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Crimes financeiros, criptoativos e coculpabilidade do Estado brasileiro

O caos regulatório e a omissão estatal impõem o reconhecimento da coculpabilidade do Estado brasileiro nos crimes financeiros que envolvem criptoativos.

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Atualizado em 17 de agosto de 2022 08:31

Um dos grandes desafios associados à estruturação da justiça criminal consiste em impedir que os resultados do processo penal sejam aleatórios, ou seja, desassociados ou insensíveis à realidade dos fatos1.

Na minha atuação como advogado criminalista, cada vez mais sou procurado por clientes negociadores de criptoativos que se veem surpreendidos ao receber uma intimação da Polícia Federal para prestar depoimento no âmbito de uma investigação que visa apuração de crimes financeiros, ou recebem a visita do oficial de justiça trazendo uma citação para apresentar resposta à acusação em ação promovida pelo Ministério Público Federal que tramita numa vara de crimes lavagem de dinheiro.

Invariavelmente, me deparo com um cenário no qual é perfeitamente verificável dúvida razoável quanto à culpabilidade na prática dos atos supostamente imputados a eles, ou seja, uma ausência absoluta de censurabilidade, reprovabilidade de suas condutas, uma vez que "deveriam" ter agido de modo diverso do injusto em tese praticado.

Note-se, antes de prosseguirmos, que não há uma autoridade monetária emissora das criptomoedas, portanto não são ativos financeiros e nem são considerados moeda corrente (divisas).

Na verdade, é facilmente perceptível que o Estado brasileiro - em uma postura que chamarei de "bipolar" -estimula e depois reprime a livre iniciativa no âmbito do mercado de negociação de criptoativos, "enxergando uma responsabilidade penal objetiva" na apuração imputações que são mera consequência de omissão estatal na regulação do mercado desses ativos digitais no Brasil.

Para realizar um aprofundamento nesta reflexão, é necessária a observação da realidade social na qual nosso sistema jurídico-penal está inserido, partindo da premissa de que o direito é um instrumento de engenharia social, um conjunto de normas cujo escopo e a solução de situações de tensão, conflitos de interesses.

É cediço que, uma economia liberal, toda determinação imposta pelas fontes do Direito influencia a forma como os agentes econômicos se comportam na busca pelos seus interesses, devendo as relações comerciais, financeiras e transacionais em geral ser protegidas por serem os pilares do desenvolvimento econômico que proporciona o bem-estar de uma sociedade.

Tratando-se mais especificamente do mercado de criptoativos, é notório e incontroverso que reina atualmente um caos regulatório.

Imperioso consignar que, por uma questão de hermenêutica jurídica, as leis que restringem direitos devem ser sempre interpretadas restritivamente, uma vez que a legislação infraconstitucional necessita de uma interpretação em harmonia com os princípios, as regras e os valores constitucionalmente assegurados.

Lamentavelmente, o Estado brasileiro se manteve inerte, negligente todos esses anos, não produzindo legislação robusta para regular o mercado de criptoativos no Brasil.

Nem mesmo a natureza jurídica e as características desses ativos digitais está definida em lei.  Ao contrário, o que encontramos em nosso ordenamento jurídico é um caos onde as diversas instituições deixam claro que não estão sob suas responsabilidades a normatização dessa classe de bens e, muito menos, a normatização das transações comerciais a eles relacionadas.

Partimos da base constitucional, em especial o art. 170 da Constituição Federal que prevê a livre iniciativa como princípio informativo da ordem econômica, assegurando, em seu parágrafo único, o direito ao livre exercício de qualquer atividade econômica.

Destacamos que as normas constitucionais programáticas impõem um comportamento ao Estado uma vez que é ele o detentor do monopólio da produção jurídica. Tais normas possuem sim uma eficácia, como bem leciona José Afonso da Silva: "... criam uma situação não apenas de expectativa, mas de vantagem efetiva, ainda que diminuta, em favor dos sujeitos que se acham em condições de se beneficiar com a vantagem de sua aplicação e observação".2

No âmbito infraconstitucional, a norma que serve de vetor para a interpretação e aplicação de todas as leis que tratam de temas relacionados à atividade econômica é, sem dúvidas, a que passou a vigorar com o advento da lei 13.874/19 que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelecendo garantias de livre mercado aos agentes econômicos. O art. 1º, parágrafo 2º, da lei1 3.784/19 assim dispõe: "Interpretam-se em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas".                 

Portanto, temos um cenário jurídico no qual as normas que regem a atividade econômica devem ser interpretadas e aplicadas sempre em favor da liberdade dos agentes econômicos e suas iniciativas empreendedoras.

Note-se que no art. 4º, inciso VII, da lei 13.784/19, o legislador determina que o Estado evite o abuso de seu poder regulatório que possa decorrer na introdução de "limites à livre formação de sociedades empresariais ou de atividades econômicas".

Tratamento do tema pela comissão de valores mobiliários: "Note que os criptoativos, especialmente quando criados para realização de pagamentos ou transferências financeiras, como é o caso do Bitcoin, não são emitidos, controlados, garantidos ou regulados por qualquer autoridade monetária, o que significa dizer que eles compõem um universo totalmente separado das moedas oficiais, como o dólar ou o real. Desse modo, a aceitação desses ativos virtuais como meio de pagamento não é mandatória. Além disso, a alta volatilidade dos preços dos criptoativos indica que eles não são adequados para assumir duas das três funções de uma moeda oficial: unidade de conta e reserva de valor. Os criptoativos também não se confundem com as chamadas moedas eletrônicas, previstas na legislação brasileira, que nada mais são do que recursos em reais mantidos em meio eletrônico em uma dada instituição financeira, e que podem ser utilizados como meio de pagamento, assim como as notas físicas de real. Os criptoativos não residem em registros digitais de nenhuma instituição financeira."3

Do tratamento do tema pelo Banco Central do Brasil: O Banco Central (BACEN) tratou do tema inicialmente no ano de 2014, por meio do Comunicado 25.306, de 19/2/14, no qual esclareceu que as criptomoedas são denominadas em unidade de conta distinta das moedas emitidas por governos soberanos e não caracterizam dispositivo ou sistema eletrônico para armazenamento de reais.

