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PEC Pinocchio

A PEC Pinochet se coloca como uma mentira de lesa-democracia; um escudo às responsabilidades e aos ônus decorrentes de função executiva anterior, cujos bônus continuarão sendo regiamente fruídos por seu destinatário.

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Atualizado às 14:43

Onze de setembro de 1973: o general Augusto Pinochet assume o poder no Chile a partir do golpe militar que liderou com apoio dos EUA. Antes de deixar parcialmente o poder, após duas décadas de chumbo, o ditador costurou o cargo de "senador vitalício" para vestir a si próprio, quando assumisse a condição de ex-presidente. Buscava a proteção do novo cargo contra as acusações criminais que já lhe pesavam aos borbotões.

A artimanha - bem à feição das ditaduras rastaqueras da segunda metade do século passado - embora tenha sido exitosa em alguma medida, no frigir dos ovos não impediu que Pinochet sofresse responsabilizações, inclusive por crimes contra a humanidade, já em foros internacionais.

Mas nada é tão ruim ou retrógrado que não possa ser copiado. Copiado, aliás, por algo ainda pior. No mínimo, ainda mais retrógrado, ainda mais atrasado que o "original".

Pois a mídia nacional repercute que em pleno ano de 2022 alguns governistas ensaiam importar para a Terra brasilis a malandragem de Pinochet. Eureka!: urde-se uma PEC (proposta de emenda constitucional) destinada a transformar ex-presidentes em "senadores vitalícios".

Felizmente aqui temos um sistema constitucional que em sua opção democrática traz algumas blindagens. Um mínimo de limites a certos arroubos ditatoriais. 

Um sistema com aspectos fundantes de rigidez - inclusive dispositivos de defesa ao regime democrático - que sequer podem ser fustigados por propostas de emendas constitucionais. Há repelentes ditatoriais na Constituição cidadã, diria Ulisses!

Todo poder é do povo, dele emana, e é o povo quem o exerce. Ou diretamente ou por meio de seus representantes eleitos, nos termos da Constituição. Esse é um valor inegociável, princípio fundamental expresso no artigo inaugural da Carta Constitucional (em seu único parágrafo).

O artigo 60, §4º, II, da CR/88 estabelece que não será objeto de emenda qualquer proposta tendente a abolir o voto direto, secreto, universal e periódico.

O poder legislativo nacional é exercido pelo Congresso Nacional, composto pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. Os senadores, dada a forma federativa, são os representantes populares que representam os Estados e o Distrito Federais e são eleitos segundo o princípio majoritário. São eleitos três por Estado (e DF). Eleitos pelos cidadãos respectivos. Eleitos!

A criação de uma nova figura de senador biônico (quem lembra do "pacote de abril, do Geisel em 1977?), à margem do sistema eleitoral, significa a abolição do voto direto, secreto, universal e periódico para certos "mandatários" de uma das casas legislativas destinadas a representar o povo no exercício de seu (do povo!) poder. Viola absoluta e evidentemente a arquitetura constitucional pétrea aqui referida.

A proposta é flagrantemente inconstitucional!

Uma PEC dessa natureza ensejaria a infiltração espúria de pessoas deslegitimadas num dos poderes de representação democrática. Seria a contaminação antidemocrática de todo um Poder, a partir de um número indeterminado de senadores não-eleitos: seis, sete, dez... 

Para se tornar mais evidente seu aspecto antidemocrático, basta fazer um exercício de extrapolação. Fosse uma PEC assim constitucionalmente válida, também seria outra "um pouco" mais abrangente. Por exemplo, uma que alçasse também os ex-governadores estaduais e distritais à condição de senadores biônicos (afinal, no Senado há também o aspecto federativo da representação dos Estados e do Distrito Federal...). Chutando uma média (conservadora) de 5 ex-mandatários vivos por unidade federativa, haveria mais de uma centena de senadores biônicos. Ou seja, a maioria da Casa... 

Mesmo pensando numa minoria biônica, só uma meia dúzia de "ex", pode-se alterar significativamente a vontade do legislador e a produção parlamentar; as votações, as maiorias formadas, as comissões, os consensos, os dissensos... Enfim, macular a lida legiferante, que deveria ser exclusiva dos representantes a tanto especificamente eleitos pelo povo. E que em seu nome exercem o poder.

Os senadores biônicos seriam irresponsáveis para com o eleitorado, descompromissados de qualquer plataforma eleitoral em relação à produção legislativa.

Mandatos a cargos eletivos, em nosso sistema constitucional, são recortes de poder outorgados pelo povo. Têm começo, meio e fim.

Imagine que a moda pegue e desça por gravitação: doravante todo ex-prefeito será um vereador vitalício...

Essa PEC Pinochet mais parece um figurino de lesa-democracia, costurado para uma finalidade torpe, jamais em favor de uma almejada função legislativa. Apenas um colete que proteja das responsabilidades e dos ônus decorrentes de função executiva anterior, cujos bônus continuarão sendo regiamente fruídos por seu destinatário. Uma PEC pinocchio para quem quer dar um pinote na democracia.

Paulo Calmon Nogueira da Gama

VIP Paulo Calmon Nogueira da Gama

Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, Desembargador

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