MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Só sei que tudo sei: uma reflexão sobre o conhecimento na atualidade

Só sei que tudo sei: uma reflexão sobre o conhecimento na atualidade

Em sua jornada investigativa, Sócrates interpelou muitas pessoas e concluiu que muitos acreditavam ser sábios, quando, na verdade, não eram e estes encolerizavam-se quando tinham suas inconsistências reveladas.

quinta-feira, 14 de julho de 2022

Atualizado às 14:18

Mesmo para aqueles que não possuem uma maior intimidade com a filosofia, o nome de Sócrates, por certo, desperta uma familiaridade, sendo, pois, de amplo conhecimento, ainda que o seu pensamento possa não o ser. Considerado por muitos como um dos maiores pensadores da filosofia ocidental, as suas teorias trouxeram questões fundamentais para a existência humana e ressoam vigorosamente até os dias atuais. Nascido em Atenas, na Grécia, o filósofo desafiou pensamentos ortodoxos e encorajou os seus concidadãos a pensarem criticamente em todos os aspectos da vida. Sócrates foi um filósofo que não deixou nada escrito e todos os seus ensinamentos foram registrados por outros autores como Xenofonte, Aristófanes, Aristóteles e Platão. Entre muitos dos seus dizeres que foram popularizados, um dos mais famosos diz respeito à frase "só sei que nada sei". Não obstante, a despeito da sua larga difusão, não se extrai dos registros escritos exata expressão, mas sim similar que condensa uma das bases do seu pensamento e que ecoa ainda na atualidade. Em tempos de uma larga pulverização de informações e ilimitadas oportunidades para a manifestação de pensamentos, entender o quanto se sabe permanece ainda uma questão relevante e um divisor entre a sabedoria e a ignorância. 

Como uma represa que diariamente abre as suas comportas permitindo uma intensa vazão de água, de igual forma apresentam-se à sociedade inúmeras questões relacionadas à política, economia, justiça, religião, história, saúde, tecnologia, meio ambiente, virtudes e desvirtudes e outros tantos temas relevantes. Um verdadeiro torrencial de informações e ideias, cujo domínio foge à capacidade humana. Conhecimento em alguma área do saber ou técnica demanda tempo, esforço e reverência intelectual. Sócrates tinha consciência dos seus limites. A origem da referida expressão é narrada na Apologia de Sócrates por Platão e está inserida em um contexto em que Xenofonte se dirige ao Oráculo de Delfos e lá pergunta se haveria alguém mais sábio do que Sócrates, ao que a pitonisa lhe responde negativamente. Ao reportar tal afirmação a Sócrates, este não acredita no referido julgamento e, então, inicia uma busca para encontrar pessoas mais sábias que ele. Sócrates passa a indagar na ágora ateniense e nas ruas os seus concidadãos e por meio de um processo espiral de perguntas conhecido como maiêutica, constata diversas inconsistências nas respostas apresentadas e que as pessoas não sabiam o que estavam falando. Em sua jornada, o filósofo grego indagou políticos, poetas trágicos e, por fim, artífices. Com relação ao último grupo, Sócrates faz uma interessante observação: "pelo fato de exercitar bem a própria arte, cada um pretendia ser sapientíssimo também nas outras coisas de maior importância, e esse erro obscurecia o seu saber". 

Em sua jornada investigativa, Sócrates interpelou muitas pessoas e concluiu que muitos acreditavam ser sábios, quando, na verdade, não eram e estes encolerizavam-se quando tinham suas inconsistências reveladas. O pensador em questão não fingia saber o que não sabia. Em sua visão, o único conhecimento que poderia ser reivindicado era o de que nada se sabia. Conforme registrado por Platão, o ódio de seus opositores veio em virtude de que Sócrates tinha consciência das suas limitações, ao passo que "aquele homem acredita saber alguma coisa, sem sabê-la, enquanto eu, como não sei nada, também estou certo de não saber. Parece, pois, que eu seja mais sábio do que ele, nisso - ainda que seja pouca coisa: não acredito saber aquilo que não sei". 

Como resultado de sua investigação, Sócrates encontrou uma grande quantidade de pessoas que acreditavam saber alguma coisa, quando estas, na verdade, pouco sabiam. Tal confrontação, no entanto, levou à ira de muitos e à acusação de corromper os jovens e os deuses da cidade, culminando, assim, com a sua condenação ao suicídio. 

