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Revisão dos fundamentos de punição disciplinar por inadequação da sanção

A questão do tempo é incontestavelmente um problema metafísico, mas a sua compreensão, como fator de justiça, é um desafio que os juízes podem e devem buscar resolver, desde que admitam que os fatos das questões sejam os vetores indispensáveis de suas soluções.

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Atualizado às 14:39

A Revisão Disciplinar é um processo administrativo que se orienta por mais de um vetor jurídico, mas não padece dúvida alguma que um deles será a preocupação com a justiça do caso concreto, que pode, eventualmente, ter sido desatendida no julgamento originário, em razão de fatores de variada qualificação. Entre esses fatores estão, com certeza, a avaliação equivocada de provas ou de circunstâncias prejudiciais ao juízo condenatório, como a prescrição ou a ilegitimidade dos julgadores.  

No entanto, a injustiça da decisão sancionadora, que pode assaltar qualquer julgamento, é um elemento perturbador de alta relevância e cuja identificação não se mostra em abstrato, senão somente em cada caso concreto. Essa identificação passa pela análise das condições efetivas e singulares de tempo, lugar e modo de ocorrência de cada ato sancionável, por mais intrincada que seja a sua complexidade, e constitui tarefa que a regra geral, legalmente positivada, não pode realmente prever. 

E não o pode prever porque os homens, a vida e o tempo, as coisas que importam e fazem o mundo estão em constante movimento, que chega inesperado como um susto, uma nuvem a se expandir no firmamento, às vezes numa velocidade que sequer se pode imaginar.

Sob essa ótica, o jurista e filósofo escocês Professor NEIL MAC CORMICK (1941-2009) expressou a grande aspereza dessa problemática, chamando? a atenção dos estudiosos para as circunstâncias de que os juristas e os julgadores não costumam se deter nessas análises.  Em verdade, tanto os juristas, como os julgadores, vêm há muito tempo sofrendo as consequências de uma formação intelectual e acadêmica intensamente? legalista que em alguns casos os têm levado a uma espécie de propensão incontrolável em buscar nas leis escritas e na sua aplicação literal a solução dos problemas jurídicos.  

Não se coaduna com a vanguarda constitucional garantista do atual Estado Constitucional de Direito, termo difundido pelo Professor LUIGI FERRAJOLI, o já ultrapassado movimento de se reproduzir o ciclo de secundarizar? aquelas circunstâncias de tempo, de lugar e de modo, que todos os atos humanos carregam em si, nos fornecendo o seu real conteúdo. ?

A posição que minimizava o valor dos fatos levou a atividade de julgar ao legalismo, com isso fazendo as decisões dos julgadores uma espécie de reprodução das disposições legais. A mais enfática oposição a esse pensamento - talvez a pioneira - foi manifestada há tempos, pelo eminente Ministro VICTOR NUNES LEAL (1914-1985), que assim a sintetizou dizendo que a inconformidade do ato com os fatos que a lei declara pressupostos dele constitui ilegalidade, do mesmo modo que a constitui a forma inadequada que o ato porventura apresente (Problemas de Direito Público. Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 264).

Deve-se pontuar que as complexas questões humanas, sempre urgentes, que habitam na existência, navegam por entre o espaço, soberanas e independentes e alheias ao tempo. A questão do tempo é incontestavelmente um problema metafísico, mas a sua compreensão, como fator de justiça, é um desafio que os juízes podem e devem buscar resolver, desde que admitam que os fatos das questões sejam os vetores indispensáveis de suas soluções.  

É nesse cenário que os atuais julgados do egrégio Conselho Nacional de Justiça estão inseridos, em uma análise mutante de fatos para revisar a devida proporcionalidade das penas aplicadas na via administrativa e disciplinar. Destacam-se:

REVDIS - 0001057-19.2019.2.00.0000

Conselheira CANDICE LAVOCAT GALVÃO JOBIM.

REVISÃO DISCIPLINAR. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SERGIPE. MAGISTRADO. ATOS JURISDICIONAIS. RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA. EXCEÇÃO. DESVIO DE FINALIDADE NÃO CONFIGURADO. INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL DO MAGISTRADO. GARANTIA CONSTITUCIONAL. ACÚMULO DE PROCESSOS COM EXCESSO DE PRAZO. MOROSIDADE. CONDUTA NEGLIGENTE. CONFIGURAÇÃO. PENA DE APOSENTADORIA COMPULSÓRIA. AUSÊNCIA DE PROPORCIONALIDADE. ADVERTÊNCIA. SANÇÃO ADEQUADA.

