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Uma palavra sobre a resolução 7, de 22 de março de 2022

Num mundo globalizado o DIPr é essencial para a realização de Justiça. Os tribunais e juízes, neste cenário, são verdadeiros agentes da concretização da governança global e, portanto, agentes diretos da observância das decisões adotadas na Comunidade Internacional, em favor da proteção de vulneráveis.

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Atualizado em 8 de agosto de 2022 10:54

Proposições gerais

Em 22 de março de 2022 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), através de seu Plenário, deliberou e aprovou o Ato Normativo1 que DETERMINA e ORIENTA os Juízes e tribunais Federais, bem como a Advocacia Geral da União, Autoridade Central, Ministério Público Federal e, até mesmo os Juízes Estaduais, a adequarem sua função legal e seu comportamento como atores jurídicos, nos casos de subtração internacional de menores amparados na Convenção de Haia de 1980, ratificada e em vigor para Brasil, desde 1999, com a promulgação do Decreto Legislativo 79, de 15 de setembro daquele ano e Decreto Presidencial 3.413, de 14 de abril de 2000.

De tal sorte que, a partir da entrada em vigor desta Resolução, os atores jurídicos deverão observar ademais da Convenção e demais normas de observância obrigatória já vigentes, , esta Resolução que, considerando o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) exarado pelo Pleno do Tribunal no julgamento da Medida Cautelar em Ação Declaratória de Constitucionalidade 12-6/Distrito Federal2, parece ter força vinculante como norma primária, do mesmo modo que os diplomas legais citados.

Reflexões sobre a natureza jurídica das Resoluções do CNJ

Como é sabido à saciedade, o tema da natureza jurídica das decisões do CNJ é controvertido na doutrina, muito apesar da referida decisão do Pleno do STF ter, de forma clara e expressa, ampliado sua potencialidade legal.

Quando da Emenda Constitucional 45, de 2004, houve a criação deste órgão, que à diferença de seus inspiradores da Europa e Estados Unidos da América do Norte, integra o Poder Judiciário, sem ser órgão judicante.

Sua finalidade e objetivo pareciam estar vinculados à uma demanda interna por um órgão de controle do poder judiciário nacional, cujas funções constitucionais, seriam apenas e tão somente administrativas, relacionadas à organização e eficiência dos órgãos do poder judiciário e da atividade exercida pelos magistrados nacionais. Daí ser de composição mista, albergando em seus quadros pessoas alheias ao poder judiciário, exercendo atividade administrativa de controle dos órgãos e magistrados.

Também como sabido, as decisões exaradas em forma de Atos Normativos do CNJ são vinculantes para todos os órgãos, instâncias e magistrados, exceto, claro, para o STF e seus ministros.

Até aí, num olhar desatento, poderia parecer que a determinação do constituinte derivado seguia ao encontro dos anseios de um Estado Democrático de Direito; pois não há possibilidade de democracia real sem accoutability dos poderes de um Estado.

Ocorre que, por provocação da magistratura nacional, representados pela ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS - AMB, foi promovida a referida Ação Declaratória de Constitucionalidade em prol da Resolução 7 do CNJ, cujo pedido foi decidido procedente. Nesta demanda, a fim de decidir o pedido realizado pela Autora, o STF de forma expressa e ao arrepio da norma criadora do CNJ, amplia suas funções, permitindo que este órgão, administrativo e de composição mista, adotasse Resoluções com força de lei.

Chegamos aqui: determinação e orientação para os atores jurídicos

Muito bem adaptado às ampliações de competência reconhecidas pelo STF, o CNJ passou a emitir uma séria de ordens, através de Atos Normativos e Resoluções que não só passavam a organizar a atividade dos tribunais e órgãos do poder judiciário nacional, mas que também passaram a obrigar atores jurídicos ampliando as fontes formais do Direito.

Nesta toada surge no sistema jurídico nacional a Resolução que ora se comenta.

Não se nega que algumas de suas providências possam ser consideradas "boas" e "úteis" a partir de uma visão maniqueísta e utilitarista da função judicante. Afinal, até mesmo um relógio quebrado acerta a hora por duas vezes ao dia!

A Resolução referida, que DETERMINA e ORIENTA os atores jurídicos, com força de lei, faz uma interpretação da Convenção de Haia de 1980 que, ao justificar tal atuação em favor de uma integridade institucional e procedimental, retira, de forma clara, a capacidade dos atores na aplicação das normas previstas, engessando a análise do caso concreto, que ademais de contar com a participação no contraditório de advogados, juízes, membros do ministério público federal, passa a ter o CNJ "falando" a partir de tal obrigatoriedade.

