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Lei 14.230 e as ações de improbidade transitadas em julgado

Correntes apontam para a possível aplicação da lei 14.230/21, que reforma a lei de Improbidade em casos já transitados em julgado.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Atualizado às 14:29

O art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal adota o princípio geral da irretroatividade da lei. Essa previsão é, sem dúvida, o maior entrave à aplicação retroativa da lei 14.230/21, que reforma a Lei de Improbidade Administrativa (lei 8.429/92), nos pontos mais benignos aos réus.

Não obstante, fato é que, numa análise de julgados existentes sobre a matéria, a maioria das decisões colegiadas vem respeitando o que também a lei Maior prevê em seu art. 5º, XL, no assento de retroatividade da lei penalizadora mais benéfica ("a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu"). Aliás, a retroatividade da norma mais benigna tem previsão também na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), promulgada em nosso ordenamento através do art. 9º do decreto 678/92 - que goza de status de norma supralegal, subordinada apenas a CF/88 ("Se, depois de perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o delinquente deverá dela beneficiar-se").

NEVES e OLIVEIRA1 referendam que "a aplicação da retroatividade da norma sancionadora mais benéfica encontra previsão, ainda, no Pacto de San José da Costa Rica, que não restringe a incidência do princípio ao Direito Penal, motivo pela qual seria plenamente possível a aplicação às ações de improbidade administrativa".

Assim, a doutrina, e parte considerável da jurisprudência, respeitam a retroatividade da lei nova mais benéfica no Direito Administrativo Sancionador, assentando que o princípio não possui raio de alcance limitado às normas de cunho criminal, por se tratar de um princípio geral do Direito.

Inclusive, esse foi o entendimento do Exmo. MIN. HERMAN BENJAMIN, que, quando Relator do RESP 1912131 - RS, fundamentou que a modificação normativa pressupõe que "o Direito está aperfeiçoando-se, evoluindo, em busca de soluções mais próximas do pensamento e anseios da sociedade", de sorte que "se a lei superveniente deixa de considerar como infração um fato anteriormente assim considerado, ou minimiza uma sanção aplicada a uma conduta infracional já prevista, entendo que tal norma deva retroagir para beneficiar o infrator". Pautado nesses argumentos, constatou a viabilidade de se extrair do "art. 5º, XL, da Constituição da República princípio implícito do Direito Sancionatório, qual seja: a lei mais benéfica retroage".

Em comunhão com esses apontamentos está o art. 1º da lei 8.429/92 reformada, que agora ostenta o §4º, segundo o qual aplica-se ao sistema da improbidade os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador, enquanto o art. 17-D da mesma lei é claro ao dispor que a ação por atos de improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, e não constitui ação civil, a resultar na conclusão de que o beneplácito constitucional previsto no art. 5º, XL, CF incide aos atos reputados como ímprobos.

Contudo, considerada a retroatividade da lei 14.230/21, algumas dúvidas surgem com relação aos casos já transitados em julgado: se a norma retroage, até que ponto isso ocorre? Essa retroatividade é capaz de desfazer a coisa julgada? Onde reclamar essa retroatividade?

Parte das respostas a esses questionamentos estão em decisão de elevado teor didático do Min. GILMAR MENDES que, nos autos da ACO 3485 TPI/DF, decidiu que mesmo no campo do direito administrativo sancionador, quando operadas alterações benignas no cenário normativo, devem elas "incidir sobre fatos/atos jurídicos anteriores à sua entrada em vigor", inclusive sobre fatos/atos consumados ou atingidos pela "coisa julgada". Para o Ministro, esse fenômeno é conhecido como retroatividade máxima da lei mais benéfica, "quando a lei nova ataca a COISA JULGADA e os fatos consumados (transação, pagamento, prescrição)..."2.

Nesse aspecto, como a lei 14.230/21 reformou a lei de Improbidade Administrativa de forma tal a deixar de considerar ilícito ('abolitio criminis'), por exemplo: I) atos não praticados diretamente pelo agente (arts. 1º, §2º e 11, §§ 1º e 2º); II) ações pautadas pelo art. 10, da LIA sem prova efetiva de dano ao erário (arts. 10, caput, 17-C, I e 21); III) atos culposos ou constituídos por dolo meramente genérico (art. 1º, §2º); IV) meras falhas administrativas (arts. 10, §1º e 11, §4º); V) condutas irregulares consubstanciadas em simples erro interpretativo da lei (art. 1º, §8º), entendemos que a ela devem ser aplicados os efeitos máximos de retroatividade. Isto é: As reformas da lei 14.230/21, ao menos nesses pontos, devem incidir até mesmo contra condenações passadas em julgado, impactando cumprimentos de sentença em curso ou já consolidados.

Dito isso, restam os questionamentos quanto ao que fazer com os casos já transitados em julgado. Seria necessário um peticionamento no cumprimento de sentença ou o ajuizamento de Ação Rescisória?

Atualmente, duas correntes predominam: a primeira delas - inclusive já aceita em precedente do Tribunal de Justiça de São Paulo - delimita que mero peticionamento incidental, nos autos do Cumprimento de Sentença, bastaria para reclamar a retroatividade da lei 14.230/21; a segunda corrente afirma que seria possível a propositura de Ação Rescisória.

Quanto a primeira corrente - a qual nos filiamos -, em se tratando de aplicação de nova lei mais benigna, vigora o intelecto da Súmula 611/STF: "Transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao Juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna". Assim, o ingresso do feito na fase satisfativa (cumprimento de sentença) não prejudica a retroatividade da lex mejor - in casu, da lei 14.230/21.

Vale dizer que a Súmula 611/STF dialoga com o princípio da atualidade, pelo qual o processo judicial deve sempre seguir diretrizes normativas atualizadas, considerando-as como "fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito" capaz de "influir no julgamento do mérito", conforme art. 493 e art. 933, ambos do CPC. A aplicação do princípio da atualidade encontra certa limitação, já que, a princípio, não poderia violar a coisa julgada (art. 5, inc. XXXVI, CF). Contudo, esse preceito tem certo assento constitucional se interpretado e aplicado em conjunto com o art. 5º, XL, da CF, que garante a retroatividade da norma mais benigna.

De todo modo, também pesa nessa equação precedente do STJ afetado ao rito de recursos repetitivos que determinou à autoridade judicial, ao resolver a lide, sempre "considerar o fato superveniente que interfira na relação jurídica e que contenha um liame com a causa de pedir"3. Se os fundamentos condenatórios passados em julgado sofrerem impacto da lei 14.230/21, a princípio, incidiria esse precedente da Corte Superior.

A primeira corrente é reforçada, também, por jurisprudência do STJ, no caminho de que a competência para apreciar e aplicar alterações normativas é do Juízo em que tramita o processo no momento em que ocorrida tal modificação, sem ressalvas quanto a fase de cumprimento de sentença4.

Outro precedente importante é do Tribunal Paulista, que em sede de Agravo de Instrumento interposto em Cumprimento de Sentença, mediante concessão de efeito ativo recursal que permitiu ao agravante, com relação àquele caso, se habilitar para disputar as eleições de 2022, suspendendo a exequibilidade da condenação ante a Lei 14.230/21.

No mérito recursal, defendeu-se que a condenação foi com base no art. 10, da LIA, mas por prejuízo presumido ao erário e por ações de terceiros, e que segundo as decisões em execução, teria o agravante agido com culpa e não com dolo. Desse modo, as modificações impostas pela lei 14.230/21 na lei 8.429/92 foram abordadas como espécie de abolitio criminis - o que resultaria na retroatividade máxima desse ponto de reforma, conforme defendemos anteriormente.

Cotejando esses valores, o Desembargador Relator do Agravo de Instrumento, o Exmo. Dr. FERNÃO BORBA FRANCO5, pontuou que a 7ª Câmara de Direito Público da Corte Paulista "já se pronunciou a respeito da possível retroatividade da lei 14.230/21 ... havendo, pois, probabilidade do direito alegado", além de que "A urgência da medida também se evidencia, posto que o prazo para filiação partidária está por terminar em breve, o que impediria sua participação no pleito". Ao julgar o mérito recursal, a Câmara, por maioria de votos, confirmou o efeito ativo concedido, extinguindo o incidente executório.

A mesma C. 7ª Câmara de Direito Público definiu, com base no conceito de "Direito novo", que a lei 14.230/21 deve ser considerada em qualquer fase do processo (que enseja aplicação em sede de cumprimento de sentença), por se tratar de diretriz normativa mais atual e mais benigna (art. 493, CPC e art. 5º, XL, CF)6.

Dessa análise, nota-se inúmeros pontos e precedentes que fortalecem a primeira corrente, a assegurar boas chances ao interessando de invocar a aplicação da lei 14.230/21 em sede de cumprimento de sentença, caso diante de ação já passada em julgado.

Para a segunda corrente, seria cabível o ajuizamento de ação rescisória. Defendem essa corrente NEVES e OLIVEIRA7, dentre outros, desde que dentro do prazo decadencial de 2 anos. As hipóteses de cabimento, para essa corrente, seriam as dos incisos V e VII, do art. 966, do CPC, que tratam sobre "violar manifestamente norma jurídica" (inc. V), ou quando "obtiver o autor, posteriormente ao trânsito em julgado, prova nova cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável".

O problema, nesse caso, ocorre com relação às condenações passadas em julgado há mais de 2 anos (prazo decadencial de ação rescisória), caso em que não seriam mais passíveis de rescisão. Esse ponto acaba por ressaltar a primeira corrente como a mais segura dentre as duas.

