A concessão das tutelas de urgência inaudita altera pars no CPC/15: Ativismo judicial ou garantismo processual?
Em que pese o debate acerca dessa dicotomia não seja acentuado no cenário jurídico nacional, a legislação brasileira ora assume postura ativista, ora feição mais garantista.
terça-feira, 23 de agosto de 2022
Atualizado às 08:47
1. Introdução
Muito se fala na doutrina brasileira, sobretudo nas últimas décadas sob a égide do pós-positivismo, acerca dos contornos do ativismo judicial no processo civil. Discute-se, nessa seara, acerca dos poderes do membro do poder judiciário - sobretudo os seus limites - na solução dos conflitos.
Por outro lado, há importante pensamento doutrinário que contempla certos posicionamentos que, em certa medida, contrapõem-se ao ativismo judicial. Está-se falando do garantismo processual, que encontra as suas fincas mestras fixadas no direito processual penal, mas ecoa também para o processo civil.
No ambiente jurídico brasileiro muito pouco se discute acerca do garantismo processual no âmbito do processo civil, situação totalmente diversa do que se encontra na doutrina estrangeira, sobretudo nos países de origem hispânica, onde os contornos do garantismo processual já foram alvo de intenso debates quando confrontado com o ativismo judicial.
Em que pese a baixa produção intelectual no direito brasileiro acerca do garantismo processual, tal fenômeno não pode ser olvidado, vez que, além de privilegiar os direitos e garantias fundamentais dos litigantes, por vezes, encontra-se presente em determinados atos normativos.
Assim, tendo por base essas duas correntes de pensamento no processo civil, o objetivo do presente trabalho é examinar as recentes opções feitas pelo legislador ordinário com a edição do Código de Processo Civil de 2015. Mais especificamente, o que se almeja aqui é examinar o tratamento dado pelo Novo Código no que se refere às tutelas de urgência. Isto é, ao estabelecer o regramento das tutelas provisórias de urgência, o legislador assumiu postura relacionada ao ativismo judicial ou, por outro lado, optou por seguir a linha de raciocínio defendida pelos defensores do garantismo processual?
Todavia, uma observação inicial dessa feita: o que se almeja com o presente trabalho não é aferrar as ideias garantistas de um lado e ativistas de outro de forma maniqueísta. Não é isso até mesmo porque ambas as concepções doutrinárias possuem as suas virtudes e as suas fragilidades. O objetivo deste ensaio é examinar se a opção feita pelo legislar ordinário do Código de Ritos de 2015 amolda-se às ideias garantistas ou às ativistas exclusivamente no que se referem às tutelas provisórias de urgência.
Em outras palavras, no tratamento dispensado às tutelas de urgência, o legislador do Código de Processo Civil de 2015 privilegiou as garantias processuais das partes, sobrepondo o devido processo legal em relação às demais regras e normas, ou enfatizou os poderes do juiz na solução do conflito e busca pela concreção da justiça no caso concreto?
O tema assume feição de relevo, não somente pela riqueza de informações no debate ativismo versus garantismo, como também por que a morosidade na prestação jurisdicional é uma realidade inafastável na realidade brasileira. Assim, considerando tal fato e ante a impossibilidade de se aguardar o desfecho final do processo, as tutelas provisórias de urgência merecem sempre especial atenção, já que é por meio delas que a lesão ou a ameaça a direito são cessadas por ato judicial quando se está diante de casos de urgência.
Em outro dizer, as tutelas provisórias de urgência surgiram no ordenamento jurídico pátrio com o objetivo de, assegurando a duração razoável do processo, impedir que as partes sejam penalizadas pelo decurso do tempo enquanto não tiver sido concedida a prestação jurisdicional definitiva.
Historicamente, as tutelas provisórias são divididas em cautelar e antecipada (ou satisfativa). O Código de Processo Civil de 2015 não se afastou dessa classificação e será justamente nessas duas classes de tutelas provisórias que o nosso estudo será focado, sempre tendo como vetor norteador as ideias garantistas e ativistas, conforme o caso.
A pesquisa levada a efeito é essencialmente bibliográfica, nacional e estrangeira, e o trabalho está dividido em três partes, a saber: (i) na primeira parte, com o propósito de apenas expor o tema, buscou-se apresentar a existência do debate entre ativistas e garantistas, sobretudo na doutrina de origem hispânica, além expor as ideias que conferem forma ao ativismo e ao garantismo; (ii) na segunda parte o objetivo é examinar os contornos conceituais da tutela provisória de urgência nos termos do Código de Processo Civil de 2015; (iii) na terceira parte, o objetivo é justamente examinar o direito posto e buscar a identificar se as suas disposições adequam-se mais às ideias ativistas ou às garantistas.