Como se pode perceber, o cenário vivido por Sócrates pode ser igualmente encontrado na atualidade. Conforme mencionado acima, existe uma infinidade de temas aos quais todos são expostos diariamente. A grande questão reside em como reagir aos assuntos que são apresentados. Não é mais necessário interpelar as pessoas nas ruas, porém as redes sociais e os aplicativos de comunicação tornaram-se verdadeiras ágoras de discussão. Vive-se um verdadeiro "shopping de ideias", onde se encontra à disposição, para todos os gostos, todo tipo de informação para subsidiar uma percepção muitas vezes meramente sensorial e impulsiva de determinado tema. O paulatino e penoso estudo acadêmico é substituído por materiais de rápida confecção, costumeiramente baseados em factoides, premissas superficiais ou infundadas, e impulsionados por muito orgulho próprio e desejo de prevalecer sobre o outro.  

Nesse contexto, livros, teorias, dados científicos, ações judiciais e informações que são naturalmente extensos e complexos são substancialmente reduzidos e até mesmo completamente descartados. Certos assuntos acionam gatilhos emocionais que substituem estudos aprofundados e prolongados por um velocíssimo processo de construção de ideias baseadas em sentimentos e em fragmentos esparsos do saber. A esse propósito, vale ponderar os resultados de análise apresentada pelos psicólogos americanos David Dunning e Justin Kruger, no qual examinaram certas limitações cognitivas em grupos de pessoas. De acordo com os mencionados psicólogos, "algumas pessoas com conhecimento ou competência limitada em um determinado domínio intelectual ou social superestimam muito o seu próprio conhecimento nesses domínios em relação a critérios objetivos ou ao desempenho de seus pares ou de pessoas em geral". A tal constatação, denominou-se de "efeito Dunning-Krueger", o qual se baseia na ideia de que alguns indivíduos tendem a superestimar o seu conhecimento e crer terem ampla capacidade de discernimento, sobretudo porque a falta de domínio no assunto é combinada com a ignorância a respeito dessa mesma falta. 

Nessa linha, vale lembrar, ainda, que Sócrates refutou o conhecimento dos artífices porque se julgavam conhecedores de tudo apenas porque dominavam uma determinada técnica. Em outras palavras, segundo o filósofo grego o comando em certas áreas do saber não confere uma cátedra para todos os outros possíveis ramos existentes. A erudição ou domínio da técnica em uma específica área do conhecimento não conferem um cum laude universal aqueles que a possuem. 

Com efeito, não se pretende tolher, subjugar ou menosprezar qualquer pensamento crítico. No entanto, faz-se necessária uma reverência e humildade intelectual e refletir sobre o quanto se sabe sobre determinado assunto e, assim, evitar-se debates estéreis que nada acrescentam para o crescimento social e humanitário. O afã de responder o próximo, muitas vezes imbuído em uma ansiedade, comoção interna e precipitado orgulho, apenas perpetua a ditadura da última palavra e a derrocada do diálogo construtivo e crescimento coletivo. Ao contrário do que humilde e serenamente pontuou Sócrates, na atualidade parece existir uma voracidade em se posicionar e deixar bem claro que "só sei que tudo sei"! As bases são as mesmas da Grécia antiga, porém as plataformas de expressão avançaram tecnologicamente sem perder a cólera reativa à indagação refutadora. 

Em linhas conclusivas, para Sócrates, o indivíduo livre é aquele que faz triunfar a sua razão sobre as suas paixões. De igual forma, também afirmou que uma vida sem reflexões não vale a pena ser vivida. Essas premissas são importantes para nortear a difícil busca pelo conhecimento, evitar açodados conflitos e construir uma sociedade justa e pacífica. Tal escolha é individual. É preciso fazer uma autorreflexão, controlar as paixões, reconhecer limites e, assim, tal qual Sócrates, ser grande sendo pequeno. Um dos maiores filósofos de todos os tempos, deixou a lição de que a humildade intelectual, a serenidade e a reverência pelo desconhecido são os grandes elementos para a verdadeira sabedoria.  

Fernando Procópio Palazzo

Fernando Procópio Palazzo

Advogado. Mestrando em Criminologia pela Erasmus Universiteit Rotterdam e pela Universiteit Ghent e especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca