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Jornada do advogado: O Direito vai continuar ignorando a realidade?

Thiago Veloso

A nova redação dada ao art. 20 do Estatuto de OAB parece-nos sepultar, de vez, qualquer dúvida acerca da legalidade da jornada de 8 horas diárias para o advogado empregado.

terça-feira, 19 de julho de 2022

Atualizado às 08:00

Acaba de ser alterada a lei  8.906/94, o chamado Estatuto da OAB. Um dos artigos que sofreu mudanças foi o art. 20 da mencionada lei, que rege a jornada do advogado empregado. A redação anterior do mencionado art. 20 do Estatuto da OAB, cumulado com o ainda vigente art. 12 do Regulamento respectivo, era causa de uma das maiores - e mais caras - injustiças judiciárias.

Para entender melhor a situação ora tratada, gostaríamos de sugerir que seja feito um exercício de empatia. Imaginemos que somos empresários, donos de uma Indústria que está crescendo. Diante do nosso crescimento, surgiram várias dúvidas, de diversos setores de nossa empresa, acerca de como respeitar a legislação. Por isso, resolvemos contratar um advogado como empregado.

Chamamos vários candidatos, ofertando uma vaga para trabalhar 8 horas diárias, e selecionamos um deles. Na hora da contratação, explicamos a jornada ao advogado e a remuneração respectiva, que aceita o combinado e passa a trabalhar na empresa. Após anos de serviços prestados, muitas vezes décadas, o advogado decide sair da empresa, por vontade própria. As verbas rescisórias são pagas, mas quando vamos nos despedir, agradecidos, do nosso advogado empregado, recebemos a notícia de que devemos para ele mais de um milhão de reais.

O motivo? É que apesar do advogado conhecer melhor as leis do que o empresário; de ter aceito a jornada contratada e o salário respectivo; de estar sendo respeitada a jornada máxima constitucional; de o advogado ter trabalhado anos (ou décadas) sem nada reclamar; apesar de tudo isso, dizíamos, a jurisprudência da Justiça do Trabalho, alterando seu entendimento anterior, passou a considerar que, se no contrato de trabalho não estivesse escrito o termo "dedicação exclusiva", então serão mesmo devidos milhões de reais ao profissional.

A situação acima não é uma fábula, ou um conto, é a realidade tratada em milhares de processos em nosso país.

O art. 20 da lei  8.906/94 previa, em sua redação anterior, como regra, a jornada de 4 horas diárias, mas a excepcionava quando existisse "acordo ou convenção coletiva", ou quando caracterizada "a dedicação exclusiva" (acordo individual).

De início, a Justiça do Trabalho vinha decidindo que, em prol do princípio da primazia da realidade, em estando clara a pactuação da jornada de 8 horas, seria ela válida, por caracterizar a dedicação exclusiva, afinal, estar-se-ia a trabalhar pela jornada máxima constitucional para um mesmo e determinado empregador.

No entanto, a jurisprudência foi alterada e passou a prevalecer o entendimento no sentido de que, mesmo que fosse claramente estipulado e aceito pelas partes o trabalho para um mesmo empregador durante toda a jornada máxima constitucional, ainda assim, seria tal jornada inválida, caso não estivesse escrito no contrato de trabalho o termo "dedicação exclusiva".

Com essa alteração da jurisprudência, o advogado empregado, profissional usualmente melhor remunerado do que a média nacional, tem ganho na Justiça do Trabalho causas milionárias, baseado no simples fato de não estar escrito no seu contrato de trabalho uma palavra: "dedicação exclusiva".

Quando isso ocorre, a remuneração do advogado, praticamente triplica. Isso porque a remuneração que era paga para uma jornada de 8 horas diárias, passa a abranger apenas 4 horas diárias. As outras 4 horas deverão ser pagas como extraordinárias, isto é, além do valor-hora será também devido o adicional. Some-se, ainda, os reflexos decorrentes dessa condenação e chegará, assim, a valores que costumam ser milionários.

Pois bem. Para justificar tais condenações milionárias a verdade é que inexiste fundamento legal, tudo decorrendo de uma construção jurisprudencial, em patente violação ao postulado da legalidade (art. 5º, II, da CR/88).

É verdade que a jurisprudência do TST cita o art. 20 da lei 8.906/94 e o art. 12 do Regulamento do Estatuto da OAB como fundamento legal. No entanto, e com o devido respeito ao entendimento da Corte Superior Trabalhista, nunca essas normas previram a exigência de que a palavra "dedicação exclusiva" constasse expressamente do Contrato de Trabalho.