2. Ativismo judicial e garantismo processual: contraposição de ideias?
Para a melhor compreensão do nosso trabalho, é de fundamental importância apresentar e discorrer, ainda que de forma breve, acerca do debate que contrapõe o garantismo processual ao ativismo judicial. Assim, levando-se em consideração tal necessidade, o objetivo deste tópico é abordar as ideias contrapostas do ativismo judicial em face do garantismo processual.
Inicialmente será feita uma rápida abordagem histórica acerca do tema e, em seguida, serão discutidos os confrontos de ideias entre essas duas categorias teóricas.
2.1. Exposição do debate
Como bem destaca Glauco Gumerato Ramos, autor que, segundo a nossa ótica, de forma mais didática abordou o tema, trata-se de debate que gira em torno, essencialmente, de seis relevantes fenômenos processuais: a) os aspectos ideológicos do processo civil; b) a dinâmica de desenvolvimento do processo, se dispositivo ou inquisitivo; c) o papel do juiz e das partes na relação jurídica de direito processual; d) a dimensão constitucional da jurisdição; e) o conteúdo e alcance do devido processo legal; e f) as garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório.1 O ativista e o garantista enxergam cada um desses fenômenos com lentes diversas e, em muitas situações, de forma contraposta.
A doutrina brasileira muito discorre acerca do ativismo judicial, todavia quase silencia-se por completo acerca do garantismo processual, já que raros são os escritos acerca do tema. Situação totalmente diversa é a vivenciada na doutrina estrangeira, sobretudo aquela oriunda dos países hispânicos, onde o debate ativismo judicial versus. garantismo processual é mais pujante.2
Não há um consenso na doutrina brasileira acerca do conceito de ativismo judicial nem, por consequência disso, da identificação, de forma apriorística, de se determinado pronunciamento judicial é ou não ativista. Todavia, é possível identificar que o ativismo judicial prega uma postura mais criativa do juiz, sobretudo em face de omissões legislativas. Por essa razão, diz-se que, dentre as categorias que compõem o tripé da teoria geral do processo - ação, processo e jurisdição -, prepondera, assim, a atividade jurisdicional (jurisdição).3
Por outro lado, o garantismo processual defende a categoria do processo como prisma preponderante, tendo como vetor norteador a garantia do devido processo legal, com a supervalorização do contraditório, da ampla defesa e da imparcialidade do juiz - enquanto corolários daquele. Os direitos processuais fundamentais das partes assumem posição de relevo no garantismo, enquanto no ativismo é a atuação do juiz no curso do processo é que prepondera.4
Em outras palavras, em que pese a teoria geral do processo seja calcada no trinômio: ação, jurisdição e processo, o ativismo judicial destaca a jurisdição como categoria preponderante, ao passo que o garantismo destaca o processo como valor norteador.
