O preço dos combustíveis, o ICMS e o federalismo brasileiro
Os Estados e os Municípios deveriam ser chamados ao debate num grande painel federativo, na qual haja a discussão do sistema tributário sobre o consumo, a repartição da receita e, em última instância, o interesse público nacional.
quinta-feira, 30 de junho de 2022
Atualizado às 08:18
O debate sobre os preços dos combustíveis atualmente praticados no varejo tem gerado intenso conflito sobre a melhor opção para evitar a sua escalada, o que impacta a cadeia produtiva, os preços dos produtos ofertados no mercado de consumo e a própria inflação e o ambiente econômico.
Não há dúvidas de que o contínuo repasse no âmbito interno das mutações da cotação do barril de petróleo no mercado internacional, se revela um elemento adverso para os indicadores macroeconômicos brasileiros, merecendo uma reflexão adequada. As experiências vivenciadas no passado1 devem constituir aprendizado para a adoção de medidas preventivas e corretivas, exigindo políticas públicas baseadas em planejamento adequado e uma avaliação racional das múltiplas possibilidades existentes de atuação estatal.
No debate público encontram-se propostas de alteração da política de preços praticada pela Petrobrás, denominada PPI - Preço de Paridade Internacional, adotado desde 2016 como uma reação ao controle de preços realizado pela União, acionista majoritário, em relação à empresa estatal; a utilização dos dividendos percebidos pela União para a constituição de fundo financeiro estabilizador dos preços, de modo a prover recursos para subvenção econômica da empresa estatal como contrapartida a eventuais prejuízos pela limitação dos preços dos combustíveis; alterações nos tributos incidentes sobre a cadeia da produção, distribuição e comercialização dos combustíveis, notadamente o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS, submetido à competência dos Estados, a despeito de seu caráter inequivocamente federativo.
Apesar das pressões políticas verificadas sobre a diretoria da Petrobrás, inclusive com a indicação sucessiva pelo acionista majoritário de Diretor-Presidente que atenda ao propósito do Poder Executivo federal, aliado ao tóxico ambiente político decorrente da proximidade das eleições gerais do presente ano, observa-se que a estratégia que mais celeremente avançou é o controle da carga tributária relativamente ao ICMS.
Com efeito, em março deste ano, houve a aprovação da Lei Complementar 192/22, regulamentando a incidência monofásica do ICMS sobre gasolina, álcool anidro combustível, diesel e biodiesel, além do gás liquefeito de petróleo, regulamentando o artigo 155, §2º, inciso XII, alínea "h" da Constituição Federal. No âmbito do exercício da competência federal para estabelecimento de normas gerais em matéria tributária e resolução de conflitos interfederativos, nos termos do art. 146 da Constituição, chama atenção a fixação da alíquota ad rem para a incidência monofásica do ICMS, associada à sua uniformidade em todo território nacional, uma vez que o próprio legislador constituinte derivado admitiu a opção por uma alíquota ad valorem, ou seja em percentual ou fração sobre a base de cálculo (art. 155, § 4º, inc. IV, alínea "b").
Não obstante, por meio de ação concertada entre os Estados no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária - CONFAZ, houve definição da alíquota ad rem na incidência monofásica do ICMS sobre combustíveis por meio do Convênio ICMS 16/22 de modo a assegurar a arrecadação atual oriundo da incidência tributária sobre combustíveis, ante o evidente impacto orçamentário que a alteração da sistemática poderia ocasionar, mas também para evitar o aumento da carga tributária e atender a exigência do art. 6º, §5º da Lei Complementar 192/22.
A alteração na sistemática de recolhimento do ICMS em virtude da prática vigente de alteração da base de cálculo pelo critério de revisão da pauta de valores no regime de substituição tributária com alíquotas percentuais, de modo que a arrecadação acompanhava a evolução dos preços no varejo, não justificou a expectativa de redução dos preços. Tal circunstância, inclusive, ensejou o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade 7164 pela Advocacia Geral da União, colhendo decisão de lavra do Min. André Mendonça para suspender os efeitos das Cláusulas quarta e quinta, bem como do Anexo II, do Convênio ICMS 16/22
Ante o evidente conflito federativo, avançou no Congresso Nacional o projeto de lei complementar 18/22, de autoria do deputado federal Danilo Forte, que estipula outra frente de enfrentamento com os Estados. A referida proposta legislativa, já aprovada na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, se encontra à disposição do Presidente da República para sanção.2
Conforme se verifica de seu teor, o Congresso Nacional objetiva equiparar os combustíveis a mercadorias consideradas essenciais, atraindo a aplicação do princípio da seletividade tributária descrito no art. 155, inc. III da Constituição da República, que recomenda a tributação diferenciada para mercadorias essenciais ou supérfluas. Assim, concretizando o princípio da igualdade tributária para os impostos incidentes sobre o consumo, o legislador constituinte intencionou estabelecer um critério qualitativo - a essencialidade - como elemento de diferenciação da tributação, privilegiando-se os contribuintes que detenham menor capacidade econômica.
