Tragédia PIX - Medidas Assecuratórias per saltum: em busca da efetividade da persecução criminal patrimonial
Na criminalidade cibernética, o modus operandi da transferência de valores ocorre através do PIX, dificuldade ao Estado-investigação superada pelo que é denominado por Éverson Contelli de Medidas Assecuratórias Per Saltum.
sexta-feira, 5 de agosto de 2022
Atualizado em 8 de agosto de 2022 11:13
Desde que instituído o arranjo PIX e aprovado seu regulamento pela Diretoria Colegiada do Banco Central do Brasil, em 12 de agosto de 2020, na Resolução BCB 1/20, o sistema financeiro brasileiro ingressou em um movimento de impensável retrocesso, em que aproxima o real e o virtual (FULLER, 2020), em evidente avanço disruptivo das formas de pagamentos, integrando as instituições financeiras e reinventando o Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB).
Mas esta inovação deve observar regulações mínimas sobre a) estrutura de gerenciamento de riscos operacional e de liquidez, conforme disposto na Circular 3.681, de 4 de novembro de 2013; b) política de segurança cibernética, plano de ação e de resposta a incidentes, contratação de serviços de processamento e armazenamento de dados e de computação em nuvem, conforme disposto na Circular 3.909, de 16 de agosto de 2018; c) política, procedimentos e controles internos visando à prevenção da utilização do sistema financeiro para a prática dos crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, de que trata a lei 9.613, de 3 de março de 1998, e de financiamento do terrorismo, previsto na lei 13.260, de 16 de março de 2016, conforme disposto na Circular 3.461, de 24 de julho de 2009, e, a partir de sua revogação, na Circular 3.978, de 23 de janeiro de 2020; d) procedimentos para a execução das medidas determinadas pela lei 13.810, de 8 de março de 2019, que dispõe sobre o cumprimento de sanções impostas por resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas, incluindo a indisponibilidade de ativos de pessoas naturais e jurídicas e de entidades, e a designação nacional de pessoas investigadas ou acusadas de terrorismo, de seu financiamento ou de atos a ele correlacionados, conforme disposto na Circular 3.942, de 21 de maio de 2019; e e) outras matérias que o Banco Central do Brasil vier a indicar; e II - supervisão proporcional baseada no risco.
Pois bem, para promover diálogo, existe até o que é denominado de Fórum PIX, previsto no art. 6º da Resolução BCB 1/20, coordenado pelo Banco Central do Brasil para atender todos os interesses de efetivação da novel medida, prenúncio de uma moeda digital.
Essa capacidade dialógica exprime o que há de mais arrojado em termos de inclusão social, digital e política.
Pena que não se comunicaram com o esquecido sistema de justiça criminal, um empobrecimento da democracia, já que as consequências da tragédia PIX alcança, na seara criminal, número indeterminado de pessoas, evidente violação ao art. 4º da própria norma BCB que, não por acaso, exige processos e estruturas de governança do PIX que devem garantir a representatividade e a pluralidade de instituições e de segmentos participantes; o acesso não discriminatório; e a mitigação de conflitos de interesse.
Com efeito, há interesse do sistema de justiça criminal em minimizar os efeitos da engenharia financeira, prática rotineiramente utilizada para imprimir aparência de licitude em quantias provenientes da criminalidade de massa e organizada.
Mas o descamisado processo penal, que com o PIX será acionado milhares de vezes (ao dia) foi esquecido, abandonado, como soe ocorrer e não ingressa na arena, reafirmando aspectos do processo neoliberal de desregulamentação público-estatal da economia (paradoxo da regulamentação PIX) pelo sórdido amor ao lucro, em que nem todos melhoram de vida com a troca, conforme advertiu Aristóteles em Ética a Nicômaco (ARISTÓTELES).
E qual a relação do PIX, com o descamisado processo penal, o direito penal, a economia e a realidade brasileira?
Bem, o Direito Penal Econômico evidencia que cada vez mais, fatores de criminalidade e consequente análise de prevenção tem relação direta com a decisão racional do criminoso, recorte das teorias etiológicas da criminologia. O Direito Penal é econômico. A economia constitui o substrato dos comportamentos cibernéticos indesejados e, a persecução criminal, como primeira faceta do processo penal passa a exigir uma investigação econômica, financeira, com atuação persecutória patrimonial.