Em interessante abordagem histórica, relata Gumerato Ramos que, no direito estrangeiro, o debate entre os defensores do ativismo e os adeptos do garantismo teve início em 1995 com a publicação de determinado artigo científico pelo jurista italiano Franco Cipriani e encontrou a sua pacificação em 2006 com a publicação de coletânea de textos sobre o tema de autoria de Juan Montero Aroca intitulada de Proceso civil e ideologia - Um prefacio, una sentencia, dos cartas y quince ensayos.5
Com efeito, em 1995 Franco Cipriani publicado o célebre texto Nel Centeario Del Regolamento di Klein (Il proceso civile tra libertà e autorità), no qual o autor fez um profundo levantamento histórico da ideologia de embasou o código de processo civil da Áustria idealizado pelo jurista austríaco Franz Klein. O autor ressaltou que o código de processo civil de Klein influenciou diretamente o estatuto adjetivo italiano de 1940, que foi editado no auge no nazismo, bem como serviu de norte para diversos diplomas processuais editados posteriormente (inclusive o código de processo civil brasileiro de 1973). Os traços característicos do código de Klein foram, segundo Cipriani, a total negação de direitos às partes e a supervalorização dos poderes do juiz, em manifesto caráter publicista, tendo sido tachado, inclusive, de inconstitucional.6
Após a obra de Franco Cipriani, Juan Montero Aroca proferiu palestra de encerramento nas XVII Jornadas Iberoamericanas de Derecho Procesal, em outubro de 2000, cujo objeto era o novo código de processo civil espanhol, que havia sido editado em janeiro do mesmo ano de 2000, e o próprio título da palestra já indicava que deveria servir de modelo para os países de origem hispânica. A palestra proferida serviu de base a publicação do livro Los principios políticos de la nueva Ley de Enjuiciamento Civil - Los poderes del juez y la oralidade, de Montero Aroca.7
Nas suas palavras, Aroca fez questão de deixar claro que a nova lei processual espanhola rompia com o paradigma até então vigente no século XX, segundo o qual o processo judicial teria caráter eminentemente publicístico em que o juiz possuía superpoderes na condução do processo.8
Fazendo coro às ideias de Aroca, Franco Cipriani resolve, em 2002, traduzir para o italiano o livro Los principios políticos de la nueva Ley de Enjuiciamento Civil - Los poderes del juez y la oralidade daquele autor espanhol, feito este que ajudou a difundir as ideias garantistas do processo no seio italiano, sendo alvo, inclusive, de artigo específico do vice-presidente do Consiglio Superiore della Magistratura, Giovanni Verde.9
Em outubro de 2003, na Argentina, a Suprema Corte da Província de Buenos Aires, ao discutir sobre a relativização da coisa julgada, decidiu por cinco votos a quatro, em postura evidentemente garantista, que relativizar a coisa julgada afigurar-se-ia verdadeira afronta ao devido processo legal previsto na Constituição, bem como modificar "as regras do jogo" acarretaria o rompimento da igualdade que deveria existir entre as partes, conforme destacou o então Presidente do Tribunal, Federico Dominguez, em seu voto de minerva, que, inclusive, fez diversas referência ao pensamento de Aroca.10
Em fevereiro de 2004 - quase quatro meses após a publicação do referido acórdão -, Augusto Mário Morello, defensor declarado do ativismo judicial, publicou nota no periódico LexisNexis - Juriprudencia Argentina, de 18 de fevereiro de 2004, tecendo críticas severas ao posicionamento encampado pelo Presidente da Suprema Corte Federico Dominguez.11
Três meses depois, em maio de 2004, no mesmo periódico, Montero Aroca faz publicar artigo em defesa do posicionamento garantista do Presidente da Suprema Corte e apresenta os contrapontos aos argumentos de Augusto Mario Morello.12
No começo do mês de junho de 2004, mês seguinte à publicação do artigo do jurista italiano Juan Montero Aroca, Augusto Mario Morello envia correspondência a ele com o objetivo de amenizar o clima de desconforto gerado por ambos os escritos. Em resposta, Aroca sugere a Morello a promoção do debate ativismo vs. garantismo no processo nas Jornadas Iberoamericanas que iriam se realizar quase dois anos depois, em 2006.13
Enfim, no ano de 2006, o debate foi pacificado com a publicação do livro Proceso civil e ideologia - Um prefacio, una sentencia, dos cartas y quince ensayos por Juan Montero Aroca.
Feito este pequeno e importante resgate histórico, há de se indagar: mas qual o tema central da discussão? Qual é o ponto nevrálgico da discussão? Em resposta a tais questionamentos, deve ser dito que, como visto anteriormente, quando são contrapostas as ideais ativistas em face do garantismo, coloca-se face a face os poderes do juiz (jurisdição), de um lado, e o devido processo legal (processo), de outro.
Em razão dessa dicotomia, convém realizar o estudo de cada uma dessas categorias dogmáticas de maneira apartada, de acordo com o que defende cada uma dessas correntes.
2.1. O ativismo judicial e a jurisdição
Classicamente, a jurisdição é conceituada como a função ou o poder estatal voltado à solução dos conflitos de forma plena e vinculativa, declarando e/ou realizando o direito em um dado caso concreto.14 Desse entendimento não destoa Fredie Didier Jr.15, para quem:
A jurisdição é a função atribuída a terceiro imparcial (a) de realizar Direito de modo imperativo (b) e criativo (c), reconhecendo/ efetivando/protegendo/situações jurídicas (d) concretamente deduzidas (e), em decisão insuscetível de controle externo (f) e com aptidão para tornar-se indiscutível (g).
