Filtro da relevância dos recursos especiais
Apesar da necessidade da implementação do filtro de relevância, dois pontos merecem crítica: a necessidade da presunção da relevância da questão federal infraconstitucional dos recursos especiais interpostos com fundamento em dissidio jurisprudencial e a indevida fixação da competência interna do Superior Tribunal de Justiça, que não deveria ser atribuída "ao órgão competente para o julgamento" do recurso especial.
quinta-feira, 28 de julho de 2022
Atualizado em 29 de julho de 2022 14:08
A Emenda Constitucional 125/22, oriunda da denominada PEC da Relevância (39/21), foi promulgada em 14/7/22 e publicada no dia seguinte, 15/7/22. Trata-se de emenda à Constituição que acresce 2 (dois) parágrafos ao artigo 105 da Constituição Federal a fim de criar filtro adicional para o cabimento de recurso especial: a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso que se pretende levar ao conhecimento do Superior Tribunal de Justiça:
§2º: No recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo Tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento.
§3º: Haverá a relevância de que trata o § 2º deste artigo nos seguintes casos:
- ações penais;
- ações de improbidade administrativa;
- ações cujo valor da causa ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos;
- ações que possam gerar inelegibilidade;
- hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante o Superior Tribunal de Justiça;
- outras hipóteses previstas em lei.
Não se olvida que a criação do filtro da relevância é importante. Desde sua concepção a função do Superior Tribunal de Justiça é garantir a uniformidade na interpretação da legislação federal, e não funcionar como um tribunal de "3ª instância" capaz de analisar os fatos e provas e decidir a lide posta pelas partes, como vem ocorrendo há anos.
Há inúmeros recursos especiais que, ao fim e ao cabo, não discutem a indevida interpretação dada pelo Tribunal à legislação federal infraconstitucional e/ou a necessidade de uniformização do entendimento proferido pelo Tribunal recorrido com a de outros Tribunais Pátrios ou da própria Corte Superior, mas tão somente veiculam inconformismo e a intenção da parte de ver sua causa novamente julgada por outro órgão.
Uma das formas encontradas pelo Superior Tribunal de Justiça para tentar conter o crescente ingresso de recursos foi a edição de enunciados sumulares de seus julgados que afastam a possibilidade de admissão e conhecimento de recursos especiais que pretendiam, por exemplo, tão somente reanalisar a interpretação dada pelo Tribunal a quo às provas produzidas e às cláusulas contratuais (súmulas 5 e 7).
É certo, contudo, que em termos numéricos, os enunciados sumulares não vem se mostrando suficientes. Conforme relatório de gestão do exercício de 2021 do STJ, a taxa de congestionamento continua próxima a 50% (cinquenta por cento), tendo sido distribuídos ao longo do ano de 2021 mais de 400.000 (quatrocentos mil) processos, com uma média de distribuição para cada um dos Ministros de 12.502 (doze mil quinhentos e dois) processos.
Evidentemente, a Corte Superior não pode desenvolver sua função constitucional recebendo tantos processos e recursos por ano. Como já advertia Thiago Rodovalho1 há quase 10 (dez) anos:
Ante a ausência de uma filtragem recursal, que permita ao STJ efetivamente atuar como uma instância ordinária, pronunciando-se apenas e tão somente de forma paradigmática, para justamente servir à sua função constitucional de uniformizar a exegese acerca da norma federal, na prática, a estrutura do sistema judiciário brasileiro não tem funcionado como deveria, desnaturando-se-lhe a razão de ser, e transformando-o, em verdade, em uma terceira instância ordinária.
A Emenda Constitucional é mais uma tentativa do STJ de evitar o desvirtuamento de sua função constitucional e frear o crescimento de recursos especiais que não tem por objeto o fim precípuo de seu cabimento estampado nas alíneas "a" e "c" do artigo 105, III da Constituição Federal.
Em que pese a criação do requisito da relevância seja pertinente e necessária para desafogar o Superior Tribunal de Justiça e para assegurar sua função, fato é que a novel Emenda merece ao menos duas críticas pontuais, em consonância com as relevantes ponderações de Hélio Rubens Batista Ribeiro Costa2.
A primeira e mais importante delas é a não inclusão do dissídio jurisprudencial como hipótese de presunção de relevância da matéria objeto do recurso.
Consoante se depreende do §3º do artigo 105 da CF, somente nas "hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça" haverá presunção de relevância.
Contudo e como exposto, o Superior Tribunal de Justiça é o órgão responsável por uniformizar a intepretação da Lei Federal, cabendo a ele zelar pela integridade, estabilidade e coerência dos julgados não apenas do próprio STJ, mas dos demais Tribunais Pátrios.