Mas o que significa o golpe do PIX. É preciso cautela porque não existe Golpe do PIX, como normalmente reproduzido. Cuida-se de transação absolutamente segura, uma característica dos ativos virtuais.
O que existe é um crescimento exponencial da criminalidade cibernética, decorrência de múltiplos fatores, como também pela crescente utilização de ativos digitais, necessidade de representação em crimes de estelionato (pacote Anticrime e modificação da ação penal do principal tipo penal subsunção dos crimes cibernéticos - estelionato) e a confluência desse momento de evolução tecnológica, do atual, do real e do virtual, com a pandemia. Nessa multiplicidade de fatores que geraria prejuízos com ou sem ativos digitais, surge uma nova forma de pagamento que, por coincidência, passa a ser utilizada como um espectro do modus operandi dos crimes cibernéticos.
Com efeito, existiria explosão dessa criminalidade com ou sem PIX, o que ocorre é a necessidade de ajustes para reduzir essas externalidades, por lei ou pelo consenso, como ensina Coase (COASE, 1960), luz que se propõe nestas linhas.
Mas o PIX não é um retrocesso e, possivelmente, inusitado Projeto de lei 583/21 apresentado por um Deputado Paulista, Campos Machado (Avante), não deve ser aprovado, senão abrirá espaço para interessante e necessária discussão. A política de desregulamentação ou de regulamentação econômica gera o empobrecimento da democracia? Existe um deficit de responsabilização social das instituições financeiras? Como atitudes colaborativas e dialógicas entre instituições financeiras e sistema de justiça criminal podem incrementar o risco na decisão racional pela conduta e fomentar a prevenção geral? Como promover a recuperação de ativos?
Note-se, enquanto o PIX pode ser compreendido como a conexão do real e do virtual, a inércia de algumas instituições financeiras na comunicação com a Polícia Judiciária alcança a procrastinação de meses na entrega do caminho do dinheiro, ainda que com intervenção administrativa e proteção por ordem judicial, algo inimaginável quando a conduta está no virtual, contradição da regulamentação estatal do arranjo PIX.
Com a prática do crime cibernético, plurilocal ou à distância e consequente realização do PIX pela vítima, a Polícia Judiciária tem apenas dois caminhos quanto a recuperação de ativos: a) comunicar a transação suspeita, o que obriga os bancos a cumprir a lei de lavagem de capitais e obstar os novos saques, ou b) manejar uma medida judicial, normalmente representada pelas Medidas Assecuratórias restritivas de patrimônio, a exemplo do sequestro e do arresto.
Ocorre que quaisquer das Medidas Assecuratórias previstas no Código de Processo Penal e Legislação Penal Especial se mostram inefetivas, principalmente, após a descoberta de células criminosas destinadas exclusivamente para pulverização do dinheiro do crime em centenas de contas. Na hipótese, demonstrada a inefetividade da medida jurisdicional, caberá ao delegado de polícia ou representante do Ministério Público formular nova representação, destinada ao bloqueio da segunda conta destinatária do crédito e assim sucessivamente, com a ressalva de que pode acontecer dos comandos judiciais não serem executados pelos bancos, pela simples constatação de que em nenhuma das contas há recurso a suportar a constrição.
E qual a solução? Diante da complexidade empírica dos conflitos da modernidade e, sem desconsiderar a complexa fenomenologia do processo penal, não se pretende nessas singelas linhas transpor processo civil, metáfora da Cinderela de Carnelluti, ao processo penal.
O sistema de justiça criminal e suas garantias constitucionais já albergam fundamentos úteis para sustentar a existência das medidas assecuratórias per saltum, bastando observar a desnecessidade momentânea de qualificação do indiciado ou do investigado, seja para instaurar inquérito policial, seja para oferecimento e consequente recebimento da denúncia.
A partir da correta compreensão do art. 5º do Código de Processo Penal que disciplina que, nos crimes de ação pública (normalmente os crimes cibernéticos são crimes contra o patrimônio de ação penal pública, ainda que condicionada) o inquérito policial será iniciado de ofício ou mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, ou a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo que conterá, sempre que possível a narração do fato, com todas as circunstâncias; a individualização do indiciado ou seus sinais característicos e as razões de convicção ou de presunção de ser ele o autor da infração, ou os motivos de impossibilidade de o fazer.