De acordo com as concepções ativistas, porém, ao juiz é facultado exercer o seu poder de forma plena a fim de se fazer justiça num dado caso concreto, mesmo que para tal não haja autorização expressa do legislador. Nessa mesma concepção, o juiz é dotado de maiores poderes na condução do processo e na relação jurídica de direito processual.16
Ainda que se trate de conceito indeterminado, a ideia reinante no ativismo judicial é aquela segundo a qual o juiz possui plena liberdade criativa para conferir justiça ao caso concreto, ainda que para tanto finque as bases do seu pronunciamento tão somente em princípios, mesmo que sejam implícitos no ordenamento, a exemplo da segurança jurídica.
Justamente por prevalecer o poder do juiz na condução do processo e na relação jurídica de direito processual é que a categoria da jurisdição, enquanto poder estatal voltado a resolver o problema posto em juízo, é destacada dentre os demais institutos estudados na teoria geral do processo.
Situação totalmente diversa ocorre com o garantismo processual em que o processo assume posição de destaque, conforme veremos no tópico a seguir.
2.2. O garantismo e o processo
Enquanto a jurisdição é a base da dogmática ativista, a categoria do processo é o pilar do garantismo processual. Não é que o processo seja um fim em si mesmo, não é isso. Mas o que os garantistas pregam é que os direitos fundamentais de índole constitucional relativos ao processo devem assumir papel de destaque numa relação jurídica de direito processual tutelada pelo Estado-juiz. Isto é, o devido processo legal como regra maior, e a imparcialidade do juiz, o contraditório e a ampla defesa, como corolários daquele, devem ser sempre, sob qualquer circunstância, observados.
O devido processo legal é, assim, a viga mestra do pensamento garantista. Fredie Didier Jr. apresenta interessante ponto de vista acerca do devido processo legal ao se debruçar sobre a conceituação do processo genericamente considerado:
Processo é método de exercício de poder normativo. As normas jurídicas são produzidas após um processo (conjunto de atos organizados para a produção de um ato final). As leis, após o processo legislativo; as normas administrativas, após um processo administrativo; as normas individualizadas jurisdicionais, enfim, após um processo jurisdicional. Nenhuma norma jurídica pode ser produzida sem a observância do devido processo legal. Pode-se, então, falar em devido processo legal legislativo, devido processo legal administrativo e devido processo legal jurisdicional. O devido processo legal é uma garantia contra o exercício abusivo do poder, qualquer poder.17
A última parte dos ensinamentos ora transcritos ("o devido processo legal é uma garantia contra o exercício abusivo do poder, qualquer poder") é especialmente relevante para o presente tópico, pois é justamente a ideia que contrapõe o garantismo processual em face do ativismo judicial: o devido processo legal como forma de controle do poder exercido pelo juiz por meio da jurisdição.
A cláusula do devido processo legal possui tanto relevo que alguns doutrinadores, a exemplo de Nelson Nery Jr., entendem que bastaria a sua existência no nossa Constituição da República para que todas as demais garantias processuais estivessem asseguradas, pois, para ele, é sobre o devido processo legal que todos os outros princípios e demais regras relativas ao processo e ao controle do poder sustentam, isto é, configura-se como o "gênero do qual todos os demais princípios e regras constitucionais são espécies".18
Por outro lado, o garantismo processual, na visão de Adolfo Alvarado Velloso, jurista argentino que se debruçou sobre o tema, em citação feita por Gumerato Ramos19, consiste em:
O garantismo processual é uma posição doutrinária firme (=aferrada) quanto à manutenção da irrestrita vigência da Constituição e, com ela, da ordem legal vigente no Estado, de modo que tal ordem se adeque com plenitude às normas programáticas dessa mesma Constituição. Em outras palavras, os doutrinadores que assim entendem não buscam um juiz comprometido com certas pessoas (=grupos de pessoas) ou coisa distinta da Constituição, mas sim um juiz que se empenhe em respeitar a todo custo as garantias constitucionais.