(...) O juiz de direito não pode ser sancionado pela interpretação razoável de normas jurídicas, sob pena de se instaurar o controle administrativo de atos jurisdicionais. Por isso, inviável identificar falta funcional no fato de o magistrado, em decisão juridicamente fundamentada, ter reconhecido sua competência para, a despeito do limite de alçada, julgar causa no Juizado Especial da Fazenda Pública.

(...) O error in judicando deve ser revisto pelas instâncias judiciais próprias e não desborda para a falta funcional quando o processo administrativo disciplinar não logra êxito em comprovar a absoluta impropriedade da decisão judicial aliada à sua prática visando finalidade espúria. Dessa forma, não há espaço para sancionar o magistrado tão somente pela prolação de quatro sentenças anuladas pela Turma Recursal por carência de fundamentação.

(...) restou demonstrado nos autos que a conduta negligente do magistrado resultou no acúmulo de processos com excesso de prazo. A Corregedoria local identificou processos paralisados há mais de seiscentos dias, o que demonstra a deficiência na gestão cartorária.

(...) A pena de aposentadoria compulsória é a primeira sanção que aplicada ao magistrado não é proporcional aos fatos constatados, além de destoar da função educativa inerente à toda penalidade. Esta é a sanção mais grave passível de aplicação na via administrativa e, por isso, deve ser reservada a situações excepcionais ou quando a aplicação de outras sanções não surtiu o efeito esperado.

(...) A prolação de sentenças contraditórias e a existência de processos conclusos com excesso de prazo são fruto de uma conduta negligente. Neste caso, a advertência é a pena proporcional à gravidade das condutas. (...) Em se tratando de pena de advertência, o prazo prescricional a ser utilizado é o de 180 (cento e oitenta) dias. Há que se registrar, portanto, a superveniência da prescrição da pretensão punitiva pela pena em concreto, ocorrida em 17/07/2018.

(...) Pedido julgado parcialmente procedente.

Recentemente em sessão plenária do CNJ de 14/6/22, me posicionei quanto a observação do fenômeno do aumento de um pensamento punitivísta, como a necessária independência da magistratura, onde vivenciam e devem ter   a necessária visão e compreensão dos fatos e realidades que o circundam:

No julgamento do processo RD 0006354-70.2020.2.00.0000, no CNJ, tive oportunidade de me manifestar no seguinte sentido:

Presidente, ouvi atentamente todas as explanações e me chamou bastante atenção o fato de se punir um magistrado não se levando em consideração, como o Cons. Marcelo falou, da estrutura e do sistema de justiça. E toda responsabilidade cair nos ombros já carregados e pesados dos magistrados de todo o país.

Entendo que existe uma expansão hoje em dia do direito penal, e alguns magistrados são mal vistos e até hostilizados quando concedem habeas corpus, e isso, a meu ver, não preserva a independência do magistrado, com base no art. 41 da LOMAN.

Acho que a abertura de um processo administrativo disciplinar deve levar em consideração todos os fatos que estão expostos ali na realidade. Citando aqui Jesús Maria Silva Sánchez, no seu livro A Expansão do Direito Penal[1], só para ilustrar:

Não é infrequente que a expansão do Direito Penal se apresente como produto de uma espécie de perversidade do aparato estatal, que buscaria no permanente recurso à legislação penal uma (aparente) solução fácil aos problemas sociais, deslocando ao plano simbólico (isto é, ao da declaração de princípios, que tranquiliza a opinião pública) o que deveria resolver-se no nível da instrumentalidade (da proteção efetiva).

Entendo que no caso do Estado do Amazonas, como já exposto, deve-se levar em consideração a questão da pandemia que assolava o Estado aquela época. Pedindo vênia à douta Corregedora, acompanho a divergência do Cons. Richard.

Outrossim, quando os julgamentos minimizam ou desprezam essas mencionadas circunstâncias de tempo, de lugar e de modo ou tratam com alheamento a ocorrência efetiva dos fatos, não dão ensejo apenas a uma decisão idealizada, abstrata ou injusta. Na verdade, essa postura contribui para que se passe a difundir cada vez mais a simplista e artificial noção de que o Direito se encontra exclusivamente nas regras escritas. Ou a de que a própria noção da compreensão que conhecer a ciência do Direito se resumiria ao conhecimento das suas regras? e ordenamentos escritos e pela sua fiel observância.

