A denunciação da lide e a fixação do ônus sucumbencial na ação incidental extinta sem resolução do mérito
O atual Código de Processo Civil alterou a denunciação da lide, buscando compatibilizar o texto legal ao entendimento jurisprudencial, mas deixou essa modalidade de intervenção de terceiro menos atrativa às partes.
quarta-feira, 24 de agosto de 2022
Atualizado às 08:36
Uma das modalidades de intervenção de terceiro é a denunciação da lide, em que denunciante e denunciado formam uma demanda incidental. Esse instituto tem por objetivo a celeridade processual, vez que o parte pode denunciar da lide para requerer que, concomitantemente ao julgamento da ação principal, seja julgada também a incidental referente ao direito de regresso. Deste modo, o denunciante não precisa aguardar o final do processo principal para, somente após, buscar a responsabilização do denunciado por meio de uma demanda autônoma.
A denunciação da lide não é um instituto que surgiu com o Código de Processo Civil de 2015. Ela já era prevista no Código de Processo Civil de 1973, ainda que alguns aspectos se diferenciassem. Na legislação processual anterior, a intervenção estava disciplinada nos arts. 70 à 76, com cabimento nas seguintes hipóteses:
Art. 70. A denunciação da lide é obrigatória:
I - ao alienante, na ação em que terceiro reivindica a coisa, cujo domínio foi transferido à parte, a fim de que esta possa exercer o direito que da evicção Ihe resulta;
II - ao proprietário ou ao possuidor indireto quando, por força de obrigação ou direito, em casos como o do usufrutuário, do credor pignoratício, do locatário, o réu, citado em nome próprio, exerça a posse direta da coisa demandada;
III - àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda.
Por meio do dispositivo transcrito, em um primeiro momento, entendia-se que a parte tinha a obrigatoriedade de realizar a denunciação da lide, de modo que, caso não o fizesse, ela perderia o direito de regresso por meio de ação autônoma. Todavia, interpretando-se a obrigatoriedade mencionada no art. 70, do Código de Processo Civil, dois eram os entendimentos adotados. Nos moldes do primeiro entendimento, a obrigatoriedade da denunciação da lide apenas acarretava na perda das vantagens processuais dela decorrentes, de acordo com Carneiro (1983, p. 67)1:
Devo editar que, nos casos do art. 70, III, a obrigatoriedade da denunciação da lide, merece interpretação restritiva; não exercitada a denunciação, a parte perderá apenas as vantagens processuais dela decorrentes, mas não perde a pretensão de direito material; portanto, a ação regressiva poderá ser ajuizada posteriormente, em processo autônomo. (...)
Noutro viés, de forma majoritária, entendia-se que a obrigatoriedade da denunciação da lide somente se aplicaria à hipótese do inciso I do art. 70, do Código de Processo Civil. Isto porque o art. 456, do Código Civil, dispunha que o exercício dos direitos decorrentes da evicção dependeria da imediata notificação do evicto sobre a existência do litígio.
Assim, com o intuito de encerrar qualquer discussão quanto ao tema, o art. 125, do Código de Processo Civil de 2015, passou a prever que a denunciação da lide é "admissível", ou seja, possível e não obrigatória. Em vista disso, segundo as atuais disposições da denunciação da lide, Didier Júnior (2015, p. 491-493)2 a classifica como uma demanda incidente, regressiva, eventual e antecipada: incidente porque trata-se de um nova demanda formada em um processo que já existe; regressiva porque a nova demanda objetiva o ressarcimento do denunciante em eventual condenação na demanda principal; eventual porque a demanda incidental somente será apreciada se o denunciante sofrer alguma condenação na demanda principal; antecipada porque o denunciante a propõe antes mesmo de ser condenado.
Diante disso, uma vez realizada a denunciação, surgirão duas demandas que serão processadas e julgadas conjuntamente. Destaca-se que a incidental somente será analisada e julgada se a ação principal for julgada em desfavor do denunciante, conforme dispõe o art. 129, caput, do Código de Processo Civil. No entanto, se a demanda principal for julgada à favor do denunciante, o art. 129, parágrafo único, do Código de Processo Civil, assim prevê:
Art. 129. (...)
Parágrafo único. Se o denunciante for vencedor, a ação de denunciação não terá o seu pedido examinado, sem prejuízo da condenação do denunciante ao pagamento das verbas de sucumbência em favor do denunciado.