O processo judicial, a seu turno, é um procedimento que desenvolve em contraditório com o intuito de receber ao final a prestação jurisdicional cujo fruto é a norma jurídica materializada numa decisão judicial, seja ela uma sentença, na hipótese, de o pronunciamento emanar dos juízos de primeiro grau de jurisdição, seja ela um acórdão, na hipótese de o ato emanar dos órgãos jurisdicionais colegiados de graus superiores.20
Como o processo é um procedimento desenvolvido em contraditório entre as partes, inegavelmente trata-se de relação jurídica, já que, necessariamente, o contraditório somente existirá se houver bilateralidade de audiência e, para tal, as partes do processo têm de se relacionar (daí ser uma relação jurídica) entre si. Todavia, é de fundamental importância recordar que "se trata de uma relação jurídica cujo conteúdo será determinado, primeiramente, pela Constituição e, em seguida, pelas demais normas processuais que devem observância àquela"21.
Na visão garantista do processo, os direitos fundamentais emanados da cláusula do devido processo legal se sobrepõem aos poderes do juiz. Sob a ótica garantista, verbi gratia, um juiz não poderia deferir tutela de urgência satisfativa sem a oitiva prévia do réu, pois estaria violando o princípio do contraditório, bem como também não poderia determinar, de ofício, a produção de determinada prova, pois estaria violando a imparcialidade.22 Tais circunstâncias que são impensáveis à luz do pensamento do garantismo processual, são plenamente possíveis segundo a visão dos ativistas, pois, segundo eles, o juiz estaria valendo-se dos seus poderes para fazer justiça no caso concreto.
Partindo dessas premissas em que as ideais do garantismo processual são contrapostas ao ativismo judicial, passemos a analisar se o legislador ordinário optou por uma postura ativista ou garantista quando tratou das tutelas provisórias de urgência no Código de Processo Civil de 2015. Mas antes, porém, cumpre aclarar os contornos trazidos à lume pelo Código de Processo Civil de 2015 acerca do tema.
3. Tutelas provisórias de urgência no Código de Processo Civil de 2015
"Tutelas provisórias" foi a expressão utilizada pelo legislador no Código de Processo Civil de 2015 para distinguir os pronunciamentos judiciais com cunho decisório proferidos em sede de cognição sumária daqueles editados com base em cognição exauriente. Ao passo que a urgência foi o atributo utilizado pelo legislador para destacar as situações jurídicas submetidas em juízo que demandam solução imediata em razão da lesão a direito já verificada ou iminente.
A partir da vigência do novo Código de Processo Civil brasileiro, em março de 2016, passou a ter eficácia no ordenamento jurídico pátrio regramento próprio e específico para as tutelas provisórias, satisfativas ou não. Regramento este bem diverso do que dispunha o Código Adjetivo de 1973.
Com efeito, novo Diploma Adjetivo destinou o Livro V para tratar exclusivamente das tutelas provisórias. Ao tratar do tema, as subdividiu em tutela provisória antecipada (satisfativa), tutela provisória cautelar (não satisfativa), ambas espécies de tutela provisória fundada na urgência, e tutela provisória da evidência, fundada, esta última, exclusivamente no direito evidente alegado pela parte. Assim, a tutela provisória é o gênero do qual são espécies as tutelas de urgência cautelar e antecipada e a tutela de evidência.
Deve ser destacado que o legislador processual de 2015 perdeu relevante oportunidade de identificar de forma clara a separação entre as tutelas provisórias. Afirma-se isso, pois "antecipada", nos exatos termos legais, é o provimento judicial que se constitui como meio de obtenção da tutela jurisdicional "que pode tanto satisfazer como acautelar os direitos"23. Isto é, o que o legislador identificou como "antecipada" no novo Código de Processo Civil, deveria sê-lo como tutela "satisfativa", já que "antecipado" pode ser o provimento jurisdicional tanto cautelar como satisfativo.
Em outro dizer, a tutela antecipada não é característica exclusiva da tutela satisfativa (ou tutela antecipada, como quer o legislador de 2015), mas também da tutela cautelar. Ou seja, o provimento judicial antecipado - antes da sentença definitiva - pode ser tanto cautelar quanto satisfativo. Assim, não nos parece adequada a nomenclatura utilizada pelo código de 2015, uma vez que, repita-se, valeu-se da qualidade "antecipada" para identificar a tutela provisória satisfativa, mas olvidou-se que a tutela provisória cautelar, e não satisfativa, também pode ser concedida de forma antecipada, antes da sentença. Mas, enfim, considerando o direito posto, pode-se afirmar que no ordenamento jurídico brasileiro a tutela antecipada é sinônimo de tutela provisória satisfativa de urgência.