Ora, se o Superior Tribunal de Justiça foi criado para uniformizar a interpretação do direito federal e deve julgar em recurso especial casos de interpretação divergente da lei federal entre o Tribunal prolator do acórdão recorrido e outro pertencente à organização judiciária, o recurso especial interposto pela parte com este fundamento (alínea "c" do artigo 105, II da CF) é questão relevantíssima e que deve necessariamente ser analisada pelo STJ.
Nesse diapasão, mostrava-se de suma importância que a relevância dos apelos especiais fundados em dissídio jurisprudencial tendo por paradigma entendimento de qualquer Tribunal - e não apenas em relação à jurisprudência dominante do STJ - fosse presumida, o que acabou ficando a cargo do legislador definir oportunamente em lei infraconstitucional.
O segundo ponto que causa preocupação é a questão da competência para se decidir pela relevância ou não da matéria ventilada no recurso especial. Com efeito, assim dispõe o parágrafo 2º do artigo 105 da CF:
No recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de Direito Federal Infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo Tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento.
A competência para conhecer e julgar recursos especiais pertence às Turmas da Corte Superior, compostas por cinco ministros cada uma. Nesse sentido, rejeitar a relevância da questão posta no recurso especial será competência da Turma, que, pelo voto de 3 (três) ministros, decidirá se determinada matéria preenche ou não o requisito da relevância.
Aqui destacam-se 2 (dois) motivos pelos quais causa estranheza a competência criada pela Emenda Constitucional: o primeiro, mais óbvio, é a possibilidade de se ter a mesma questão ora considerada irrelevante por uma Turma, ora considerada relevante pela outra. Ao invés de se garantir a estabilidade e a uniformização do entendimento jurisprudencial, poder-se-á causar ainda mais insegurança jurídica.
Nas palavras de José Miguel Garcia Medina3:
Não convém que a mesma matéria receba tratamento diferente em Turmas que têm a mesma competência, e algum instrumento deverá ser previsto para que o reconhecimento da presença ou da ausência de relevância da questão se dê de modo razoavelmente uniforme entre esses órgãos. Igual cuidado deverá ser tomado em relação a temas que digam respeito a mais de duas das Turmas do Tribunal, como os relacionados a Direito Processual.
Outrossim, permitir que 2/3 (dois terços) da Turma decida se dada questão federal é ou não relevante é deixar a cargo de 3 (três) dos 33 (trinta e três) Ministros dar a palavra da Corte Superior sobre o assunto. Significa dizer que o órgão fracionário mais reduzido do STJ, em decisão que ao que tudo indica é irrecorrível, enfrentará questão que terá o condão de afetar tantos outros processos com a mesma matéria alegada.
Melhor parecia deixar a competência para rejeitar ou acolher a relevância da questão federal alegada para a seção ou, nos casos em que o tema toque mais de 2 (duas) turmas, à corte especial, cuja decisão, por 2/3 de seus membros, melhor atenderia a função do STJ de uniformizar a jurisprudência, já que impediria tratamentos diversos para matérias iguais.
----------------------
1 RODOVALHO, Thiago. O STJ e a arguição de relevância in O papel da jurisprudência do STJ. Coordenação Isabel Galotti... [et. al.]. 1ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 840.
2 A vontade legislativa em torno da adoção da relevância como requisito de admissibilidade do recurso especial é evidente, de modo que a colaboração que a comunidade científica possa dar nesse momento é no sentido de aperfeiçoar a pretendida alteração constitucional. Nesse sentido, as mais prementes necessidades são as de considerar presumida a relevância da questão federal infraconstitucional dos recursos especiais interpostos com fundamento em dissidio jurisprudencial e de se revisitar o tema da competência interna do Superior Tribunal de Justiça para que ela não seja atribuída "ao órgão competente para o julgamento" do recurso especial. COSTA, Hélio Rubens Batista Ribeiro. A chamada 'PEC da Relevância'. In: CALAZA, Tales; RAMONE TAVARES, Viviane (Coords). Processo Civil 5.0: novas teses envolvendo processo e tecnologia. Tomo II. Uberlândia: LAECC, 2022, p.p. (295-316).
3 MEDINA, José Miguel Garcia. Novas restrições ao cabimento do recurso especial para o Superior Tribunal de Justiça.
Flávia Pereira Ribeiro
Pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Doutora e mestre em Processo Civil pela PUC/SP. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP. Membro do IBDP, da ABEP, do CEAPRO e do IASP. Idealizadora da tese da "desjudicialização da execução civil" que é referência ao PL 6.204/2019/SN. Sócia do escritório Flávia Ribeiro Sociedade de Advogados.
César Augusto Costa
Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo; Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Pós-graduado em Direito Imobiliário na Universidade SECOVI/SP; Integrante do 2º grupo de estudos avançados em Processo Civil (GEAP) organizado pela Fundação Arcadas. Advogado no escritório Flávia Ribeiro Sociedade de Advogados.