Portanto, dada a expressa previsão legal, o processo incidente será julgado sem resolução do mérito quando o resultado da demanda principal for favorável ao denunciante, razão pela qual este será condenado ao pagamento das verbas sucumbenciais ao denunciado. A opção do legislador por responsabilizar o denunciante pelos encargos decorrentes do julgamento sem resolução do mérito da demanda incidental decorre da facultatividade da denunciação da lide, de modo que, aplicando-se o "(...) princípio da causalidade, tem-se que aquele que deu causa à instauração do processo deve arcar com as despesas dele decorrentes", nos termos do que discorre Souza Netto (2012, p. 432)[3]. Assim sendo, inexistente relação de direito material entre o adversário do denunciante e o denunciado, apenas o denunciante poderia ser responsabilizado por ter dado causa à denunciação.
Neste sentido, ainda na vigência do Código de Processo Civil de 1973, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça assim se posicionava:
PROCESSUAL CIVIL. DENUNCIAÇÃO DA LIDE. ENCARGOS DA SUCUMBÊNCIA. DENUNCIAÇÃO FACULTATIVA. RESPONSABILIDADE DO DENUNCIANTE. 1. Nas hipóteses de denunciação facultativa em que o réu se antecipa e instaura a lide secundária sem a solução da principal ele deverá arcar com os encargos sucumbenciais, porquanto ajuizou a ação incidental, por ato voluntário, visto que não teria nenhum prejuízo em aguardar o trânsito em julgado da lide proposta contra ele para se fosse o caso promover a ação regressiva contra o terceiro. 2. Recurso especial improvido.
(STJ, REsp nº 258.335/SE, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, DJ: 14/12/2004, DP: 21/03/2005).
De modo elucidativo, o voto do Relator Ministro Castro Meira explicou cada uma das três correntes que se formavam quanto à fixação dos honorários advocatícios no caso de extinção da denunciação da lide sem resolução do mérito.
Para a primeira corrente, a lide incidental era independente da principal, de forma que qualquer que fosse o resultado desta, o denunciante sempre responderia pelos ônus sucumbenciais. Já para a segunda corrente, a fixação dos honorários sucumbenciais, ainda que a demanda principal tenha sido favorável ao denunciante, dependeria da análise da suposta procedência ou improcedência da denunciação da lide, segundo fundamentação do Ministro Castro Meira:
Já a segunda corrente, adotada pelo aresto hostilizado, defende a necessidade do prosseguimento, em tese, na resolução da denunciação como se o pedido principal tivesse sido acolhido. Verificando-se que a denunciação seria procedente o réu-denunciante não arcaria com os encargos decorrentes da sucumbência, em situação oposta deveria arcar com esse ônus. (...)
A segunda corrente do ponto de vista formal seria a melhor, porquanto com a denunciação na realidade vamos ter a instauração de uma nova lide entre o denunciante e o denunciado diversa da primeira, mesmo diante do fato da improcedência da ação principal interessar a ambos e vincular a rejeição da secundária. Contudo, diante da obrigatoriedade do aforamento da ação secundária nos casos do inciso I do artigo 70 do CPC, revela-se injusto esse posicionamento, pois mesmo diante de uma ação destituída de bons fundamentos à primeira vista não se poderia alegar temeridade do réu ao propor a denunciação, pois, caso o autor obtivesse êxito, ele perderia o direito de regresso contra o terceiro.
Observa-se, por meio da parte transcrita do voto, que a segunda corrente apenas era rechaçada pelo Superior Tribunal de Justiça em razão de ser injusta a sua aplicação quando a denunciação da lide era obrigatória, ainda que fosse a melhor solução para os casos das denunciações facultativas.
Dado o disposto, a terceira corrente é a aplicada de modo pacífico pelo Superior Tribunal de Justiça e funda-se na facultatividade ou obrigatoriedade da denunciação da lide, nos termos do que discorreu o Relator Ministro Castro Meira no julgamento do Recurso Especial nº 258.335/SE:
Para a terceira corrente a definição da natureza da denunciação - obrigatória no caso do inciso I do artigo 70 do CPC e facultativa nos demais incisos -, é o marco divisório para fixar-se a responsabilidade pelos ônus sucumbenciais. (...)
Nas hipóteses de denunciação facultativa em que o réu se antecipa e instaura a lide secundária sem a solução da principal ele deverá arcar com os encargos sucumbenciais, porquanto ajuizou a ação incidental, por ato voluntário, visto que não teria nenhum prejuízo em aguardar o trânsito em julgado da lide proposta contra ele para se fosse o caso promover a ação regressiva contra o terceiro. (...)
Portanto, a melhor tese é a que distingue as espécies de denunciação para nos casos dela ser facultativa impor o pagamento dos honorários advocatícios ao sucumbente na lide secundária, mesmo que tenha sido o réu-denunciante. E nos casos de denunciação obrigatória, caso o autor não tenha obtido êxito na ação principal, carrear a este os ônus sucumbenciais, pois com a propositura da lide o réu ficou obrigado a ajuizar a denunciação para não perder eventual direito de regresso.