Continuando as considerações introdutórias acerca do instituto, tem-se que tutela definitiva é a espécie de provimento jurisdicional fundada em cognição exauriente, isto é, baseada em juízo pleno sobre a demanda pelo magistrado, vez que se subentende que a verdade formal foi revelada. Ao passo que a tutela provisória consiste no pronunciamento judicial fundado em cognição sumária, precário, portanto, e sem, eventualmente, haver a formulação de juízo aprofundado de valor sobre o tema posto a exame.
A seu turno, provisoriedade é a característica própria da relação que se estabelece entre o provimento jurisdicional final e o antecipado, seja este último cautelar ou satisfativo. Nesse sentido leciona Daniel Mitidiero:
Firme a premissa de que a técnica antecipatória constitui simples meio para obtenção da tutela jurisdicional, que pode tanto satisfazer como acautelar os direitos, a relação de provisoriedade que se estabelece é entre o provimento antecipado oriundo da técnica antecipatória e provimento final prolatado posteriormente. Existe uma relação de identidade - total ou parcial - entre o provimento antecipado e o provimento final: o provimento antecipado constitui simplesmente a versão provisória do provimento final. Dito de maneira clara: o provimento cautelar antecipado é a versão provisória do provimento cautelar final, assim como o provimento satisfativo antecipado é a versão provisória do provimento satisfativo final.24
Segundo o regramento dado pelo Código de Processo Civil de 2015, a tutela provisória possui as seguintes características:
a) Trata-se de provimento jurisdicional fundado em juízo de cognição sumária, uma vez que o nível de cognição é mais superficial se comparado com a exauriente;
b) É precária. Isto é, não goza de definitividade, podendo ser revista a qualquer tempo;
c) Não produz coisa julgada. Pelo fato de se tratar de provimento precário, não tem aptidão para produzir coisa julgada.
Todavia, tal tratamento específico para as tutelas provisórias não foi dispensado pelo Código de Processo Civil de 1973 mesmo após as suas inúmeras ondas reformatórias. Naquele Codex a tutela antecipada era tratada em um único artigo inserido nas disposições gerais do título relativo ao processo e ao procedimento. Ao passo que as cautelares eram tratadas em livro especial como ações autônomas. Não havia previsão expressa acerca da tutela da evidência, embora já se admitisse que a previsão do §6º do Art. 273 do CPC/7325 seria manifestação desta técnica processual.
Fixadas tais premissas, passemos agora ao exame das regras constantes do Código de Processo Civil de 2015 acerca do tema a fim de verificar se a opção do legislador do ordinário foi de filiar-se ao posicionamento garantista ou ao ativista.
4. Garantismo ou ativismo no Código de Processo Civil de 2015 no tratamento das tutelas provisórias de urgência?
Como dito anteriormente, o objetivo do presente trabalho não é aferrar as ideias garantistas e ativistas de forma maniqueísta. Não é isso até mesmo porque ambas as concepções doutrinárias possuem as suas virtudes e as suas fragilidades. O objetivo deste ensaio é, assim, examinar se a opção feita pelo legislar ordinário do Código de Ritos de 2015 amolda-se às ideias garantistas ou às ativistas exclusivamente no que se referem às tutelas provisórias de urgência.
Um dos exemplos práticos de aplicação do garantismo processual, como se viu, é a vedação ao juiz de concessão de tutela provisória de urgência satisfativa sem que a parte contrária seja previamente ouvida. Tal conduta, por violar o contraditório, garantia inerente ao devido processo legal, é veementemente repelida pelos defensores do garantismo processual.
Sobre o tema, há quem entenda, a exemplo de Nelson Nery Júnior , que a concessão de tutela de urgência sem a oitiva da parte contrária não caracterizaria violação ao contraditório, pois estar-se-ia diferindo a bilateralidade de audiência para momento posterior à concessão da medida, circunstância esta que seria plenamente justificável pelo "interesse superior da justiça"26.
Nos parece, todavia, ao contrário do que vaticina o citado doutrinador, que se trata sim de violação ao princípio do contraditório. Isto porque, o conteúdo da garantia do contraditório exige justamente a oitiva prévia e não posterior à prolação da decisão que venha a pesar sobre a parte.
