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A ausência da tipicidade penal do artigo 16 da lei 7.492/86 nas negociações de criptoativos

Precisamos refletir sobre a forma o nosso sistema jurídico interage com o mercado na busca do desenvolvimento econômico, lutando pela liberdade econômica e impedindo que condutas sem tipicidade penal sejam equivocadamente punidas pelo Estado.

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Atualizado às 14:07

Negociar não é tarefa intuitiva e envolve riscos. No mercado financeiro esses riscos são potencializados e as pessoas buscam auxílio (de corretoras, bancos, consultorias, distribuidoras de títulos e valores, etc) para operarem seu dinheiro, sendo que esses agentes intermediários são fiscalizados e regulados pela Comissão de Valores Mobiliários e pelo Banco Central.

Com a alta do valor dos bitcoins (BTC's) e de outros criptoativos, emergiu nesse ambiente digital bilionário um modelo de negócios voltado exclusivamente a esses ativos digitais.

São os chamados traders que realizam a intermediação nas transações de compra/venda de criptomoedas e que seguem um modelo operacional que "lembra" as instituições financeiras, mas que não estão sob a regulação de nenhuma agência estatal e operam em meio a um caos regulatório decorrente da omissão do Estado brasileiro.

Uma situação que ocorre não raramente é aquela na qual os órgãos estatais tratam os negociadores de criptoativos como se atuassem na forma de instituição financeira. Isto ocorre frequentemente em função do volume financeiro envolvido nessas transações.

O volume de dinheiro movimentado diariamente nas intermediações compra/venda de criptoativos no mercado balcão (Over The Counter) leva a uma falsa idéia que os traders (pessoas físicas e jurídicas) operam instituição financeira. Mas isso apenas para aqueles observadores menos atentos.

Sempre me refiro ao Direito como instrumento de engenharia social e, com essa visão, neste artigo, partimos da premissa de que o direito penal tem caráter subsidiário, ultima ratio do Estado contra o indivíduo e através da tipificação penal de uma conduta, busca proteger os bens jurídicos mais relevantes.

Neste cenário, a lei informa - ou deveria informar - ao indivíduo as condutas proibidas e aquelas permitidas. Essa comunicação do "Estado-Legislador" com a sociedade se dá através de uma linguagem que precisa ser clara.

Afinal, refletindo sobre linguagem propriamente, faço minhas as palavras do mestre Alexis De Brito: "na enormidade de valores de um agrupamento social é a linguagem que conduz ao bem jurídico eleito como uma forma de justificar a vida penal. Bem jurídico é linguagem".1

Se pensarmos nos bens jurídicos tutelados pelo direito penal econômico, devemos refletir o processo de formação econômica de nossa sociedade, entendo que os conflitos sociais "obrigaram o Estado a assumir o papel de responsável maior pelos rumos da vida econômica, comandando-a, corrigindo-a e defendendo-a"2.

Nesse contexto, os operadores do direito precisam  de um olhar atento às relações mercantis (nelas compreendidos o mercado financeiro, de capitais, de câmbio e de criptoativos). Tais relações, por seu constante dinamismo e a tendência à inovação, exigem um sistema jurídico mais dinâmico e que reflita a realidade econômica.

Passemos, então, a refletir a tipicidade em sede de crimes financeiros, entendo aqui o tipo penal como ensina o mestre Ariel Dotti: "Tipo é a descrição do comportamento proibido e compreende as características objetivas e subjetivas do fato punível".3

Para nossa reflexão, a norma está imposta no artigo 16 da lei 7.492/86 assim dispõe: "Fazer operar, sem a devida autorização, ou com autorização obtida mediante declaração (Vetado) falsa, instituição financeira, inclusive de distribuição de valores mobiliários ou de câmbio".

A norma penal incriminadora disposta no artigo 16 do diploma legal em exame, coibindo a operação de instituição financeira sem a devida autorização, objetiva sancionar aquele que deixa de atender a formalidade exigida pelo Banco Central do Brasil para que possa iniciar ou continuar suas atividades.

Portanto, quando alguém pratica uma conduta que se adequa àquela descrita pelo legislador na norma penal acima - sempre com escopo de proteger um bem jurídico - diz-se que se faz presente a tipicidade penal.

Quanto a esse bem juridicamente relevante, objeto da proteção do Estado brasileiro, trazemos a lição pedagógica de Baltazar Júnior:

"O bem jurídico protegido é o SFN. Bem por isso, já se afirmou que: 'A Lei 7.492/86 define crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, pelo qual o bem jurídico tutelado de imediato não é a instituição em si, mas o conjunto de instituições financeiras cuja função é 'promover o desenvolvimento equilibrado do país e servir aos interesses da coletividade [...] Cuida-se de bem jurídico supraindividual 'e no qual se destacam os seguintes aspectos: a) a organização do mercado; b) a regularidade de seus instrumentos; c) a confiança neles exigida; e d) a segurança dos negócios' (Araújo: 145). Em outras palavras: 'A Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro nacional visa à garantia de consecução das metas políticas públicas cambiais e monetárias, bem como à preservação das instituições públicas e privadas que compõem o chamado Sistema Financeiro Nacional, bem como viabilizar a transparência e a licitude das relações existentes entre tais instituições, entre elas e seus funcionários, entre elas e o Estado e entre elas e o usuário de seus serviços."4

O atuar como uma instituição financeira, data vênia, significa captar recursos de terceiros. Ou seja, atrair capitais objetivando uma aplicação futura, intermediando capitais de terceiros, investindo tais recursos visando lucro/spread.