Pela ótica constitucional, diferentemente do Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI3, a seletividade no ICMS não detém aplicação obrigatória, de modo que a diferenciação qualitativa das alíquotas internas pelos Estados está circunscrita ao exercício de sua competência legislativa, observada a necessidade de deliberação convenial para fins de redução de alíquotas das mercadorias consideradas essenciais, nos termos do art. 155, inc. XII, alínea "g" da Constituição de 1988 e Lei Complementar 160/17 (os famosos convênios de ICMS).
Na prática, o PLP 18/22 impõe aos Estados observar as faixas de tributação vigentes para as mercadorias consideradas essenciais, tais como os itens que integram a cesta básica, limitando-as às alíquotas gerais vigentes nas legislações estaduais para as operações internas, que variam entre 17% a 18% a depender de cada Estado. A título de exemplo, no Estado de São Paulo a alíquota interna geral é de 18%, no Estado do Rio Grande do Sul é de 17%, já no Estado do Mato Grosso o percentual é de 17% e no Amazonas é indicado o percentual de 18%.
Outro aspecto digno de nota é a trava legislativa relativa a possível expediente de fixação da alíquota geral em patamares elevados e posterior redução para atendimento do propósito da PLP 18/2022, sem, no entanto, propiciar efetiva redução da carga tributária do ICMS sobre os combustíveis objeto da referida proposta legislativa.
Ocorre que o PLP 18/22 é bastante representativo de uma característica central do federalismo brasileiro: o desrespeito à autonomia legislativa, financeira e tributária dos Entes Federativos, notadamente, os Estados e Municípios. Não é de hoje o intenso questionamento doutrinário e político em relação ao caráter centralizador do Federalismo brasileiro na figura da União. A despeito da iniciativa do legislador constituinte originário em traçar um sistema de repartição de competências pautado em critérios de repartição vertical e horizontal, além da técnica de atribuição de competências pertinente ao princípio da predominância dos interesses.
Sob uma perspectiva puramente teórica em relação à tributação do consumo, é inegável que os impostos incidentes sobre essa base tributável devem se orientar por uma uniformidade em todo o território nacional, o que justificaria a atribuição da competência tributária para instituição de tributos dessa natureza à União. Ocorre que, em consideração à ótica da descentralização federal, o legislador constituinte originário optou por repartir essa base entre os três Entes Federativos, cabendo à União o IPI, IOF e contribuições parafiscais; aos Estados foi outorgada a competência de tributar o consumo por meio do ICMS e, por fim, aos Municípios foi atribuída a competência tributária relativa ao ISSQN.
Tal arranjo político institucional é significativo e importante. A praxe nacional é a imposição de interesses econômico-financeiros pela União em detrimento dos Entes subnacionais. Exemplo disso é a Lei Complementar 87/96, a norma geral do ICMS, que estipulou a não incidência do ICMS sobre operações de exportação de mercadorias. A despeito da previsão do art. 91 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT, foi necessário o decurso de longos 24 anos, perpassado por uma decisão do
Supremo Tribunal Federal de inconstitucionalidade por omissão do Congresso Nacional (ADO 25), para que ocorresse a promulgação da Lei Complementar 176/20 para a fixação dos critérios de compensação da União em relação às perdas arrecadatórias suportadas pelos Estados e Municípios.
O PLP 18/22 traz esse canto da sereia, mas os Estados já se colocam como Ulisses atado ao mastro do navio. A experiência pretérita afasta o ideal da confiança. Ainda que o procedimento adotado seja de compensação das perdas com eventuais dívidas contratuais existentes com a União, não há uma previsão concreta acerca da forma de apuração dessas perdas, considerando a variabilidade da base de cálculo do ICMS combustíveis no regime de substituição tributária.
Ora, diante desse cenário de inflexão das premissas federalistas e inobservância deliberada da norma constitucional, é legítima a discordância direta dos Estados em relação à restrição inconstitucional de sua competência privada. Aliás, não há o verniz de legitimidade do PLP 18/22 em decorrência da aprovação pelo Senador Federal de seu conteúdo, uma vez que, sabidamente, a influência do Poder Executivo federal na Casa representativa dos interesses dos Estados é muito mais significativa do que os respectivos Poderes Executivos estaduais, seja em virtude das relações políticas de situação e oposição, seja pelo cenário eleitoral, seja pela apropriação do orçamento federal por meio das emendas parlamentares.
O que se observa de concreto é que o relacionamento federativo delineado na Constituição da República não autoriza à União assumir competência legislativa do Estados para declinar a natureza essencial dos combustíveis. Evidentemente, na sociedade moderna, esses produtos são indiscutivelmente essenciais. Mas essa constatação não dá margem ao legislador ordinário federal a assumir a competência legislativa para edição de normas gerais em matéria tributária e arvorar-se no mandato representativo das populações locais e declinar essa natureza.