Esse nosso pensamento é reforçado pela regra constante do caput do Art. 9º do Código de Processo Civil, que será examinado mais à frente. Está lá expresso que a bilateralidade deve ser sempre prévia à prolação da decisão, cabendo ao seu parágrafo único elencar as suas exceções em rol taxativo. Ora, se o próprio parágrafo único enumera as exceções à regra, tal posicionamento significa que o contraditório estaria afastado naquelas hipóteses. Não se trata, assim, de diferimento, mas sim de não aplicação do contraditório quando da prolação da decisão, até mesmo porque o contraditório posterior a ela pode não ter mais eficácia alguma, a depender do teor do pronunciamento judicial27.
Com efeito, pelo teor do caput Art. 9º do Código de Processo Civil de 2015, em uma primeira leitura, pode-se chegar à conclusão segundo a qual o legislador seguiu à risca a necessária observância do princípio do contraditório, já que expressamente dispôs: "art. 9º. Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida". E é justamente essa bilateralidade prévia de audiência que caracteriza uma das faces do princípio do contraditório28.
Todavia, quando avançamos a leitura do texto para o seu parágrafo único, constatamos que a regra geral de observância do contraditório comporta exceções previstas em rol exaustivo:
Art. 9º Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.
Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica:
I - À tutela provisória de urgência;
II - Às hipóteses de tutela da evidência previstas no art. 311, incisos II e III;
III - À decisão prevista no art. 701.
Para o nosso estudo o que importa ser destacado é a disposição do inciso I do parágrafo único ora transcrito, vez que nele há a previsão expressa quanto à excepcionalidade das tutelas provisórias de urgência.
Já no livro especificamente destinado às tutelas de urgência, o legislador reforçou a ideia acerca da possibilidade de concessão de tutela provisória de urgência dispensando-se a oitiva da parte contrária de forma prévia, ou seja, relevando-se o contraditório, conforme se observa da leitura do §2º do artigo 300, in verbis:
Art. 300. A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.
[...]
§ 2º A tutela de urgência pode ser concedida liminarmente ou após justificação prévia.
O que se percebe tanto do inciso I do parágrafo único do Art. 9º quanto do §2º do Art. 300, ambos do Código de Processo Civil, é que a regra geral é a observância do princípio do contraditório quando da concessão de tutelas provisórias de urgência, ou seja, a parte contra a qual venha a recair os efeitos da decisão deve ser ouvida de forma prévia. Todavia, o legislador conferiu certa discricionariedade ao julgador quando do exame do caso para, de forma excepcional, afastar tal garantia processual. Isto é, em que pese a regra geral seja a observância do contraditório prévio, o legislador permitiu a sua flexibilização quando da concessão da tutela provisória de urgência.
Assim, como regra geral, o legislador andou de braços dados com o garantismo processual, vez que impôs a necessidade de ocorrer a bilateralidade de audiência de forma prévia à decisão (contraditório propriamente dito). Todavia, ao prever as exceções, sobretudo no que se refere às tutelas provisórias de urgência, preponderou o ativismo judicial, vez que os poderes do juiz se sobrepujaram à garantia constitucional da parte em face de quem a decisão recairá.
Nessa ordem de ideias, é de se verificar que não foi feita uma opção estanque pelo legislador. É que a regra geral privilegia as garantias do processo em relação às partes, sobretudo o princípio do contraditório, o que revela a opção garantista do legislador. Todavia, considerando o caso concreto e, de forma excepcional, o julgador pode relevar a bilateralidade prévia e tutelar o bem da vida vindicado em juízo, podendo prevalecer, assim, em um dado caso concreto, uma postura mais ativista do judiciário.
É digno de nota, por fim, que a não observância do princípio do contraditório quando da concessão de tutelas provisórias de urgência é medida excepcional e assim deve ser tratada. Ou seja, a garantia do contraditório somente poderá ser relevada em um dado caso concreto se não houver outro meio de se tutelar a pretensão deduzida em juízo. Quer-se com isso afirmar que o magistrado precisa necessariamente utilizar-se da ponderação de valores a fim de identificar se o prejuízo causado à parte pela não prolação da decisão inaudita altera pars é superior ao dano causado com a inobservância do contraditório29.
4. Conclusão
À guisa de conclusão, observou-se que a doutrina brasileira se dedica quase que de forma exclusiva ao estudo do ativismo judicial, olvidando-se, no mais das vezes, da realidade posta pelo garantismo processual. Verificou-se também que no direito estrangeiro, sobretudo naqueles países de origem hispânico, o debate ativismo versus garantismo já se encontra em estágio mais avançado quando comparado com a realidade brasileira.