Diferente é o caso da mera intermediação comercial, sem qualquer vontade do agente de fazer qualquer tipo de investimento com tais recursos para obter, no futuro, lucro quando da apuração dos resultados financeiros.

A negociação de criptoativos no mercado de balcão (OTC), apesar de movimentar grandes valores (da ordem da dezena de milhões de reais a cada dia), ocorre diretamente entre os players (traders) que atuam no mercado, operando muitas vezes com seu laptop, dentro de seu quarto.

São transações comerciais de compra/venda de ativos não financeiros, em um ambiente digital cuja agilidade e dinâmica são notadamente de altíssima velocidade, sendo imperioso notar que a aplicação de recursos próprios também não se adequa ao tipo penal em questão.

Lembremos que os criptoativos não são considerados ativos financeiros pelas leis brasileiras. Situação esta que - com a máxima vênia - por si só já impõe o reconhecimento de atipicidade formal e material de qualquer imputação relacionada a proteção do sistema financeiro nacional.

A vontade dos traders nesse mercado é de intermediar por meio digital as transações que envolvem tais ativos. Essa vontade é extremamente relevante pois já está pacificado na doutrina e na jurisprudência de nossos tribunais que o tipo subjetivo no artigo 16 é o dolo representado pela vontade livre do agente no sentido de atuar como instituição financeira, o que se afasta totalmente a tipicidade na conduta daqueles que atuam na intermediação de ativos digitais.

Neste sentido, também ensina o magistério de José Carlos Tórtima: "O que o tipo exige é que o agente faça operar instituição financeira, algo muito diferente de realizar operação financeira, como se instituição financeira fosse".

Não, advogados criminalistas, podemos aceitar que o órgão acusador promova uma ação penal fundada em condutas cuja atipicidade é notória, tentando para isso, ampliar de forma indevida os contornos dos tipos penais que o legislador definiu. Não pode o "Estado-Persecutor" atuar acrescentando condutas "tipificadas", sem o devido processo legislativo, maculando de forma absoluta o princípio da reserva legal.

Todos sabemos que o sistema criminal deve sempre evitar o erro fático, porque o poder punitivo do Estado é suscetível a falhas, podendo resultar na punição de condutas que não configuram crimes ou na imputação indevida de um crime a quem não o cometeu.

Jamais pode uma sentença condenatória penal ser justamente proferida diante de dúvida. Para concretizar esse princípio do in dubio pro reo, o legislador consignou de forma expressa no artigo 156 do Código de processo Penal, que determina a absolvição do acusado quando inexistir prova suficiente para a condenação. E, cabe destacar que esta prova e aquela que incumbe ao Estado-Acusador fazer juntar aos autos do processo.

E a prova no crime que analisamos precisa alcançar o elemento subjetivo do tipo penal. Ou seja, precisa ser provado pela acusação que o réu teve dolo de operar uma verdadeira instituição financeira de forma clandestina, sem buscar a regularização perante os órgãos estatais.

Faz-se mister destacar que essa comprovação da presença do dolo de agir consoante a conduta proibida precisa ser aferida no contexto ne nosso sistema jurídico que tem como princípios e fundamentos a liberdade econômica e a livre iniciativa. Ambos garantidos no âmbito constitucional - art. 170: "A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social" - e também no âmbito legal - Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, art. 1º, parágrafo 2º, da Lei 13.784/19: "Interpretam-se em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas".                 

Portanto, temos um cenário jurídico no qual as normas que regem a atividade econômica devem ser interpretadas e aplicadas sempre em favor da liberdade dos agentes econômicos e suas iniciativas empreendedoras, não podendo reprimir a sua velocidade de adaptação e de inovação diante dos desafios que o mercado impõe.

Nós, como operadores do direito, temos o múnus de trabalhar para que a argumentação de todas as partes envolvidas seja considerada como um vetor que compõe a resultante final, qual seja a interpretação e aplicação das normas jurídicas. Afinal, "o diálogo entre os interlocutores se estabelece a partir do momento em que as representações do outro são consideradas na construção da argumentação".5

A reflexão deve ser acerca da relação dessas forças que atuam na sociedade: a força do mercado livre, natural, e a força da lei, da regulação estatal na proteção de bens juridicamente relevantes. Precisamos refletir sobre a forma o nosso sistema jurídico interage com o mercado na busca do desenvolvimento econômico, lutando pela liberdade econômica e impedindo que condutas sem tipicidade penal sejam equivocadamente punidas pelo Estado.

______________

1 De brito, Alexis Couto.  O Direito na atualidade. Ed. Riddel. São Paulo, 2011. Pag. 84.

2 Pinto, Tabajara Novazzi. Direito Penal Econômico, Erros técnicos na legislação vigente. Ed. Quartier Latin, São Paulo, 2009. Pag. 15.

3 Dotti, René Ariel. Curso de Direito Penal - Parte Geral. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2013. Pag. 410.

4 Baltazar Júnior, José Paulo. Crimes Federais. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. Págs. 589/590

5 Da Costa S., Clarice Beatriz. Argumentação e discursos criminológicos. EdiPUCRS, Porto Alegre, 2011. Pag.45.

Antonio Valença da Silva

Antonio Valença da Silva

Servidor federal aposentado do Ministério da Justiça. Advogado atuante na seara do direito empresarial e direito penal econômico.

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