Tal como adiantamentos linhas acima, o que a lei (n°. 8.906/94), em sua redação antiga previa, era apenas que a jornada do advogado empregado seria, em regra, de 4 horas diárias, podendo ser outra quando negociada coletiva ("acordo ou convenção coletiva") ou individualmente ("a dedicação exclusiva"). Já o Regulamento da OAB afirma apenas que "considera-se dedicação exclusiva o regime de trabalho que for expressamente previsto em contrato individual de trabalho".

Está ali escrito, pois, que o regime de trabalho equivale, naturalmente, à jornada prevista no contrato de trabalho, em outras palavras, o que aduz o Regulamento é que a dedicação exclusiva equivale à jornada (regime de trabalho) prevista no contrato de trabalho, quando for ela maior do que aquela de 4 horas que era prevista como regra geral na lei.

Corrobora essa interpretação o parágrafo único do mencionado art. 12 do Regulamento Geral, pois ele estipula que uma vez negociada e fixada a jornada máxima constitucional (8 horas diárias) no contrato de trabalho, estar-se-ia caracterizada a dedicação exclusiva e seriam devidas como extraordinárias apenas as horas posteriores à oitava. Confira-se a literalidade do dispositivo:

"Parágrafo único. Em caso de dedicação exclusiva, serão remuneradas como extraordinárias as horas trabalhadas que excederem a jornada normal de oito horas diárias".

Vê-se, pois, que o Regulamento da OAB, em verdade, não prevê o que tem dito a jurisprudência do TST, bem como tampouco os limites semânticos da lei permitiam chegar a essa conclusão, mesmo sob sua redação antiga.

Contudo, ainda assim, a jurisprudência majoritária do TST entendia que a "dedicação exclusiva" equivaleria à "cláusula de exclusividade", e não à jornada fixada no contrato de trabalho. Isto é, "dedicação exclusiva" seria a proibição de que o advogado empregado trabalhasse para outra pessoa, mesmo fora de sua jornada de trabalho.

Em que pese já termos demonstrado que os limites semânticos do Regulamento - e da lei, mesmo na redação antiga - não permitem essa interpretação, é imperioso acrescer que tal entendimento viola frontalmente a previsão constitucional do livre exercício do trabalho (art. 5º, XIII, da CR/88), já que impõe uma restrição ao exercício profissional mesmo fora da jornada máxima constitucional.

E mais, é que não faria sequer sentido que a OAB, ao editar o Regulamento do seu Estatuto, fizesse essa restrição ao exercício profissional dos advogados.

Essa questão, aliás, foi elucidada na resposta à consulta realizada ao Órgão Especial do Conselho Federal da OAB, oportunidade em que ficou esclarecido que a "dedicação exclusiva" prevista no Estatuto da OAB diverge daquela definida em Direito Administrativo ("cláusula de exclusividade"), pois possui um conceito particular, diretamente ligado ao tempo em que o advogado empregado coloca seus serviços à disposição do empregador, sem vedar a possibilidade de atividade autônoma paralela1, especialmente fora da jornada de trabalho.

Então sequer a própria OAB, órgão que editou o Regulamento da lei 8.906/94, aduzia aquilo que defende a jurisprudência atual do E. TST.

Diz-se mais, um regulamento não poderia mesmo prever um requisito que não consta da lei, inovando o ordenamento jurídico.

Não havia mesmo na redação antiga da lei  8.906/94, editada pelo Congresso Nacional, qualquer menção à necessidade de estar escrito no contrato de trabalho o termo "dedicação exclusiva" para que o advogado pudesse cumprir a jornada constitucional de 8 horas diárias. A lei previa apenas que a jornada, em regra, do advogado, seria de 4 horas diárias, mas que excepcionalmente poderia ser de 8 horas, quando prevista em acordo ou convenção coletiva ou em caso de dedicação exclusiva (acordo individual)2.

A previsão dessa necessidade de estar escrito no contrato de trabalho o termo "dedicação exclusiva" para que o advogado possa cumprir a jornada constitucional de 8 horas diárias implica, pois, em extrapolação dos limites do poder regulamentar.