Em que pese o debate acerca dessa dicotomia não seja acentuado no cenário jurídico nacional, a legislação brasileira ora assume postura ativista, ora feição mais garantista.
Com o tratamento dado às tutelas provisórias de urgência pelo Código de Processo Civil de 2015 não foi diferente. A regra é que o contraditório seja observado previamente e, portanto, nessa seara, ter-se-ia adotado o garantismo processual. Todavia, na prática, considerando que as exceções trazidas pelo Código de 2015 são as atividades mais correntes da atuação jurisdicional, na prática, tem-se uma postura ativista.
O que importa, todavia, é que o julgador, em um dado concreto, valha-se do princípio da proporcionalidade (devido processo legal substantivo) para poder decidir se privilegia a bilateralidade de audiência ou se tutela o bem da vida vindicado em juízo.
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1 RAMOS, Glauco Gumerato. Ativismo e garantismo no processo civil: apresentação do debate. Disponível em https://aplicacao.mpmg.mp.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/
474/Ativismo%20e%20garantismo_Ramos.pdf?sequence=3, acesso em 11 de setembro de 2016 às 18hs45min.
2 Idem.
3 Idem.
4 Idem.
5 Idem.
6 Idem.
7 Idem.
8 Idem.
9 Idem.
10 Idem.
11 Idem.
12 Idem.
13 Idem.
14 CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e competência. 13ª ed. rev. e atual., São Paulo: Editora Saraiva, 2004, pág. 5.
15 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil - Teoria geral do processo e processo de conhecimento, vol. 1, Salvador: Editora JusPodium, 2008, 9ª edição, p. 65.
16 RAMOS, Glauco Gumerato. Ativismo e garantismo no processo civil: apresentação do debate. Disponível em https://aplicacao.mpmg.mp.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/474/
Ativismo%20e%20garantismo_Ramos.pdf?sequence=3, acesso em 11 de setembro de 2016 às 18hs45min.
17 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil e processo de conhecimento. 13ª ed., rev., atual. e ampl., Salvador: Editora JusPodivm, 2011, pág. 45.
18 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. 10ª ed., rev., atual. e ampl., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, pág. 79.
19 RAMOS, Glauco Gumerato. Ativismo e garantismo no processo civil: apresentação do debate. Disponível em https://aplicacao.mpmg.mp.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/474/
Ativismo%20e%20garantismo_Ramos.pdf?sequence=3, acesso em 11 de setembro de 2016 às 18hs45min.
20 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil e processo de conhecimento. 13ª ed., rev., atual. e ampl., Salvador: Editora JusPodivm, 2011, págs. 22/23.
21 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil e processo de conhecimento. 13ª ed., rev., atual. e ampl., Salvador: Editora JusPodivm, 2011, pág. 24.
22 RAMOS, Glauco Gumerato. Ativismo e garantismo no processo civil: apresentação do debate. Disponível em https://aplicacao.mpmg.mp.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/474/
Ativismo%20e%20garantismo_Ramos.pdf?sequence=3, acesso em 11 de setembro de 2016 às 18hs45min
23 MITIDIERO, Daniel. Antecipação de tutela. Da tutela cautelar à técnica antecipatória. 2ª ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, pág. 114.
24 Idem.
25 "Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e:
I - haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou
II - fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu.
[...]
§ 6o A tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso."
26 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. 10ª ed., rev., atual. e ampl., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, pág. 241.
27 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. 10ª ed., rev., atual. e ampl., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, pág. 242.
28 Basta pensar na concessão de tutela antecipada com o objetivo de se realizar determinada cirurgia. A oitiva posterior, em sede de contraditório, da parte contrária não terá eficácia alguma, vez que o fato já estaria consumado com a realização da cirurgia.
29 A outra face do princípio do contraditório é o poder de influenciar na decisão que venha a ser proferida contra o indivíduo ouvido. Isto é, não basta somente ser ouvido, ao indivíduo deve ser dado do poder de influir no julgamento.
30 Para hipóteses tais, o magistrado deverá necessariamente fincar a fundamentação de sua decisão no devido processo legal substantivo, que é, no direito brasileiro, considerado como a cláusula geral que determina o princípio da proporcionalidade.
Edvaldo Barreto Jr.
Advogado. Sócio fundador do escritório Barreto Dolabella Advogados. Head da Área de Direito Publicitário e Contratações Públicas. Procurador do Distrito Federal. Mestre em direito. MBA em Marketing