Ora, o texto constitucional é transparente em relação à atuação do legislador ordinário federal e a competência dos Estados:
a) as normas gerais de direito tributário têm a finalidade de desenvolver a normatividade das disposições constitucionais em matéria tributária ou definir tratamento favorecido para proteção de valores reputados relevantes pelo legislador constituinte (art. 146, inc. III da CR/88);
b) a lei complementar em relação ao ICMS possui âmbito material expressamente definido (art. 155, §2º, inciso XII da CR/88), pois circunscrito a (i) definir o sujeito passivo; (ii) dispor sobre o regime de substituição tributária; (iii) regular a aplicação do princípio da não-cumulatividade e o sistema de compensação entre créditos-débitos; (iv) estabelecer o aspecto espacial do ICMS e o estabelecimento responsável pelo pagamento do crédito tributário; (v) concretizar a não incidência do ICMS sobre operações de exportação; (vi) regulamentar a deliberação convenial acerca da concessão de hipóteses de exoneração tributária; (vii) definir os combustíveis e lubrificantes sujeitos à incidência monofásica; (viii) estabelecer a base de cálculo para equalização da carga tributária na importação de mercadorias do exterior;
c) a definição das alíquotas interestaduais e de exportação, além das alíquotas internas mínimas e máximas, são prerrogativa institucional do Senado Federal, observada a requisito de iniciativa do processo legislativo de resolução (art. 155, § 2º, inc. IV e V);
d) a definição das alíquotas do ICMS combustíveis são definidas pelos Estados por meio de convênio aprovado no âmbito do CONFAZ, conforme o teor da Lei Complementar nº 24/75, observado o critério da uniformidade em todo o território federal, bem como a subserviência ao princípio da anterioridade nonagesimal e excepcionado o princípio da anterioridade (art. 155, §4º, inc. IV da CR/88).
Portanto, é observável que o figurino constitucional relativo ao ICMS e, especificamente, a incidência desse imposto estadual sobre combustíveis, em nada se compatibiliza com o teor do PLP 18/22. Há inegável violação a premissas basilares e essenciais ao modelo federativo de Estado adotado pela Constituição brasileira, bem como à repartição das competências tributárias.
Assim, a despeito da relevância do debate público, a inegável necessidade de providências em relação à flutuação dos preços dos combustíveis em decorrência do contexto internacional, a solução não pode ultrapassar as balizas constitucionais, pois, a admissibilidade da proposta legislativa aprovada implicará em grave precedente ao pacto federativo e à autonomia dos Entes subnacionais.
Por outro lado, o cenário de conflito interfederativo culminará na condução do litígio ao Supremo Tribunal Federal, assegurando o estágio de paralisia em relação à uma alternativa negociada, seja entre os Entes Federativos, seja entre a União e a Petrobrás. Talvez seja este o objetivo dos envolvidos no processo de negociação ante o cenário eleitoral que se avizinha. Talvez haja boa-fé nos propósitos da proposta legislativa. Mas, a política é a busca pelo consenso e não a imposição de vontades.
Os Estados e os Municípios deveriam ser chamados ao debate num grande painel federativo, na qual haja a discussão do sistema tributário sobre o consumo, a repartição da receita e, em última instância, o interesse público nacional. O que temos presenciado não é e não será uma solução admissível à luz da Constituição de 1988.
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1 Refiro-me especificamente às crises do petróleo de 1973 e 1979 decorrentes do controle da produção implementada pelos países produtores, especificamente aqueles integrados à Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) para regulação do preço do barril de petróleo no mercador internacional, além do conflito entre árabes e judeus envolvendo os territórios da Palestina que culminou na guerra de Yom Kippur.
2 Conforme se depreende da tramitação do projeto de lei a partir das informações constantes do portal da Câmara dos Deputados na internet. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2317648. Acesso em: 22/06/2022.
3 No caso do IPI, o princípio da seletividade tem aplicação obrigatória, conforme exigência do art. 153, § 3º, inc. I da Constituição de 1988.
Guilherme Dolabella
Sócio Diretor de Estruturação de Negócios e Relações Societárias e Gestor do Núcleo de Contencioso de Alta Complexidade do escritório Barreto Dolabella Advogados. Advogado e Procurador do Distrito Federal. Diretor de Estruturação de Negócios e Relações Societárias do Barreto Dolabella Advogados e Consultor Jurídico. Doutorando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo - USP. Mestre em Argumentação Jurídica e Filosofia do Direito pela Universidade de Alicante/Espanha. Mestre em Direito Tributário pela Universidade de Brasília - UnB. Especialista em Comércio Exterior e Internacionalização de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas - FGV. Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio Vargas - FGV.