E diferente não poderia ser, já que a Constituição diretamente impõe que os direitos e deveres sejam previstos em lei (art. 5°, II), e não em regulamento. É, ainda, a Constituição, diretamente, que assegura a separação dos poderes (art. 2° da CR/88), garantindo ao legislativo, representante do povo, a edição de leis em nosso país. E ao presidente da República, a Constituição assegura a expedição de regulamentos, mas apenas aqueles que visem a "fiel execução" da Lei (art. 84, IV), e não os que inovem no ordenamento jurídico.

O regulamento poderia até ter definido o conceito do termo "dedicação exclusiva", mas não ter estabelecido um único meio de prova para ela, pois isto implica na extrapolação do poder regulamentar, já que a lei não restringia, mesmo em sua redação antiga, a comprovação da "dedicação exclusiva" por um único meio.

Além dos fundamentos acima, também a boa-fé justificava que fosse considerada válida a jornada claramente pactuada por empregado que, na hipótese, é hiper suficiente.

De tudo se vê que, além de ser situação manifestamente injusta e contrária a boa-fé e à primazia da realidade, não há no regulamento o requisito que dele extrai a jurisprudência do TST. E, ainda, mesmo que fosse possível extrair, com grande esforço hermenêutico, o requisito do Regulamento, estaria esta norma extrapolando os limites do poder regulamentar previstos na Constituição, mesmo se tomando por base a redação anterior da lei 8.906/94.

Recentemente, o tema vem ganhando novos contornos.

No final do ano de 2019, transitou em julgado o acórdão da E. SBDI-1 do TST, proferida no Proc. 2408-70.2013.5.22.0001, que fez uma distinção para o caso de advogados empregados públicos. Na oportunidade, o E. TST definiu que para os empregados públicos, o princípio da vinculação ao edital (art. 37) impõe a observância da jornada prevista e divulgada no certame. A partir de então a jurisprudência passou a acompanhar esse entendimento especificamente para o advogado que é empregado público.

Em 2 de junho deste ano, o Congresso Nacional alterou, por meio da Lei n°. 14.365, o art. 20 da Lei n°. 8.906/94, que passou a ter a seguinte redação:

Art. 20. A jornada de trabalho do advogado empregado, quando prestar serviço para empresas, não poderá exceder a duração diária de 8 (oito) horas contínuas e a de 40 (quarenta) horas semanais.  

A nova redação dada ao art. 20 do Estatuto de OAB parece-nos sepultar, de vez, qualquer dúvida acerca da legalidade da jornada de 8 horas diárias para o advogado empregado, independente de estar escrito, ou não, em sua carteira de trabalho o termo "dedicação exclusiva".

A questão tende a se resolver, ao menos para os contratos celebrados com advogados empregados daqui por diante.

Em relação aos contratos de trabalhos anteriores à alteração legislativa, contudo, é provável que permaneça hígida a jurisprudência majoritária da Justiça do Trabalho, em que pese ela privilegie um pressuposto formal criado apenas jurisprudencialmente em detrimento da primazia da realidade e da boa-fé.

O fato é que se existem casos nos quais o trabalhador hipossuficiente deve ser protegido, inclusive por intermédio da primazia da realidade, também existem aqueles nos quais o trabalhador hiper suficiente pode ter indeferido seus pedidos, em igual homenagem à primazia da realidade. Assim é porque a primazia da realidade é um postulado que garante o justo, independente a quem beneficie.

Aqui, me vem logo à mente a advertência, tão reiteradamente mencionada por autores e colunista, de Georges Ripert, no sentido de que: "Quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito".

Eis aí algo que acreditamos não devesse ser esquecido pelo Judiciário: se o direito é norma, é também valor e, ainda, fato. Uma vez ignorada a realidade - os fatos - não há mais direito. A jornada do advogado empregado parece-nos um bom lembrete neste sentido.

____________

1 EMENTA OE nº 014/95 de 12.06.1995, Rel, Cons. Paulo Luiz Neto Lobor, Rv. Cons. Gustavo de Azevedo Branco.

2 "Art. 20. A jornada de trabalho do advogado empregado, no exercício da profissão, não poderá exceder a duração diária de quatro horas contínuas e a de vinte horas semanais, salvo acordo ou convenção coletiva ou em caso de dedicação exclusiva.".

Thiago Veloso

Thiago Veloso

Advogado do Abdala Advogados atua em processos estratégicos e de alta complexidade, em especial no Tribunal Superior doTrabalho e no Supremo Tribunal Federal. Atuação contenciosa nos Tribunais Regionais e Varas do Trabalho, além de Juizados Especiais e Direito do Consumidor.

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