O outro Bruno: alteridade, humanismo e perfídia social e governamental
No Império do Brasil, mais precisamente em 1845, surgiram as diretorias-gerais dos índios das províncias, que deveriam cuidar dos interesses dos "silvícolas". O regulamento mandava que em cada aldeia houvesse um diretor, um almoxarife, um enfermeiro e um missionário. Desde "sempre", tratou-se de um serviço público paupérrimo e, por isso mesmo, houve verdadeiros heróis nesse serviço, que em si é humanístico, já que "os índios" - esse anacronismo lexical tosco - são pessoas humanas idênticas a nós, posto que culturalmente diversas da maioria envolvente. Em compensação, sempre houve vilões de todos os tipos; lobos em pele de cordeiro.
sexta-feira, 24 de junho de 2022
Atualizado em 27 de junho de 2022 14:33
É dilacerante saber que Bruno da Cunha Araujo Pereira, meu colega de indigenismo, esteja morto, e que tenha sido vítima de tudo que foi. Que as almas dele e de Dominic Philips encontrem a paz e que para eles brilhe a luz que não se apaga!
Além de dilacerante, é revoltante e humilhante, como também verbalizou o antigo presidente da Funai e sertanista, Sydney Possuelo, no último Roda Viva da TV Cultura. É humilhante que servidores públicos Federais que cuidam de um dos temas mais sensíveis da nacionalidade brasileira, qual seja o direito dos povos indígenas, sejam perseguidos, ameaçados, ultrajados e mortos.
A imensa maioria dos leitores não sabe, mas os "indigenistas especializados" ou os "agentes em indigenismo" da autarquia indigenista da União, a Funai, não possuem plano de carreira, não possuem mecanismos de proteção especial para o trabalho em campo, não possuem, portanto, direitos básicos que servidores com esse tipo de função estatal deveriam possuir. Indigenistas são, no Estado, o que os indígenas são na sociedade: párias. No relatório anual que o Conselho Indigenista Missionário, da CNBB, produz sobre a violência contra os povos indígenas, já em 2016, estimava-se que, no período entre 2003 e aquele ano, 891 indígenas haviam sido assassinados. É a barbárie.
Brunão, que não tinha a menor ideia da admiração que particularmente lhe nutria, era, como eu, um analista e executor da política indigenista do Brasil. Que política? O que é a Funai na administração Federal? Como nos disse muito francamente o senador Capiberibe, do Amapá, por ocasião da greve geral dos servidores, em 2012: "Política se faz com dinheiro, com orçamento, e se a Funai não tem isso ela não pode fazer nada"...
Aí é que está. De fato, a Funai pode tão pouco que somos sim humilhados, tolhidos, reprimidos e desfalcados. O indigenismo estatal é um paciente que agoniza na UTI há décadas. Entre nós o moral costuma estar sempre baixo e quando surge um Brunão em nosso meio tem-se alguma esperança, que na verdade nada mais é do que a retroalimentação de que "podemos alguma coisa". Mas podemos muito pouco. Os indígenas, inclusive, podem muito mais do que os indigenistas. Aliás, o indigenismo indígena é o que cada vez mais se almeja e, aos poucos, tem sido conquistado.
Indigenistas são mulheres e homens que, desde o início da colonização, no século XVI, foram colocados para "amansar", "abrandar", "domesticar" e catequizar os povos que estavam aqui antes dos europeus. Indigenistas antes do XIX foram os jesuítas, os franciscanos e aqueles que com eles trabalhavam. No Império do Brasil, mais precisamente em 1845, surgiram as diretorias-gerais dos índios das províncias, que deveriam cuidar dos interesses dos "silvícolas". O regulamento mandava que em cada aldeia houvesse um diretor, um almoxarife, um enfermeiro e um missionário. Desde "sempre", tratou-se de um serviço público paupérrimo e, por isso mesmo, houve verdadeiros heróis nesse serviço, que em si é humanístico, já que "os índios" - esse anacronismo lexical tosco - são pessoas humanas idênticas a nós, posto que culturalmente diversas da maioria envolvente. Em compensação, sempre houve vilões de todos os tipos; lobos em pele de cordeiro.