Nesse sentido, imprescindível citar a decisão da lavra Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES do Superior Tribunal de Justiça, onde prevalece a análise subjetiva dos fatos em detrimento do legalismo exacerbado, na qual afirma-se a necessidade de se promover a individualização da penalidade a ser aplicada, mesmo na existência de regra cominando determinada consequência jurídica diante do enquadramento do fato, destaca-se:

MS19.991/DF. Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES    

ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. AGENTE ADMINISTRATIVA DO MINISTÉRIO DA FAZENDA. PERCEPÇÃO INDEVIDA DE DIÁRIAS. VALORES NÃO VULTOSOS. DEVOLUÇÃO ESPONTÂNEA DE PARTE DOS VALORES. PENA DE DEMISSÃO. DESPROPORCIONALIDADE CONFIGURADA. SEGURANÇA CONCEDIDA. (...) 2. Sustenta a impetrante que a pena de demissão é desproporcional, eis que não atende ao disposto no artigo 128 da Lei 8.112/90 ("Na aplicação das penalidades serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais"), (...) Conforme o parecer do Ministério Público Federal, não houve observância do artigo 128 da Lei 8.112/90, pois, "(...) embora diante dos fatos apurados no procedimento administrativo disciplinar pudesse haver ensejo à aplicação de uma punição (necessidade), a sanção aplicada à demandante no processo administrativo não foi adequada à situação, uma vez que o ato imputado à impetrante e que teria causado dano ao erário público, prejuízo de valor não vultoso (...). Hipótese em que se mostra desproporcional a aplicação da pena de demissão a ora impetrante, que exercia o cargo de Agente Administrativa do Quadro de Pessoal do Ministério da Fazenda, com mais de trinta anos de serviço e sem antecedentes disciplinares". (...) Segurança concedida. (MS 19.991/DF. j. 09.04.2014.)

O controle dos atos da administração se fez tornou instrumento de proteção do cidadão contra os arbítrios do Estado, chegando-se a uma evolução de se também controlar os arbítrios de quem detém o papel de os coibir, no caso, o poder judiciário. Necessário se fez o surgimento gradual de tribunais ou conselhos que fiscalizem a sua atuação administrativa bem como disciplinar. Tanto a essa responsabilidade como a importância dessa missão confiada aos que detinham o poder e autoridade já se percebia a necessidade do seu controle dentro das primeiras sociedades. A título exemplificativo veja-s o Evangelho segundo Lucas: A quem muito foi dado, muito será pedido; a quem muito foi confiado, muito mais será exigido! (12-48).

Lembremos, trazendo para os dias atuais, a lição do jurista português Professor PAULO OTERO. Segundo o mestre lusitano:

(...) A actividade administrativa encontra-se também ela subordinada a Constituição e à lei (artigo 266°, n° 2), tendo os particulares garantido pelo direito fundamental de controlo jurisdicional das decisões administrativas lesivas de posições jurídicas subjetivas (artigo 268°, n° 4), encontrando-se esta fiscalização confiada aos tribunais administrativos e fiscais (artigo 214, n° 3 (Ensaio sobre o Caso Julgado Inconstitucional. Lisboa: Editora Lex, 1993, p. 30).

Ainda, a esse respeito, o sempre mencionado Ministro CARLOS AYRES DE BRITTO em sua singular obra O Humanismo como Categoria Constitucional, traz poderosa lição do jurista alemão Professor KONRAD HESSE (1919-2005) sobre esse tema. Referindo-se esse autor ao papel a que o magistrado deve ater-se quando do enfrentamento das causas a ele submetidas, ensina que um olhar normativo para os princípios fundantes e para a força constitucional, levam sempre em consideração as realidades vividas, proporcionando um verdadeiro equilíbrio das forças normativas da Constituição e da força dos fatores reais dos fatos e realidades da vida humana

O princípio das coisas continua a ser o da complementariedade, implicação e polaridade, conforme ensina o Professor MIGUEL REALE (1910-2006). Por isso que, se a primeira metade do Direito condiciona o visual da segunda, esta última costuma repercutir sobre aquela primeira para redimensionar o respectivo perfil. Uma como que a ajudar a outra para a feitura de um trabalho comum de plenitude. 

Também em KONRAD HESSE, na sua profissão de fé pelo reconhecimento de mais e mais força normativa à Constituição, lê-se que o significado da ordenação jurídica na realidade e em face dela somente pode ser apreciado se ambas - ordenação e realidade - forem consideradas em sua relação, em seu inseparável contexto e no seu condicionamento reciproco. Uma análise isolada, unilateral, que leve em conta apenas um outro aspecto, não se afigura em condições de fornecer resposta adequada à questão. Para aquele que contempla apenas a ordenação jurídica, a norma está em vigor ou está derrogada; não há outra possibilidade (A Força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991, p. 13).

O Direito, enquanto ciência fundamentalmente humana, partiria sempre do ponto de vista de uma macrovisão fenomenológica, devendo considerar em seus fundamentos e finalidades os fatos e fatores antropológicos, sociológicos e humanos, por essência, como mencionado. Esses fatores nunca devem ser desconsiderados, quando o norte da atividade julgadora seja a busca de uma solução justa e individualizada. Pelo contrário, devem ser criteriosamente considerados e sopesados, dando-se lhes o verdadeiro significado de dimensão e natureza. 

É certo que o judiciário brasileiro já vem atentando para essa análise de humanização do processo, mediante a incidência de uma filosofia ética de concretude da vida humana, não se delimitando a critérios exclusivamente jurídicos. Nesse sentido destaca-se julgado do Superior Tribunal de Justiça, da lavra do eminente Ministro JOEL ILAN PACIORNIK

DECISÃO Cuida-se de habeas corpus, com pedido liminar, impetrado em benefício de ODAIR JOSE DE MOURA, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, proferido no julgamento do Agravo de Execução Penal 0730328-02.2020.8.07.0000. (...). No presente writ, a Defensoria sustenta ser notório que o alastramento da doença COVID-19 é exponencial e já atingiu os estabelecimentos prisionais e, diante da precariedade das instalações e inadequação às necessidades de higiene e salubridade se torna clara a desproporcionalidade da prisão do paciente. Alega que o ambiente insalubre do estabelecimento prisional expõe o agravante a alto risco de letalidade. Pleiteia, em sede liminar e no mérito, a concessão de ordem de Habeas Corpus para que "seja determinado ao Juízo da Vara de Execuções do Distrito Federal (VEP/DF) que conceda a prisão domiciliar humanitária com monitoração eletrônica, tendo em vista a interpretação mais humanista do art. 117 da LEP" (fl. 22). É o relatório. Decido. Diante da hipótese de Habeas Corpus substitutivo de recurso próprio, a impetração sequer deveria ser conhecida segundo orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal e do próprio Superior Tribunal de Justiça. Contudo, razoável o processamento do feito para verificar a existência de eventual constrangimento ilegal.

No caso, ao menos em juízo perfunctório, não é possível identificar de plano o constrangimento ilegal aventado ou, ainda, a presença do fumus boni iuris e do periculum in mora, elementos autorizadores para a concessão da tutela de urgência. Confundindo-se com o mérito, a pretensão deve ser submetida à análise do órgão colegiado, oportunidade na qual poderá ser feito exame aprofundado das alegações relatadas após manifestação do Parquet. Por tais razões, indefiro o pedido de liminar. Oficie-se à autoridade coatora, bem como ao juízo das execuções a fim de solicitar-lhes as informações pertinentes, a serem prestadas, preferencialmente, por meio eletrônico, e o envio de senha para acesso ao processo no site do Tribunal, se for o caso. Após s, encaminhem-se os autos ao Ministério Público Federal para parecer. Publique-se. Intime-se. Brasília, 11 de dezembro de 2020. (HC: 633.473/DF. Rel. Min. JOEL ILAN PACIORNIK. DJe 14/12/2020).

Essa decisão do Ministro e doutrinador JOEL PACIORNICK demonstra com clareza a preocupação garantista dos novos tempos, sem desmerecer o papel punitivo Estado, aplicando, portanto, ao meu sentir, uma interpretação e um juízo de equidade e ponderação ao caso.

A decisão remete diretamente aos ensinamentos e preocupações mais latentes e atuais dos doutrinadores da vanguarda europeia, dentre eles o Professor JESÚS MARIA SILVA SÁNCHEZ em obra fundamental sobre a temática do expansionismo Direito Penal:

Não é nada difícil constatar a existência de uma tendência claramente dominante em todas as legislações no sentido da introdução de novos tipos penais, assim como um agravamento (das penas) dos já existentes. Criação de novos "bens jurídico-penais", flexibilização das regras de imputação e relativização dos princípios político-criminais de garantia (A Expansão do Direito Penal. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT, 2002).

A mesma preocupação já foi demonstrada tanto em suas obras, como em suas decisões, pelo Professor Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA. Seus ensinamentos e decisões remetem a outro grande nome do pensamento humanista, o juristamericano Professor Ministro BENJAMIN NATHAN CARDOZO, onde fica notória a origem da fonte desse pensamento humanitário dos juristas já mencionados nas palavras do professor CARDOZO:

A vontade do Estado, expressa em decisão e julgamento, é chegar a uma determinação justa, por meio do senso subjetivo de justiça, inerente ao juiz, guiado pela efetiva ponderação dos interesses das partes, á luz das opiniões geralmente prevalentes na comunidade a respeito de transações idênticas as que estão em causa. Geny, (42) "temos de interrogar a razão e a consciência para descobrir no mais íntimo da nossa natureza a verdadeira base de justiça; de outro lado, temos de dirigir-nos aos fenômenos sociais a fim de verificar quais as leis de sua harmonia e quais os princípios de ordem que os regulam." "Justiça e utilidade geral tais serão os dois objetivos que dirigirão o nosso curso. Estes são os setores em que as virtudes da coerência devem sujeitar-se aos limites intersticiais dentro dos quais se move o poder judicial. (A Natureza do Processo e a Evolução do Direito. Tradução de Leda Boechat Rodrigues. São Paulo: Editora Nacional, 1956, p. 41).

Transcreve-se parte de voto da lavra do Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, onde percebesse o pensamento defendido acima:

(...). No entanto, nada impede que, de ofício, este Tribunal Superior constate a existência de ilegalidade flagrante, circunstância que ora passo a examinar. Nesse sentido, a Recomendação n. 62 do CNJ, de 17 de março de 2020, estabelece medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus/Covid-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo, especialmente para os agentes do grupo de risco, in verbis:

(...) é preciso recordar que a interpretação humanista decorre do acolhimento constitucional da fraternidade como categoria jurídica: o princípio da fraternidade é uma categoria jurídica e não pertence apenas às religiões ou à moral. Sua redescoberta apresenta-se como um fator de fundamental Importância, tendo em vista a complexidade dos problemas sociais, jurídicos e estruturais ainda hoje enfrentados pelas democracias. A fraternidade não exclui o direito e vice-versa, mesmo porque a fraternidade enquanto valor vem sendo proclamada por diversas Constituições modernas, ao lado de outros historicamente consagrados como a igualdade e a liberdade;

(...) O princípio da fraternidade é um macroprincípio dos Direitos Humanos e passa a ter uma nova leitura prática, diante do constitucionalismo fraternal prometido na CF/88 (Preâmbulo e art. 3º);

(...) O princípio da fraternidade é possível de ser concretizado também no âmbito penal, através da chamada Justiça restaurativa, do respeito aos direitos humanos e da humanização da aplicação do próprio direito penal e do correspondente processo

(...) ademais, essa particular forma de parametrar a interpretação da lei (no caso, prisão domiciliar, no regime semiaberto, por razões de saúde) é a que mais se aproxima da Constituição Federal, que faz da cidadania e da dignidade da pessoa humana dois de seus fundamentos, bem como tem por objetivos fundamentais erradicar a marginalização e construir uma sociedade livre, justa e solidária (incisos I, II e III do art. 3º). Tudo na perspectiva da construção do tipo ideal de sociedade que o preâmbulo da respectiva Carta Magna caracteriza como "fraterna" (HC 94.163. Rel. Min. CARLOS BRITTO. Primeira Turma do STF, j. 2/12/2008, DJe-200. Divulg 22/10/2009 Public 23/10/2009). No mesmo diapasão: AgRg no HC 532.787/SC. Rel. Min. REYNALDO SOARES DA FONSECA, julgado em 5/11/2019, DJe 12/11/2019). Configurado, portanto, o constrangimento ilegal. Ante o exposto, ratificando a liminar deferida, concedo a ordem de ofício para manter o paciente em prisão domiciliar, ficando a critério do Juiz de 1º grau a manutenção do monitoramento eletrônico.

Os Professores VLADMIR OLIVEIRA DA SILVEIRA e MARIA MENDEZ ROCASOLANO, em sua obra Direitos Humanos, Conceitos Significados e Funções (Editora Saraiva, 2010) repercutem o pensamento do sempre referido mestre MICHEL FOUCAULT no seu clássico livro Vigiar e Punir. (Tradução de Rachel Ramalhete. Petrópolis: Editora Vozes,1987, p.117). (...), todavia, com a transformação histórica e o aparecimento do novo poder humanista, FOUCAULT identifica um esforço para ajustar os mecanismos de poder que marcam a existência dos indivíduos. Desse modo pode-se dizer que é uma adaptação e um refinamento dos aparatos da vida cotidiana, de sua identidade, sua atividade, seus gestos aparentemente sem importância. Tanto é verdade que basta um momento de desatenção para que o poder se imponha, muitas vezes de forma sutil, sem que ocorra um enfrentamento direto com os direitos humanos.

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1 SILVA SÁNCHES, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal - Aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução da 2ª edição espanhola: Luiz Otávio de Oliveira Rocha. Revisão: Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 23.

Mário Goulart Maia

Mário Goulart Maia

Conselheiro do CNJ.

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