Por sua vez, o Código de Processo Civil de 2015 inovou ao prever que a denunciação da lide será sempre facultativa, ausente qualquer discussão quando à sua obrigatoriedade. Entretanto, a jurisprudência pátria continuou aplicando o critério da facultatividade para decidir sobre o ônus sucumbencial da demanda incidental nos casos em que a demanda principal é julgada favorável ao denunciante, responsabilizando este:
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO "AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS". (...) ACÓRDÃO QUE REFORMOU A R. SENTENÇA JULGANDO IMPROCEDENTE A AÇÃO PRINCIPAL E, POR CONSEQUÊNCIA, CONDENANDO O EMBARGANTE AO PAGAMENTO DE HONORÁRIOS AO DENUNCIADO. (...) EMBARGOS REJEITADOS. 1. Desacolhida a demanda principal, tratando-se de denunciação da lide facultativa, responde o denunciante pelos honorários de advogado devidos ao denunciado. (...).
(TJPR, ED na AC nº 0003136-38.2016.8.16.0126, Rel. Des. Ângela Khury, 10ª Câmara Cível, DJ: 20/09/2021, DP: 01/10/2021).
Referido entendimento permanece porque o legislador o inseriu no art. 129, parágrafo único, do Código de Processo Civil de 2015. Contudo, a partir da análise realizada, a solução atribuída pelo Superior Tribunal de Justiça para os honorários sucumbenciais da denunciação da lide, somente tinha razão de ser em havendo alguma hipótese de denunciação da lide obrigatória.
Em face da atual codificação, sendo a denunciação da lide sempre facultativa, de acordo com o voto do Ministro Castro Meira, proferido no Recurso Especial nº 258.335/SE, a corrente que melhor resolveria a questão atinente a sobre quem recai o ônus sucumbencial da lide incidental, era aquela em que a fixação deste dependeria de uma análise hipotética de como seria julgada o processo incidental se a demanda principal fosse desfavorável ao denunciante. Diante disso, apenas se se concluísse que a ação incidental seria julgada improcedente, é que os honorários seriam fixados em desfavor do denunciante.
Dado o disposto, não andou bem o legislador ao estabelecer que o denunciante deve arcar com o ônus sucumbencial da demanda incidental quando ele sai vencedor da demanda principal. Isto porque este entendimento era aplicado pelos tribunais pátrios anteriormente ao Código de Processo Civil de 2015, por conta da hipótese de obrigatoriedade que existia. No entanto, a nova codificação não prevê mais qualquer obrigatoriedade.
Atualmente, o art. 129, parágrafo único, do Código de Processo Civil, mostra-se como um verdadeiro desestímulo à denunciação da lide, considerando que as partes da ação principal não têm certeza quanto à procedência ou improcedência desta. Deste modo, caso optem por denunciar da lide, correm o risco de, em lhe sendo favorável o resultado da ação principal, terem que arcar com os honorários sucumbenciais da ação incidental por eles intentada. Ou seja, ao inserir no texto de lei o entendimento dos tribunais pátrios, sem antes compreender os seus fundamentos, o legislador acabou por reduzir a aplicação da denunciação da lide.
Com isso, o principal objetivo dessa forma de intervenção de terceiro, que é a celeridade processual e a consequente diminuição da quantidade de processos judiciais, resta inalcançável. As partes preferem aguardar o resultado da demanda principal para, somente após, exercer eventual direito de regresso que tenham em face de terceiro, por meio de ação autônoma. Isto para não correrem o risco de terem que suportar os ônus da sucumbência da lide incidental.
______________
1 CARNEIRO, Athos Gusmão. Denunciação da lide. In: Intervenção de Terceiros. 2ª Edição. Editora Saraiva, 1983. p. 67.
2 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17ª Edição. Salvador: Editora Jus Podivm, 2015. p. 491-493.
3 SOUZA NETTO, José Laurindo de. Honorários advocatícios na denunciação da lide. Revista de Processo. Org. Teresa A.A.W. Ano 37, v. 208, jun. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 423-438. ISSN 0100-1981. Disponível em: https://www.tjpr.jus.br/documents/18319/47149551/60.+Artigo+Honor%C3%A1rios.pdf/babbbccb-9e63-b444-5b6d-3d3e5b903623. Acesso em: 18 ago. 2022.
Isadora da Silva Medeiros
Graduanda em Direito pela Unioeste - Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Colaboradora do escritório Fonsatti Advogados Associados.