Em 1910, passadas duas décadas de vácuo legal, surgiu o SPILTN, depois simplesmente SPI, o famoso "Serviço de Proteção aos Índios". Todos se lembram do marechal Rondon, símbolo maior do SPI. No fim da década de 1960, imerso em escândalos que envolviam até estupros, tortura e morte de indígenas, extinguiu-se o SPI e deram vida à Funai. Órgão militarizado, no regime militar, a Funai foi dotada de uma capacidade que nunca o indigenismo estatal havia conhecido. De serviço miserável, sempre capengante entre diversos ministérios, a "Fundação Nacional do Índio" recebeu injeções de verbas para construir frota de aeronaves e embarcações e meios de comunicação moderníssimos, para otimizar o contato com os povos indígenas. O custo humano de tudo isso foi, como Rubens Valente analisa em seu livro "Os fuzis e as flechas", a morte de centenas de indígenas sem contato anterior conosco. O paradoxo do colonialismo nas relações entre Estado e povos ameríndios é incessante e mesmo que às vezes nos esqueçamos, somos agentes do Estado. Mas o indigenismo estatal também tem flores, ou pérolas. Uma delas era Brunão... alto, corpulento, cara de brabo. Um indigenista dos anos 2000 com o jeitão dos das décadas anteriores!
Meu xará e eu conversamos poucas vezes. Uma delas foi em almoço no prédio onde hoje se instala a Funai, órgão que não possui sede. Ele era um cara humilde. Tendo grande conhecimento de assuntos indígenas e indigenistas, não se jactava. Perguntou-me nessa ocasião o que vintenas de colegas me perguntam, mas o fez de modo singelo, sem afetação: "Você é monarquista?". Daí se segue minha explicação de sempre: fui um adolescente muito monarquista e trabalhei por essa causa, que é patriótica na raiz, mesmo que, como tantas outras, tenha muitos senões. Nesse almoço, ele e eu também falamos sobre o regozijo que, em grande medida, ele havia propiciado aos Korubo do Coari (indígenas isolados), permitindo o reencontro de dois parentes que se perderam do grupo em 2015. A expedição de 2019 foi a maior em mais de vinte anos e evitou, ainda, que os povos Korubo e Matis se digladiassem.
Brunão e eu também nos vimos em um dos encontros da INA, a organização "Indigenistas Associados", fundada em 2017, que é a grande novidade de tudo isso que narro aqui. Foi um fim de semana inteiro de muita produção, debate, amizade, companheirismo. Posições diversas, claro, mas muito respeito e benquerença entre os indigenistas de geração Y.
É muito angustiante imaginar o que Bruno Pereira e Dominic Philips passaram. Mas por favor, não pensem que isto é raro. Indígenas e indigenistas são ameaçados de morte diariamente neste Brasil em que vivemos, de modo especial nestes últimos quatro anos. E isto evidentemente não se explica apenas pelos horrores em áreas com escassa presença do Estado, entregues ao narcotráfico ou à extração criminosa de minérios e madeira.
A própria discussão sobre o regime jurídico das terras indígenas e o processo administrativo de demarcação territorial, com seus muitos procedimentos, tem regredido, com o atual executivo Federal encampando a tese de um "marco temporal" ("até 1988") para aferição da tradicionalidade da ocupação - pretendendo expulsar como agentes da história os povos originários, ou congelar no passado um quadro de interações sociais - fulminando, evidentemente, o indigenato, sistematizado pelo jurisconsulto católico e monarquista João Mendes de Almeida Junior (1846-1923), ministro do STF. Não é imperioso, mas seria muito salutar, que os governantes do Brasil, em todas as esferas, lessem a encíclica Laudato Si', do Santo Padre Francisco, de 2015, disponível on-line. Passariam a compreender que uma pura "lógica de mercado" é o veneno, e não o antídoto, para o desenvolvimento socioeconômico e humano da Amazônia.
A exemplo de Chico Mendes, Dorothy Stang, Maxciel dos Santos ou Rieli Franciscato, Bruno Pereira e Dom Philips seguirão jogando luz sobre este quadro e apontando o caminho de luta para mudá-lo. Por ora, no entanto, vivamos o luto. Que suas famílias possam se despedir deles com a dignidade que desde a narrativa de Sófocles em Antígona, cinco séculos antes de Cristo, já se afirma como um direito imprescritível e irrecusável: velar, chorar e oficiar os ritos fúnebres de seus mortos.
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https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2016-09/Cimi-em-treze-anos-891-indigenas-foram-assassinados-no-pais
https://indigenistasassociados.org.br/
https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html