Com efeito, defende-se o sequestro e arresto per saltum, com consequente diferimento da identificação, do momento da representação do delegado de polícia ou do representante do Ministério Público e consequente deferimento da medida, para o momento do cumprimento, com imediata comunicação a juízo, porquanto o sistema financeiro e seus núcleos de segurança dispõem de tecnologia suficiente a realizar a mera identificação do nome e CPF.
Na hipótese, ao conjugar o art. 5º, com o art. 125 e seguintes do próprio Código de Processo Penal, tem-se que caberá o seqüestro dos bens imóveis, adquiridos pelo indiciado com os proventos da infração, ainda que já tenham sido transferidos a terceiro e, para a decretação do seqüestro, bastará a existência de indícios veementes da proveniência ilícita dos bens, assim como caberá o sequestro dos bens móveis, nos termos do art. 132, quando não cabível a busca e apreensão.
Compreendendo pela necessidade de sequestro, temos que o magistrado poderá emitir decisão em medida assecuratória per saltum, ou seja, determinando que a instituição financeira de primeira destinação dos valores realize o imediato bloqueio da quantia correspondente e, caso não encontrado fundos suficientes para suportar a investigação patrimonial, que imediatamente promova o bloqueio da(s) conta(s) subsequente(s) (destinatária(s), ainda que de outra instituição financeira, cuja titularidade e CPF deverão ser fornecidas, de imediato pela instituição anterior e assim, per saltum, até identificar o valor ou se comprovar que houve saque, o que simplesmente representará concretização da prometida política de segurança cibernética e plano de ação e de resposta a incidentes, conforme alínea "b" do inciso I do §5º do art. 3º da Resolução BCB 1/20, neutralizando o alto custo e deixando de distribuir as perdas entre todos os brasileiros.
Idêntico raciocínio poderá ser utilizado pelo delegado de polícia, responsável pela apreensão, o qual, observando-se rigorosamente o CPP, sem empréstimos do processo civil, deverá emitir ordem à instituição financeira para apreensão dos valores ilícitos, seguindo-se o procedimento anteriormente mencionado, per saltum, até o bloqueio dos valores - responsabilidade das instituições financeiras -, compreendendo-se, simplesmente, que o país não é uma terra sem lei. Não se cuida de simples adaptação dos arquétipos tipológicos já sedimentados pela doutrina criminal clássica, ou do processo civil, mas necessário pensar da autonomia do processo penal, em busca de respostas consentâneas, em estrita observância da lei, como observa Coutinho.
Assim como a revolução PIX tem efeitos colaterais, o sequestro per saltum também, o que motiva uma regulamentação, com debate, essencialmente para discutir limite de bloquei (aparentemente o limite da transferência); limite de saltos; gerenciamento de conflitos com relação a terceiros de boa fé; criação de uma lógica de persecução patrimonial per saltum, com relatório unificado para entrega à Polícia em prazo razoável, o que evitaria, por evidente, o bloqueio per saltum; tempo transcorrido da transferência criminosa à data do bloqueio, dentre outros assuntos.
A inércia do Estado investigação e das instituições financeiras não podem onerar terceiros de boa fé. Por evidente, não haveria sentido promover o sequestro per saltum após dias da prática criminosa, quando então possível, se observados os prazos pelas instituições financeiras, o sequestro direto, ou medida assecuratória destinada a retenção de outros bens.
Com efeito, não existe golpe do PIX, mas sim desinformação e ausência de diálogo entre os sistemas jurídico, econômico e financeiro. Diante de muitas tragédias - com milhares de vítimas do setor privado e notícia de transferências milionárias, inclusive, de contas da Fazenda Pública -, no momento em que se vivencia uma sociedade de risco, com pretensão, quem sabe, de uma moeda digital, precisamos, simplesmente, cumprir as disposições do Processo Penal autônomo, compreender a realidade econômica, a criminalidade econômica, a não revitimização e buscar modos objetivos (real) e sem elucubrações para apresentar respostas técnico jurídicas, disruptivas (digital), instrumentais e efetivas à persecução patrimonial para contenção da tragédia PIX.
Dialogar é preciso para o bem da sociedade.