No ano de 2017, o BACEN reforçou essa posição através do Comunicado 31.379 de 16/11/17 ("Comunicado de 2017") e de um FAQ (Frequently Asked Questions) em que referida autoridade monetária esclareceu que as criptomoedas não são reguladas, autorizadas ou supervisionadas pelo Banco Central do Brasil.

Do tratamento do tema pela receita federal do Brasil: INSTRUÇÃO NORMATIVA 1.888, de 3/5/19 da RECEITA FEDERAL do BRASIL, que assim dispôs: "Criptoativo: a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal"; "Exchange de criptoativo: a pessoa jurídica, ainda que não financeira, que oferece serviços referentes a operações realizadas com criptoativos, inclusive intermediação, negociação ou custódia, e que pode aceitar quaisquer meios de pagamento, inclusive outros criptoativos".

Nesse ambiente jurídico, o papel dos tribunais e da advocacia adquire uma relevância singular para proporcionar segurança jurídica aos agentes econômicos que transacionam tais ativos digitais, não sendo exagero afirmar que a atuação dos operadores do direito neste ambiente de lacunas normativas possui um forte viés de fonte do direito.

Precisamos tem em conta que o cotidiano comercial é pautado pelas necessidades do empreendedorismo, da livre iniciativa, que se caracterizam pela pouca aversão ao risco, e, pela sua natureza, exige formas jurídicas que permitam a organização da circulação de produtos e a proteção dos agentes econômicos.

Portanto, a evolução sociológica e mercadológica precisa estar inserida quando da aferição de um possível desvalor da conduta do agente a quem se imputa um crime financeiro, em especial porque nossa Constituição Federal e todo o sistema jurídico sob sua égide estimulam e garantem a especial liberdade de contratar, de negociar, de comerciar, de participar ativamente da atividade econômica em nosso país.

Pensemos então o direito penal como um direito penal constitucional, com base garantista, nos princípios constitucionais, como "reitores limitativos da intervenção estatal o campo a liberdade e da integridade física individual".4

Neste ponto, destacamos que a aferição da culpabilidade exige um esforço responsável e que possui extrema relevância, uma vez que tem caráter normativo, valorativo, não podendo aceitar que o direito penal - com sua natureza de ultima ratio - seja aplicado em condutas que o sistema jurídico pátrio como um todo as legitima e até estimula.

Ora, na teoria geral do crime tem na culpabilidade um juízo de censura pela conduta praticada pelo agente, e tem como premissa a absoluta liberdade do autor do fato para escolher entre a conduta de acordo com o Direito e a conduta ilícita.

Para a consumação de um tipo penal há que se verificar uma conduta humana lesiva aos interesses da sociedade, um comportamento que enfraqueça a coesão do tecido social.

É muito simples e fácil constatar que, se o "Estado-Legislador" não oferta, não apresenta ao indivíduo de forma clara qual a conduta proibida pela lei, então não se pode culpar alguém por agir em desacordo com o desejo estatal, uma vez que não está expressa de forma perfeitamente cognoscível qual a conduta ilícita, reprovada ordenamento jurídico. Este fato é de extrema relevância, afinal, "el estúdio de la conducta es propriamente el examen del punto em el cual el hombre entra em contacto com el ordenamento".5

Se pensarmos na possibilidade de constatação de culpabilidade em condutas relacionadas aos negócios com criptoativos, é forçoso, então, reconhecer a presença da coculpabilidade do Estado-Legislador por sua omissão regulatória.

Se o Estado brasileiro é responsável pelo caos, uma vez que estimula a livre iniciativa e novos mercados e ao mesmo tempo reprime os agentes econômicos que buscam a inovação negocial, é um Estado co-culpável, devendo ser dividida a responsabilidade da opção pela "conduta ilícita" e atenuando a culpabilidade pela prática do "injusto".

É preciso que se encontre uma resposta harmônica e uniforme para a questão do potencial utilização de criptoativos para a prática de crimes financeiros, lembrando que tais ativos não constituem ativos financeiros, como bem verificamos nas linhas acima.

Ou seja, a sentença condenatória penal precisa refletir a culpabilidade do acusado com a máxima acurácia possível, a fim de impedir a punição pela prática de condutas que não constituem crimes ou por indivíduos que não carregam culpabilidade alguma pelos fatos a eles imputados.

O Estado brasileiro é notadamente co-culpável pela prática de condutas que apresentam tipicidade formal de crimes financeiros, uma vez que induz os agentes econômicos que atuam no mercado de criptoativos ao cometer erro de proibição, nos moldes do art. 21 de nosso Código Penal.

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1 POSNER, Richard. "An Economic Approach to the Law of Evidence", Stanford Law Review, v. 51, p. 1477, 1999.

2 Silva, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 5ª ed. São Paulo, Malheiros, 2001. Pag.154. 

3 CRIPTOATIVOS - SÉRIE ALERTAS, Comissão de Valores Mobiliários, maio 2018, pag 03.

4 Palazzo, F.C. Valores constitucionais e direito penal. Pag. 22.

5 Del Rosal, Juan.  Tratado de derecho penal español. Pag 567.

Antonio Valença da Silva

Antonio Valença da Silva

Servidor federal aposentado do Ministério da Justiça. Advogado atuante na seara do direito empresarial e direito penal econômico.

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