas (MEDIF) ou outro documento médico com informações sobre as condições de saúde do PNAE que:

I - necessite viajar em maca ou incubadora;

II - necessite utilizar oxigênio ou outro equipamento médico; ou

III - apresente condições de saúde que possa resultar em risco para si ou para os demais passageiros ou necessidade de atenção médica extraordinária no caso de realização de viagem aérea"

Em outras palavras, todos os passageiros que necessitem viajar em maca, incubadora,  de suplementação de oxigênio, equipamentos médicos, atenção médica ou que apresentem qualquer tipo de condição de saúde que possa representar risco para si ou para os demais passageiros, podem ser requisitados a enviar para a companhia aérea um formulário com informações médicas chamado de MEDIF (Medical Information Form).

Por meio do MEDIF, médicos especialistas em medicina aeroespacial, que trabalham junto das companhias aéreas, terão um informe detalhado do quadro clínico dos pretensos passageiros, decidindo se esses usuários têm, ou não, condições de realizarem as suas viagens.

Frise-se, aqui, que esses profissionais são médicos especializados na análise e na compreensão dos processos fisiológicos e biológicos que ocorrem no corpo humano, quando estes são expostos ao ambiente de cabines pressurizadas de aeronaves civis.

Importante destacar o desconhecimento destas regras por alguns usuários dos serviços aéreos e dos próprios aplicadores da lei sobre a importância de tais análises. E, nesse sentido, verifica-se a cada vez mais inúmeros passageiros que se recusam a enviar os formulários médicos para as companhias aéreas, taxando-os como documentos dispensáveis, burocráticos e acusando as companhias aéreas de serem preconceituosas, por supostamente impedirem que seus clientes realizem os voos que tanto almejam.

O resultado desse cenário, por óbvio, é um só, a Judicialização.

E por mais que o Poder Judiciário possa reconhecer eventual excesso de companhias aéreas na solicitação de formulários médicos como sendo condição sine qua non para que determinados passageiros realizem os seus voos, inexiste na aviação civil qualquer possibilidade de que tais análises deixem de ser realizadas já que isso poderia colocar em risco a saúde de seus clientes.

Como sabemos, a segurança dos passageiros da aviação civil é um tema soberano e não comporta exceções e, antes que uma companhia aérea se comprometa a transportar um cliente de um ponto A até um ponto B, em determinada data e horário, obriga-se ela a fazer isso garantindo a saúde e incolumidade de todos os seus usuários.

E isso tem razão de ser.

Por mais que em algum momento histórico a sociedade tenha se adaptado ao conforto de uma viagem aérea, preocupando-se somente com a pontualidade de um voo ou com a possibilidade de que seja servido alguma refeição a bordo, deve-se ter em mente que um avião não oferece as mesmas condições físicas e atmosféricas de um ambiente natural.

Por mais que a aviação tenha evoluído e continue a evoluir, a maioria das cabines das aeronaves ainda são ambientes pressurizados, áridos e com disponibilidade de oxigênio inferior àquela experimentada pelos seres humanos em solo.

Em verdade, por padrão e já em voo de cruzeiro, os aviões são pressurizados em média com uma atmosfera equivalente àquela experimentada em um ambiente situado a 2.000 metros de altitude e com humidade relativa do ar em cerca de 20%. A título comparativo à montanha mais alta da Europa, o Mont Blanc, tem o seu cume localizado a uma altitude de aproximadamente 4.800 metros; enquanto o deserto do Saara, localizado na África, registra uma humidade relativa do ar de em média 17%.

Nesse sentido, na altitude de cabine, os passageiros que não detenham condições de saúde especiais atingem uma saturação de oxigênio (SPO2) próxima a 90%, um valor razoável e não arriscado dada a expectativa de que não haverá, a bordo de uma aeronave, qualquer atividade física que requisite esforço cardiovascular intenso.

De antemão, acalentando eventuais desconfortos ou receios que as informações acima possam originar, é necessário frisar que tal ambiente não é nocivo para a saúde humana, afinal, tripulantes técnicos e comerciais passam a maior parte de suas vidas laborais em tais ambientes sem que isso represente qualquer risco ou danos as suas saúdes.

Contudo, quando passageiros  apresentam necessidades especiais ou quadros de saúde com restrições, é necessário que  tais quadros sejam criteriosamente estudados pelos médicos especialistas das companhias aéreas, pois estes  são os profissionais que terão a capacidade técnica e médica de avaliar se eventuais condições poderão, ou não, se agravar durante o voo.

Desse modo, a requisição de formulários médicos por parte de companhias aéreas não pode ser entendida como um procedimento burocrático, muito menos uma atitude preconceituosa, mas sim como o correto exercício de sua função: garantir o transporte seguro de todos seus passageiros.

Todavia, e como já mencionamos, a compreensão da necessidade e a importância de tais análises já está tão maculada, que transbordam hoje eventos com passageiros que tentam a todo custo evitar o cumprimento de tal regramento e que acabam por negligenciar suas próprias condições de saúde ou a saúde daqueles que lhes são mais caros.

A mero título exemplificativo, um dos autores desse artigo foi recentemente surpreendido com a solicitação do embarque de uma criança, portadora do espectro autista, que fazia uso de cadeira de rodas, aparelho de respiração e que possuía em seu laudo médico - apresentado somente no momento do check-in cerca de quatro comorbidades respiratórias.

A criança viajava com sua mãe, que ao ser cientificada da necessidade do envio do MEDIF, demonstrou-se totalmente descontente, acusando a companhia aérea de atitude preconceituosa e sinalizando que para evitar o envio da documentação, ela renunciaria ao respirador do menor, forçando indiretamente a criança realizar o voo sem a utilização de seus equipamentos médicos.

O seu embarque, por óbvio, foi negado até que houvesse uma avaliação médica por parte da Companhia. Contudo, esse caso e outros semelhantes, demonstram e reforçam o desconhecimento por parte dos usuários da aviação civil de todos os vieses técnicos que precisam ser cumpridos para que o transporte de seus passageiros possa ser realizado em total segurança.

Nesse sentido, esse mesmo desconhecimento ocorre no Poder Judiciário, que acaba por condenar companhias aéreas ao pagamento de danos morais e materiais pela quebra da expectativa de viagem, bem como membros do Ministério Público e de PROCONs, que questionam e investigam as companhias aéreas por eventuais atitudes discriminatórias.

Na aviação civil, a segurança é um elemento soberano, inegociável e inatacável e, por esta razão, passageiros, quando pacientes, serão sempre pacientes em primeiro lugar.

Thomaz Henrique Jodjahn Siegrist

Thomaz Henrique Jodjahn Siegrist

Consultor jurídico da Latam Airlines Group.

Jayme Barbosa Lima Netto

Jayme Barbosa Lima Netto

Advogado e Sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA) e mestrando em Direito dos Negócios na Fundação Getúlio Vargas.

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