No entanto, caso não superado o prazo decadencial, é bem de ver que o Superior Tribunal de Justiça tem precedente no sentido de ser viável a propositura de ação rescisória com base em lei nova mais benéfica, tomando "Direito novo" como "fato novo", vez que procedeu revisão integral de procedimento administrativo disciplinar com base nesses fundamentos8.

O mesmo Tribunal entende que o cabimento da ação rescisória em hipóteses de violação à norma jurídica ocorre em situações de afronta direta, verificável da literalidade da norma jurídica, quando o "conteúdo normativo tenha sido ofendido de maneira evidente e flagrante, tornando a decisão de tal modo teratológica a consubstanciar afronta ao sistema jurídico vigente"9.

Assim, abona a segunda corrente o fato de que a revisão procedida pela lei 14.230/21 na lei 8.429/92 foi tamanha, que condenações anteriores acabam por afrontar diretamente o texto do novo panorama legal. Militaria nesse sentido, por exemplo, condenação por atos culposos, o que afrontaria a literalidade do art. 1º, §§ 1º, 2º e 3º, art. 10, caput, art. 17, §6º, II e 17-C, §1º, todos da "nova" lei de Improbidade, que dissertam sobre a necessidade de um elemento subjetivo doloso específico aos tipos ímprobos. Assim, a princípio, possível seria o ajuizamento de ação rescisória, dentro do prazo decadencial de 2 anos, contra condenação por ato de improbidade culposo, ante afronta ao art. 1º, §§ 1º, 2º e 3º, art. 10, caput, art. 17, §6º, II e 17-C, §1º, da "nova" lei de Improbidade.

Contudo, é bastante baixo o índice de aceitabilidade de ações rescisórias, ainda mais se utilizadas teses de cabimento muito inovadoras. Os Tribunais costumam partir de uma aplicação bastante restrita e literal das hipóteses do art. 966, do CPC, daí porque, talvez, providências pautadas pela primeira corrente consigam maiores êxitos.

Aliás, há que se consignar que o Tribunal Paulista já rejeitou Ação Rescisória proposta com os fundamentos dessa segunda corrente10, o que demonstra seu nível menor de aceitação.

Em síntese, essas são as correntes mais recentes e embasadas quanto a aplicação da lei 14.230/21 em casos já transitados em julgado, impondo-se consignar que essas argumentações consideram que o Supremo Tribunal Federal ainda não definiu se a lei 14.230/21 ostenta ou não retroatividade nos pontos mais benéficos, visto que o julgamento sobre o TEMA 1199/STF está marcado para iniciar-se apenas em 3/8/22 - o que não impede, contudo, debates jurídicos e acadêmicos sobre a matéria.

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1 NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende; Comentários à reforma da Lei de Improbidade Administrativa: Lei 14.230, de 25.10.2021 comentada artigo por artigo - Rio de Janeiro: Forense, 2022, pg. 8

2 STF - TUT. PROV.: ACO 3485 DF 0049344-26.2021.1.00.0000, 22/11/2021. Min. GILMAR MENDES

3 REsp 1727063/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 23/10/2019, DJe 02/12/2019

4 STJ - PET no AREsp: 1770572 PR 2020/0261163-3, Relator: Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, Data de Publicação: DJ 16/04/2021

5 Agravo de Instrumento nº 2064592-53.2022.8.26.0000; Relator FERNÃO BORBA FRANCO; Órgão Julgador: 7ª CÂMARA DE DIREITO PÚBLICO; Data da decisão: 30 de março de 2022

6 TJSP;  ED 2209579-56.2020.8.26.0000; Relator  Des. Luiz Sergio Fernandes de Souza; 7ª Câmara de Direito Público; Julgamento: 14/03/2022

In obra cit.

8 STJ - AR: 1304 RJ 2000/0033763-3, Relator: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Julgamento: 14/05/2008, S3 - TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 26/08/2008

9 AgInt na AR 5.410/RS, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 31/08/2021, DJe 02/09/2021 e AgInt na AR 6.382/DF, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/09/2021, DJe 27/09/2021

10 TJ-SP - AR 2045853-32.2022.8.26.0000, Relator: Antonio Celso Faria, Julgamento: 04/04/2022, 8ª Câmara de Direito Público, Publicação: 04/04/2022

 

Priscila Lima Aguiar Fernandes

VIP Priscila Lima Aguiar Fernandes

Mestra e Pós-Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP e advogada sócia do escritório Vilela, Miranda e Aguiar Fernandes Advogados.

Daniel Santos de Freitas

Daniel Santos de Freitas

Pós-graduando em Prática de Direito Administrativo pelo DAMÁSIO e associado do escritório Vilela, Miranda e Aguiar Fernandes Advogados.

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