Por outro lado, até mesmo no que pode aparentar uma "boa" decisão, frustra por iluminar a incapacidade do judiciário nacional de aplicar de forma adequada as normas de direito internacional privado (DIPr), obrigatórias, pois normas jurídicas como quaisquer outras integrantes de nosso sistema de justiça.

Assim se afirma, porque da leitura desta Resolução, é possível encontrar normas como a disposta no § 1°, do art. 4° da própria Convenção de Haia de 1980, cuja redação segue a continuação:

§ 1" Considera-se guarda o direito de ter a criança sob seus cuidados e de decidir sobre o lugar de residência dela, na forma do artigo 5", alínea "a", da Convenção.

Ora, o que está havendo nos processos de restituição internacional de crianças ao amparado da Convenção de Haia de 1980 que demanda uma Resolução de um órgão como o CNJ, que precisa repetir um artigo da convenção para determinar sua aplicação?

Ou, no mesmo sentido, a determinação constante do art. 5º da Resolução 7, que assim dispõe, numa reprodução do que já consta da referida convenção:

Art. 5" Aplica-se a Convenção à transferência ou retenção ilícita da criança do Estado de sua residência habitual.

Parágrafo único. Considera-se ilícita a transferência ou retenção quando:

  1. Tenha havido violação a direito de guarda, e
  2. Esse direito estivesse sendo exercido de maneira efetiva, individual ou conjuntamente, no momento da transferência ou da retenção, ou devesse sê-lo caso tais acontecimentos não tivessem ocorrido.

Mas não é só isso. Outra questão parece merecer mais atenção. Por meio de uma Resolução de um órgão administrativo, com independência se considerá-la boa ou má, o CNJ legisla sobre a Convenção de Haia, inserindo dispositivo que nela não foi pactuado, modificando sobremaneira a norma consensual estabelecida na governança global em matéria de DIPr. E disso dá conta o § 5°, do art. 14 da Resolução referida, em que, textualmente dispõe que

O juiz poderá deixar de conhecer da alegação sobre grave risco contida no art. 13, alínea "d", se a prova for de difícil ou demorada obtenção e a matéria puder ser tratada pelas autoridades do país de residência habitual da criança.          

Numa orientação de política legislativa que claramente está mais preocupada com o tempo do que com o bem estar da criança, a Resolução, que tem forma de lei, AUTORIZA o juiz ou tribunal a deixar de conhecer a alegação de grave risco por DIFICULADE ou DEMORA em obtenção de prova. Então é isso? O CNJ tem competência legislativa para "corrigir" uma convenção internacional e, ainda, interferir na fase instrutória de um processo, pois é dela que deve surgir o direito num processo em que fatos são alegados?

Parece que tal opção legislativa inverte o ditado popular: vão-se os anéis e ficam os dedos. Nela enxerga-se: vão-se os dedos, mas conservam-se os anéis. Sacrifica-se a criança, mas preserva-se a lei! Sacrifica-se a sacralidade do princípio do contraditório e da ampla defesa, em favor de uma suposta integridade institucional.

Numa observação final

Parece claro que a integridade das funções do poder judiciário e de seus membros deveriam repousar numa educação jurídica segura, substantiva, que oferecesse e obrigasse a todos os que neste âmbito atuem a aprender o DIPr em sua integralidade. Para isso esta disciplina não pode seguir sendo relegada nos currículos acadêmicos e preterida em concursos, como sendo um vaso de flores que apenas enfeita o lugar onde está.

Num mundo globalizado o DIPr é essencial para a realização de Justiça. Os tribunais e juízes, neste cenário, são verdadeiros agentes da concretização da governança global e, portanto, agentes diretos da observância das decisões adotadas na Comunidade Internacional, em favor da proteção de vulneráveis.

E para a realização deste mister, a atuação  de um órgão como o CNJ, desta forma como indicada, poderá, a médio e longo prazo, prestar um desserviço à realização de justiça, muito mais do que um serviço originado de boas intenções.

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1 Consultar o teor do Ato Normativo referido no site oficial do CNJ, no link: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4458#:~:text=Disp%C3%B5e%20sobre%20a%20tramita%C3%A7%C3%A3o%20das,14%20de%20abril%20de%202000.&text=DJe%2FCNJ%20n%C2%BA%2077%2F2022,de%20abril%20de%202022%2C%20p.

2 Cf. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=606840

 

Renata Alvares Gaspar

Renata Alvares Gaspar

Sócia da Massarente Gaspar Advocacia. Doutora em Direito Internacional Privado. Professora da ESPM. Líder do Grupo de Estudos DGC. Expert em Arbitragem nacional e internaiconal.

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